Quem está do outro lado, o dos pilotos, navegadores, mecânicos, chefes de equipes, não tem a menor ideia do que é estar do lado de cá, isto é, o lado do organizador e promotor do evento. Pode ser uma prova do campeonato brasileiro, campeonato estadual ou uma copa monomarca. É um trabalho enorme e de muita responsabilidade.
Hoje vou contar fatos e situações tirados não tão do fundo do baú – ocorreram há menos de dez anos — que envolvem o rali, mais especificamente minha experiência à testa da Copa Peugeot de Rali a partir de abril de 2008.
Experiência com um misto de responsabilidade e prazer que tive em administrar durante cinco anos, cuidando das modalidades Regularidade e Velocidade da copa. Hoje vou falar do Regularidade; no domingo que vem será a vez do Velocidade.
Importante mencionar o excelente trabalho realizado pelo meu antecessor Paulo Beccardi, de quem herdei um evento muito bem planejado e organizado. O Paulo é filho de Roberto Beccardi, o chefe da engenharia experimental de motores da GM que trouxe à vida o motor 250-S do Opala em 1974, até hoje cultuado pelos fãs do modelo.
Um dos primeiros passos para a realização de um evento dessa natureza é a tomada de decisão de fazê-lo acontecer, e esta depende única e exclusivamente da direção da empresa promotora, neste caso a Peugeot do Brasil. Já em agosto é necessário tomar esta decisão, uma vez que é nesta época que se faz o planejamento econômico para o próximo ano e permite a “caça” aos patrocinadores e parceiros para a próxima temporada, uma vez que é neste período que eles também estão fazendo os seus planejamentos.
Muito importante é a comunicação e negociação com a Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA) acerca do planejamento ou intenção da empresa em realizar o campeonato ou copa. Não pensem que é de graça, a CBA faz cobranças de taxas para as etapas com valores negociados que correspondem ao direito de exploração da imagem do automobilismo para a divulgação da marca. Além deste valor, o promotor arca também com as despesas geradas pela presença obrigatória dos comissários (esportivo e técnico) da CBA e um comissário da federação de automobilismo do estado sede prova, cabendo aos três a “fiscalização” o evento. Isto vale para ambas as categorias do rali, Regularidade e Velocidade.
O próximo passo é a escolha das cidades/região onde serão promovidas as provas, sempre envolvendo uma boa concessionária, mesmo porque eram elas as nossas grandes parceiras. Para esta escolha tínhamos a ajuda área de Vendas da Peugeot. Tínhamos muitas concessionárias interessadas em ter em sua cidade uma etapa da Copa Peugeot de Rali. Isso porque a expectativa era que o rali gerasse trânsito de loja, o que de fato aconteceria, a par de contribuir para a venda de serviços e peças e, não menos importante, colocar o nome da marca na mente das pessoas.
Os participantes eram obrigatoriamente proprietários de veículos Peugeot, mas não necessariamente clientes daquela concessionária. Muitos competidores vinham de longe para participar do evento.
As inscrições eram grátis, mas exigíamos a doação de duas cestas básicas por carro (uma do piloto e outra, do navegador), as quais eram entregues na cerimônia do pódio à representante da primeira dama do município ou à própria, e encaminhadas a entidades carentes da região.
A Copa começava a criar corpo, calendário aprovado, taxas da CBA acordadas, concessionárias interessadas 100% envolvidas. O que faltava?
A equipe dos organizadores.
A equipe era contratada para a temporada toda (seis provas). Tivemos como diretor de prova o experiente “ralizeiro” Alberto Fadigatti e depois na sua sucessão, Paulo Leite. A equipe de cronometragem, a Chronosat, era dirigida pelo também experiente Ulisses Wichowski. A equipe de segurança era chefiada pelo superexperiente Paulo Amato.
A empresa para montar toda estrutura para a realização do evento atuou durante os 10 anos em que a Copa Peugeot de Rali existiu. A empresa Montarte Eventos e seu diretor Richard Espírito Santo foram os responsáveis por um grande trabalho de parceria.
