Confesso que me corre um arrepio na espinha quando ouço candidatos à presidência dizendo que irão incentivar ainda mais a produção de álcool sobre estas terras que tanto amo. É uma estupidez sem tamanho.
Que tal desconstruir essa enganação do álcool de uma vez por todas?
Comecemos com essa conversa fiada de que a cadeia de produção do álcool é mais uma fonte viável para a geração de energia elétrica, pois só a queima do bagaço da cana produzido o interior de São Paulo, alimentando termelétricas, geraria energia equivalente à gerada pela hidrelétrica de Belo Monte.
Geraria, sim. Teoricamente há capacidade para isso e até mais, já que Belo Monte, por ser usina a fio d’água (não tem reservatório, não represa água) só vai gerar algo consistente na época das chuvas, justo quando haverá sobra de energia hidrelétrica; sendo, portanto, uma usina estúpida, boa só para alimentar Caixa 2 de partido político e Caixa 1 de empreiteira. Mas voltando à vaca quente, gerar energia elétrica a partir de queima de bagaço de cana seria pegar uma rota no sentido oposto ao que se dirige o mundo inteligente, que hoje faz de tudo reduzir a emissão de CO2 na atmosfera. Não há modo mais primitivo e emissor de CO2 que esse para gerar energia elétrica. Seria como queimar carvão. Foi uma luta danada para que nos livrássemos das medonhas queimadas de cana que infestavam o nosso interior, foram anos e anos para que se reduzisse ao mínimo a queima, e agora querem voltar à mesma poça, e talvez ainda pior. Explico, pois sou da roça e conheço o assunto.
Os talhões de cana eram queimados para que a colheita fosse facilitada para o corte manual. Se antes da colheita manual não houver a queima, o cortador de cana se verá em palpos de aranha, abelhas, vespas, e cobras, e, além de todos esses perigos reais, como ele ganha por tonelada que corta, seu trabalho rende muito mais quando antes há a queima. Mas aí a tecnologia das colheitadeiras de cana se desenvolveu muito lá fora, em países como Estados Unidos e Austrália, e elas aqui chegaram com tudo, viabilizando a colheita mecanizada. Foi um grande adianto, pois não é necessária a queima para a colheita mecânica. Ficamos livres da pestilenta queima, os bichos ficaram livres de serem queimados vivos, e a terra passou a receber camadas de matéria orgânica que antes virava fumaça. Essa camada de matéria orgânica, a que chamamos de palhada, que são as folhas da cana, são picadas e jogadas para trás da colheitadeira, que só leva embora os colmos. Essa palhada fica então cobrindo o solo, e ela, antes de se degradar, o que leva meses, forma uma camada protetora sobre o solo, o que o protege de erosão, cria um ambiente sombrio propício para a saudável variedade da vida microbiana e evita que sementes de mato infestem a roça de cana, o que diminui drasticamente o uso de herbicidas (veneno que mata ervas daninhas). Com o tempo essa palhada apodrece e enriquece o solo de matéria orgânica, o que é muito desejável em vários sentidos, inclusive econômicos, a curto, médio e longo prazos.
Como se vê, a colheita mecânica foi uma evolução econômica e ecologicamente benéfica; e agora inventam que queimar o bagaço da cana para gerar energia elétrica é solução para os nossos problemas. Tá bom…
Bom, o pé de cana gera muito mais massa de bagaço que de folhas. Quando a cana é queimada na roça, o colmo não queima, pois está encharcado de água, e a maioria das folhas verdes também não queima, pelo mesmo motivo. Só as folhas secas queimam. Já o bagaço, que é o colmo sem o sumo (sumo que foi extraído para dele se produzir álcool), se colocado em caldeiras, queima, e é esse bagaço que pretendem queimar para gerar energia elétrica. Como a massa do bagaço é muito maior que a massa da palhada seca antes queimada nas queimadas dos talhões, maior será a emissão do tão abominado CO2, que muitos catastrofistas dizem que vai transformar nossa atmosfera numa sauna infernal.
