Hoje em dia existem muito poucas variações de layout básico no automóvel, fruto, é claro, da convergência de todos para as configurações mais eficientes. Nada mais óbvio, porque afinal de contas, depois de quase 130 anos fazendo carros em escala, a indústria tinha que concordar em alguma coisa.
Mas existem ainda exemplos de carros diferentes. A maioria está em carros esporte, claro, lugar onde predominam consumidores que são apaixonados por carros, e portanto que admiram não só eficiência robótica, mas também o diferente, o criativo e o novo. Nem que esse novo seja, na verdade, reciclado.
A Subaru é uma das poucas marcas que ainda insiste no diferente, mesmo nos seus carros normais de alta produção. Em vez do onipresente motor transversal dianteiro e tração também dianteira, a Subaru continua usando motor de cilindros contrapostos , montado a frente do eixo dianteiro, e tração dianteira ou total. É um esquema realmente muito bom, porque mantém a massa do motor baixa, e próxima do eixo principal de tração. Como no Fusca original no lado oposto do carro, é um esquema que permite capacidade de tração superior, e que ocupa muito pouco espaço. No Subaru, faz o comportamento em curvas do carro também diferenciado, em relação ao carros de tração dianteira “normais”.
Recentemente, a empresa fez um novo carro esporte em conjunto com a Toyota, vendido pelas duas empresas com poucas diferenças entre eles: o Toyota GT86/ Subaru BRZ/ Scion FR-S, conhecidos coletivamente como “Toyobaru”. Neste novo carro esporte barato inovaram mais uma vez colocando o tradicional quatro-cilindros contrapostos na dianteira, mas mais recuado e alto, em cima do eixo dianteiro, e com tração traseira.
Ao contrário do esquema tradicional da Subaru, este não é teoricamente tão elegante. Ao colocar o motor contraposto mais alto, nega uma das grandes vantagens dele, que é o baixo CG (centro de gravidade). Como é um motor largo, nesta posição faz um carro largo também, e impõe restrições para a geometria das suspensões.
Mas isso tudo é relativo: recentemente andamos com um Toyota GT86 (post em alguns dias) e o resultado, por mais deselegante que seja sua configuração básica, ainda assim é sensacional. O carro funciona maravilhosamente bem como carro esporte. E foi assim, conversando literalmente à beira da estrada, admirados com o carro, que o Bob me pediu esta lista: quem, além da Subaru, já usou motor de cilindros contrapostos na frente do carro? Não chega a ser uma lista de dez melhores, porque não são muitos, mas ainda assim, o leitor está convidado a apontar o que esqueci.
Em ordem cronológica:
Tatra T11 (1923-1929)
Hans Ledwinka, o gênio austríaco que criou a fantástica tradição de engenharia original e diferente na Tatra, começou a mostrar a que veio com este carro. Num mundo acostumado com a simplicidade quase agrícola de um Ford modelo T, o T11 de Ledwinka era uma espiadela num futuro bem mais sofisticado: um pequeno e eficiente dois-cilindros contrapostos arrefecido a ar na frente, preso a uma “espinha dorsal” que sustentava todo o resto da parte mecânica do carro. O câmbio era acoplado a um tubo que ia até o diferencial traseiro e as suspensões, independentes nas quatro rodas, eram presas a este conjunto motor/transmissão/tubo. Por dentro do tubo, lógico, ia a árvore de transmissão, mais conhecida por cardã.
Apesar da baixíssima potência (12 cv) a partir de um motor de pouco mais de um litro de cilindrada, era uma revelação em controlabilidade e conforto de marcha. Era também rígido, barato e quase indestrutível.
Ledwinka no futuro inverteria o lado do boxer, colocando-o atrás do eixo traseiro, e no processo criando algo que, inspirando seu conterrâneo Ferdinand Porsche, se tornaria onipresente mundo afora: o VW Fusca.
Jowett Javelin (1947)
Desenhado por Gerald Palmer (antes da MG) durante a Segunda Guerra Mundial, o Jowett Javelin era uma revolução completa para a até então tradicionalista marca inglesa. O motor de quatro cilindros contrapostos e 1,5 litro, OHV (válvulas no cabeçote), era de alumínio e arrefecido a água, e a tração era traseira.