Importantíssima, a atuação das concessionárias. As inscrições eram feitas em suas lojas, uma inspeção nos carros gratuita era realizada para verificar principalmente itens de segurança (luzes, estado dos pneus, limpador de para-brisa, etc.). Nas concessionárias eram destacadas pessoas/funcionários para ficarem praticamente durante o mês da realização da prova à disposição para a realização das atividades burocráticas e assim todos poderem participar do evento. A entrega dos kits, das camisetas do evento de uso obrigatório, era feita na véspera.
As camisetas alusivas ao evento para pilotos e navegadores, a escolha do local para o almoço que tinha que oferecer conforto e segurança para, em média, 450 pessoas, era de responsabilidade da concessionária, assim como os custos.
O dia da prova começava com um farto café da manhã oferecido pela concessionária anfitriã.
Em paralelo, os diretores da prova e da cronometragem faziam o levantamento do rali. A região por onde ele passaria, as médias horárias que seriam estabelecidas, lembrando que os ralis de regularidade eram realizados em estradas abertas ao tráfego, o que significava a necessidade de muita atenção durante a prova. As médias horárias estabelecidas para cada trecho tinham também outro importante objetivo: nada deveria colocar em risco o cliente e seu veículo.
No domingo pela manhã os clientes chegavam à concessionária e recebiam os respectivos números de competidor (a ordem de largada era a sequência da chegada à concessionária) e uma equipe pronta aplicava os adesivos dos patrocinadores da prova. O café da manhã era servido a partir das 7h00, mas tinha competidor que, para ser um dos primeiros a largar, chegava na concessionária às 5h30, ainda escuro.
Durante o café, uma interrupção para o briefing (preleção), o meu recado para todos os participantes que a esta altura já tinham em mãos a planilha da prova. Os últimos informes eram passados, principalmente os alertas voltados à segurança como faróis acesos todo o tempo, uso do cinto de segurança, idem. Alguma alteração de roteiro em razão de eventuais fortes chuvas na noite anterior também eram informadas neste momento.
Um procedimento comum um membro da organização ficar atrás de uma árvore ou logo após uma curva com uma bandeira vermelha à mostra, parar o carro e fazer uma inspeção de itens de segurança e equipamentos de navegação em uso. Infelizmente tivemos desclassificações por desobediência a estas normas.
A largada era dada pontualmente às 9h01 (primeiro carro) e os demais iam saindo a cada minuto. Importante dizer que se o número de inscritos fosse maior do que 60 a largada era dada de 30 em 30 segundos — já pensou 120 participantes e duas horas de largada? Tudo isto tinha que ser pensado. E havia outra questão, o almoço após a prova. Não poderíamos iniciá-lo e apurar os resultados se todos os competidores não estivessem presentes.
Nosso recorde foi de 149 participantes na prova de Poços de Caldas, um verdadeiro show. Em segundo lugar ficou Blumenau com 131 participantes. Considerando ser uma prova monomarca, este foi um número altamente significativo.
Para dar maior competitividade, era proibido o equipamento utilizado pelos profissionais do rali, eram permitidos somente cronômetro, prancheta e calculadora. Alguns laptops foram “recolhidos” antes da prova e depois devolvidos aos seus usuários.
Cabia a mim, antes que fosse compilada a planilha da prova, aprovar o percurso e as médias horárias sugeridas pelo diretor de prova. Algumas vezes fomos obrigados a mudar roteiro ou médias sempre pensando na segurança. O rali de regularidade tinha, em média, um percurso que variava entre 150 e 180 quilômetros, o piso era normalmente bom por estradas de terra e asfalto por rodovias importantes, até uma nova incursão para a terra.
Nosso objetivo sempre foi o de deixar o cliente-competidor tranquilo, proporcionando-lhe diversão e, principalmente, divertir e nada lhe acontecer e ao seu carro. Embora os trechos tivessem asfalto, terra ou lama, dependendo do clima no fim de semana, nunca registramos reclamações.
Fechando a fila de competidores, fazendo a varredura, sempre ia um apoio, consistindo de um furgão Partner com mecânicos e peças, e um caminhão-plafatorma para qualquer eventualidade. Tranquilidade para os competidores era a palavra de ordem da Copa Peugeot de Rali.
A chegada era na concessionária ou diretamente no local do almoço. Enquanto este se desenrolava, a equipe da cronometragem trabalhava arduamente para fazer a apuração, que teria de estar pronta ao mesmo tempo em que era servida a sobremesa.