Em 1950 aparecia também o Jupiter, um conversível de dois lugares com a mesma mecânica do Javelin, mas com um chassis tubular desenhado por nada menos que o Professor Doutor Robert Eberan von Eberhorst, o respeitado professor alemão que criou a segunda geração dos Auto Union de competição nos anos 1930.
Citroën 2CV (1948)
Antes da Segunda Guerra Mundial, o chefe da Citroën, Pierre-Jules Boulanger, teve a idéia de criar um veículo barato para os agricultores franceses, para substituir os veículos de tração animal ainda muito comuns então. Algo que, segundo ele, tivesse espaço para uma família, e que pudesse atravessar um campo sem quebrar nenhum ovo em uma cesta colocada no banco do passageiro.
Seu genial engenheiro-chefe, André Lefebvre, fez deste objetivo simples um clássico imortal. Um dos mais simples carros já criados, com uma suspensão confortável e original em desenho, lerdo mas adorável, se tornou um clássico instantâneo. Tinha tração dianteira e um motor de dois cilindros arrefecido a ar de, inicialmente apenas 375 cm³ e parcos 9 cv. Em 1961 aparecia o mais conhecido, e bem menos menos lento 602 cm³ e 29 cv. Mas mesmo sendo um carro extremamente letárgico, é ainda assim um dos mais amados da história.
Teve uma vida longa: de 1948 a 1990. Além disso, sua mecânica serviu de base para uma infinidade de modelos derivados também hoje clássicos: Uma pequena Van de entregas extremamente popular, o mais chique Dyane, o simpático jipinho de plástico Méhari, o avant-garde Ami 6. Até o relativamente moderno Visa dos anos 1980 ainda carregava, em sua versão mais barata, o dois-cilindros contrapostos do 2CV.
Dyna Panhard X (1948)
O mais tradicional dos fabricantes franceses (cujo começo já contei aqui), a Société des Anciens Etablissements Panhard et Levassor, chegou ao pós-guerra como um fabricante de carros de luxo em decadência. Resolveu então fazer uma mudança radical: produzir em série o pequeno carro de alumínio com tração dianteira de Jean Albert Grégoire, um dos mais criativos engenheiros franceses independentes. Mostrado por Grégoire no Salão de Paris de 1946, em 1948 já era produzido pela Panhard.
O pequeno carro, apesar de parecido em layout básico ao Citroën 2CV, era muito mais sofisticado tecnicamente, bem mais eficiente e, também, bem mais caro. O boxer dianteiro bicilíndrico arrefecido a ar era uma pequena jóia mecânica, capaz de chegar a potências específicas incríveis para a época (até 71 cv/l, e quase 100 em competição) com uma suavidade de operação também incrível. O pequeno carro, todo em alumínio, e portanto leve, ajuda a dar um desempenho satisfatório mesmo com apenas 850 cm³ (600 cm³ nas primeiras versões). Além disso, a economia de combustível, e a estabilidade e conforto de marcha eram excepcionais.
Apesar do sucesso contido, encontrou um público fiel e entusiasta, e manteve a veneranda empresa francesa até 1967. Sucessivas evoluções apareceram (Dyna Z em 1954, PL17 em 1959), sempre com melhorias incrementais, culminando com o último Panhard, o 24CT de 1964, um belo e sofisticado cupê, ainda com o pequeno bicilíndrico de 850 cm³. Dizia-se que este carro que podia andar o dia todo a 120 km/h consumindo apenas 6 litros de gasolina para cada 100 km (quase 17 km/l).
Os DB-Panhard, carros de competição criados por Charles Deutsch & René Bonnet, derivados dos Dyna e sucessores, tiveram também uma longa e vitoriosa carreira nas categorias inferiores de cilindrada, inclusive em Le Mans, onde eram os campeões do Índice de Performance, que relacionava desempenho e consumo.
Lancia Flavia (1961)
Ah, a Lancia… Existiu uma marca de automóveis mais obcecada na pureza técnica? O Flavia, seu primeiro de motor contraposto, não podia ser diferente. Com tração dianteira e quatro cilindros, tinha motor todo em alumínio, suspensão dianteira por duplo A sobreposto na dianteira, freio a disco nas quatro rodas e pneus radiais Pirelli Cinturato. Um carro de engenharia refinada, elegante, teoricamente perfeito.
Apesar de ser um carro caro comparando-se com outros de tamanho similar, tinha desempenho superlativo a seu tempo: inicialmente um 1,5-litro de 78 cv, cresceu para 1,8 e 2 litros, culminando na versão 2000 injezione, com um sistema mecânico Kugelfischer e 126 cv.
Citroën GS (1970)
O GS foi uma grande aposta da Citroën. Cobrindo um buraco em sua gama entre os pequenos e baratos 2CV e derivados, e o caro e sofisticado DS, a marca pegou um pouco de cada para fazer seu carro médio de alto volume de vendas. Do 2CV veio o conceito do motor boxer arrefecido a ar de pequena cilindrada, mas muita vontade e disposição. No GS, porém, o boxer era um quatro cilindros, também arrefecido a ar, com cilindrada que ia de 1 a 1,3 litro. Do DS, veio o sofisticado sistema hidráulico de alta pressão e a famosa suspensão hidropneumática.
Juntando o melhor da personalidade de dois clássicos da marca, o relativamente desconhecido GS é considerado por muitos o mais carismático, o ápice da marca em seu auge. Era lerdo, uma tradição então, mas mesmo assim uma delícia depois que se adaptava as idiossincrasias indispensáveis a um Citroën de verdade. Foi grande sucesso de vendas, mas não impediu que a empresa falisse em 1974, fruto dos incessantes e gigantescos investimentos em produto que nunca se pagavam. A tradicionalista Peugeot ficou com os cacos, com os quais reconstruiu uma réplica passável da marca de André Citroën.
O famoso engenheiro inglês Alex Moulton, criador tanto de bicicletas inovadoras quanto a suspensão de cones de borracha do Mini original, teve um carro deste tipo até falecer, e dizia que era o melhor carro jamais fabricado em todos os tempos. Um elogio e tanto para um Citroën especial.
Alfa Romeo Alfasud (1971)
A então estatal Alfa Romeo, impulsionada por um desejo do governo italiano de desenvolver o pobre sul do país, resolveu abrir uma fábrica perto de Nápoles. O carro a ser fabricado nesta fábrica seria a aposta da marca para atingir altos volumes de produção e venda, um carro pequeno de tração dianteira (pela primeira vez na Alfa) que se chamaria, apropriadamente, Alfasud (Alfa – sul).
O carro seria projetado por um austríaco de currículo invejável: Rudolf Hruska trabalhou na firma de engenharia de Ferdinand Porsche antes e durante a guerra, projetando o VW e o tanque Tiger. Depois do conflito, emigrou para a Itália com Karl (depois Carlo) Abarth, para trabalhar na Cisitalia de Piero Dusio. Dali passou para a Alfa Romeo, onde trabalhou em todos os seus grandes projetos do pós-guerra, do 1900 até o Giulietta. Mas sua obra-prima, e talvez o único carro que pode ser chamado de completamente seu, foi o pequeno Alfasud. E com certeza o legado está à altura da pessoa.
O desenho da carroceria era de Giugiaro, contemporâneo e clássico, com capô baixo para aproveitar a baixa altura do quatro-cilindros contrapostos. Freios a disco nas quatro rodas, incomum em carros baratos até hoje, foram usados, com os dianteiros inboard, junto ao transeixo, para reduzir massa não suspensa. As suspensões tinham geometria sofisticada, McPherson na frente e eixo de torção traseiro com braços watt. Com o baixo centro de gravidade do motor, faziam do Alfasud ter uma estabilidade anos a frente de seu tempo.