O pódio montado era o mesmo que seria utilizado pelos pilotos do rali de velocidade. A premiação era do 1º ao 5º lugar com troféus, champagne e produtos da boutique da marca.
Fazíamos uma brincadeira nesse momento. Os cinco melhores classificados eram chamados ao pódio, os pontos perdidos eram anunciados mas sem dizer de quem, e cada dupla tinha o direito de ”achar” a sua classificação. Era um momento de nervosismo e divertimento misturados. “Eu acho que fui o terceiro” — então suba no pódio e ocupe o lugar, era-lhe instruído, e assim cada um “achava” que teria obtido o x lugar. Anunciava-se o 5º, havia a troca de lugares entre as duplas, anunciava-se o 4º colocado, nova troca de posições e finalmente sobravam o 3º, o 2º e o 1º colocados. Anunciava-se o 3º, que ia para o seu lugar no pódio, e aí vinha a troca de gentilezas entre os dois que sobravam. Após muita expectativa anunciava-se o 1º colocado e era só era festa com direito a champagne e troféus.
Alguns dias depois do evento, os clientes recebiam via concessionária um CD com as principais imagens da prova. A festa continuava, a concessionária, por agendamento, oferecia ao cliente-competidor a lavagem do carro e a remoção dos adesivos. Mas muitos, muitos mesmo, rodavam com seus carros adesivados por muitos meses. Era uma satisfação e orgulho mostrar que tinha participado da Copa Peugeot de Rali.
Durante cinco anos realizamos o rali de regularidade com clientes da marca e passamos pelos estados Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de janeiro e Minas Gerais.
Infelizmente no final de 2014 a direção da empresa tomou a decisão de “dar um tempo” à Copa Peugeot de Rali e com esta decisão “fui deixado” pela empresa. Houve muitas cartas e protestos, indignação de competidores e concessionários com esta decisão.
Os leitores mais atentos sabem que foi em 2013 que começou a se vislumbrar a crise de vendas do mercado brasileiro, revertendo o crescimento que vinha célere desde 2000, com 1% menos vendas que o recorde de 3,8 milhões de unidades em 2012. Nos anos seguintes, ano sobre ano, a queda foi de 7,1%, 26,5% e 21,%, quando chegamos a apenas 2,05 milhões de unidades em 2016 — um tombaço de 46% em quatro anos. É aí que pergunto se a Peugeot não tivesse interrompido a copa de rali, apenas efetuado alguns ajustes, quem sabe ela não teria aumentado sua participação de mercado, bem maior do que os parcos de 1,3% de hoje? Produto para isso a Peugeot tem de sobra. A exposição na mídia continuaria forte e o trânsito de clientes nas concessionárias, também. Isso gera vendas.
Pois é na hora da crise que se deve investir mais em promoção, ainda mais se você tem a chance de reduzir seus investimentos com a venda de cotas para patrocinadores, e eu já havia conseguido levantar para 2015, por meio desse expediente, 80% do orçamento anual da Copa Peugeot de Rali. Foi uma pena, lamentável para para todos — para a Peugeot, clientes-competidores, concessionárias, profissionais da mecânica, patrocinadores. A decisão tomada pela marca do leão careceu daquilo que é essencial nas decisões: inteligência.
Nas fotos ficam as lembranças e saudades de fins de semana inesquecíveis. Um evento sobretudo para a família.
Bem, por hoje é só, domingo que vem vou contar os bastidores do Rali de Velocidade, bem mais complexo, arriscado e desafiador para todos — pilotos, navegadores, equipes e principalmente o meu lado, organizador e promotor do evento.
Mas faltou contar um pequeno detalhe. Lembra-se da história da parceria sem final, minha e do Bob Sharp? Pois bem, durante o lançamento da revista Car Brasil, em setembro de 2007, ao qual o Bob compareceu para prestigiar o amigo e editor-chefe Heymar Nunes, ele encontrou o Marcus Brier, diretor de imprensa da Peugeot. O Marcus comentou com o Bob que o Paulo Beccardi, que citei no começo, estava deixando a empresa e pediu uma sugestão de nome para dirigir a Copa Peugeot de Rali. Quem você acha que o Bob sugeriu? Era a segunda vez que o Bob me recomendava para um cargo numa fabricante de automóveis. Parceria sem final!
RB
A coluna “Do fundo do baú” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.
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