Mas o melhor era o motor. O pequeno boxer de quatro cilindros arrefecido a água era todo em alumínio, e tinha comando no cabeçote acionado por correia dentada. Todo mundo que já dirigiu qualquer versão deste longevo propulsor, mesmo a inicial e fraca versão de 1,2 litro e 65 cv, é unânime em elogios. O motorzinho é suave como poucos, girador e alegre, uma pequena jóia italiana cheia de brio e alma.
No Alfasud (e no interessantíssimo cupê Sprint) culminou em um 1,7-litro injetado de 112 cv. No sucessor do Alfasud, o Alfa Romeo 33, chegou a 132 cv numa versão de duplo comando no cabeçote e 16 válvulas do mesmo 1,7-litro, e ter versões de tração integral permanente. Quando a Alfa Romeo desenvolveu o substituto do 33, o fez de tal forma que ainda pudesse receber o boxer, então já quase uma lenda. Mas como sua cilindrada não podia ser maior que 1,7 litro, e era bem mais caro que os quatro-em-linha, poucos 145/146 saíram com ele, antes de serem completamente substituídos por motores Fiat, a nova dona da Alfa Romeo. Um motor que deixou saudade.
Lancia Gamma (1976)
Primeiro Lancia desenvolvido com a supervisão da Fiat, o Gamma é mesmo assim original e totalmente em linha com as tradições da marca. Carro topo de gama da Lancia, de luxo, para ele foi desenvolvido um novo quatro-cilindros boxer de grande cilindrada(2,5 litros), todo em alumínio, com comando único no cabeçote, e tração dianteira.
Vendido em duas versões, um estranho sedã fastback e um clássico cupê duas-portas, ambos desenhados por Pininfarina, infelizmente não foi sucesso. Carregava, como todo Lancia de então, caso extremo de alguns problemas sérios: alto preço, baixa confiabilidade e corrosão rápida da carroceria.
VW Gol (1980)
Quando foi lançado, todo brasileiro sabe, o Gol carregava na frente o motor que ia atrás no Fusca. Inicialmente com um 1.300-cm³ de alta rejeição no mercado, depois um melhor 1600 de carburação dupla. Mas foi só com motores do Passat que o Gol decolou e se tornou perene líder de venda. Nada mais justo, porque o velho boxer arrefecido a ar do Fusca era, mesmo em 1980, uma relíquia de um passado distante.
Mas andar num Gol “a ar”, com o motor 1600, é muito interessante. O motor leve e com centro de gravidade baixo realmente transforma a dirigibilidade do Gol, fazendo seu comportamento melhorar muito, especialmente em curvas. Se não fosse o barulho, a falta de desempenho e o consumo alto… Mas se você quer ver realmente a diferença que um boxer faz, esqueça o barulho um pouco e ande num desses depois de um Gol com motor em linha. Uma aula prática que faz qualquer um entender melhor a teoria!
Gurgel BR800 (1988)
João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, quando fez seu carro que pretendia ser o popular nacional, nosso equivalente ao 2CV, ao Fusca, ao Fiat 500, criou também um carro com motor boxer dianteiro. Com tração traseira e carroceria em compósito de fibra de vidro como todo carro da marca, o BR800 carregava em frente algo que parecia metade de um VW 1600, mas arrefecido a água. Pouco depois de seu lançamento, o governo reduzia o IPI para carros de até 1 litro, de 32% para 20%, a Fiat logo lançou Uno Mille com o mesmo preço do BR-800, que tinha IPI especial de 5%, e selava o fim deste carro e desta empresa, uma das únicas iniciativas conhecidas de se tentar uma empresa genuinamente nacional de alto volume de produção. Uma pena.
Além desses 10, existe mais um carro com motor boxer dianteiro que vale menção: o Toyota Sports 800 de 1965. Este, o primeiro carro esporte da Toyota, derivado do sedã Publica, tinha um bicilíndrico boxer arrefecido a ar na dianteira de 800 cm³ e 45 cv, com tração traseira, além de um interessante teto Targa. O direto ancestral do Toyota GT86 que serviu de estopim a este post.
O mundo realmente dá voltas…
MAO