Não sou catastrofista, mas entendo que diante de nossa ignorância não se deve brincar com a sábia Mãe Natureza e é prudente deixá-la o mais quieta possível, levando a vida sábia dela. Sendo assim, deixemos a emissão de CO2 para os casos realmente necessários e partamos para gerar energia elétrica por meios mais seguros, viáveis e limpos, e eles são muitos; mas agora não cabe discuti-los.
O caro leitor, por favor, que me perdoe por estar sendo longo. Creia que me esforço em ser objetivo, racional, claro e pouco maçante.
Agora, vamos ao álcool como combustível misturado à nossa gasolina (75% G e 25% A). Vejamos a burrice que é.
Por experiência em viagens à nossa vizinha Argentina, onde já percorri milhares de quilômetros, e por conversas que tive com colegas e autoentusiastas hermanos, constatei que os carros de lá, modelos absolutamente iguais aos de cá, só que produzidos para queimar gasolina pura, e queimando gasolina pura, rodam entre 15 a 25% mais do que rodamos por aqui com o nosso “gasálcool”. Fiquemos na hipótese média; adotemos como 20% a diferença, pois esse número bate com o que ouvi, ainda que informalmente, de alguns mestres em combustível no Brasil.
Sendo assim, pego um exemplo de um conhecido modelo de compacto que tanto roda lá quanto cá, e do qual, a partir de dados de fábrica, levantei sua média de consumo em estrada. Lá, com gasolina pura divulgam fazer 16,6 km/l, enquanto que esse mesmo modelo aqui, só que flex e com a nossa gasolina, faz 13,8 km/l. O carro do nosso hermano, portanto, gastará 10 litros para percorrer 166 km. OK? OK. Já nós, com o nosso carro flex e usando a nossa gasolina batizada, para percorrermos os mesmos 166 km gastaremos 12,02 litros. Arredondando, 12 litros.
Nesses 12 litros teremos 75% de gasolina pura, ou seja, 9 litros, e 25% de álcool, ou seja, 3 litros. Bom, mas esses mesmos 9 litros de gasolina pura contidos na nossa gasolina seriam suficientes para um carro dos hermanos rodar 149,4 km (9 litros x 16,6 km/l) e ainda faltam 16,6 km a percorrer, que serão a custa daqueles 3 litros de álcool contidos nos 12 litros do nosso “gasálcool”.
Digamos que resolvamos percorrer esses 16,6 km, que ainda faltam, num carro de mesmo modelo, tudo igual, mesmo motor etc., só que produzido para queimar exclusivamente álcool. Teoricamente, pelas leis da termodinâmica, ele só percorrerá 70% da distância que o modelo argentino percorre por litro de gasolina pura, ou seja, ele fará algo como 11,6 km/l de álcool. Sendo assim, para percorrer os 16,6 km que faltam ele gastará só 1,43 litro, ou seja, ele gastará menos da metade que os 3 litros gastos quando esse álcool estava embutido na gasolina.
Como se vê, basta um pouco de informação e contas da mais simples aritmética para descobrirmos que estamos jogando metade desse álcool, embutido na gasolina, fora. Há quem aceite termos que jogar nosso dinheiro no lixo para sustentar burrices de sucessivos governos e interesses escusos de alguns poucos, mas não creio que seja aceitável jogar no lixo metade das imensas áreas da nossa mais fértil terra agricultável, hoje destinadas ao estéril sistema de álcool. Também não creio que seja aceitável fazer uma reforma agrária às avessas, concentrando nossas melhores terras nas mãos de poucos usineiros. Não creio que seja aceitável tirar o homem do campo — seja o dono da terra ou o trabalhador e sua família — e despejá-lo feito um cão sem dono na periferia da cidade. Isso é criminoso. O que andaram fazendo é criminoso e me admira que tão poucas vozes se levantem contra.
Caro leitor, queira desculpar meu tom de desabafo, mas o tempo segue passando e chega uma hora que aflige além da conta ver ao volante de nosso destino um alienado seguido de outro.
Em resumo, essa conversa toda foi para esclarecer que as contas dizem que metade do álcool contido em nossa gasolina é jogado fora. Foi também para dizer que queimar bagaço de cana para produzir eletricidade é um atraso de vida.
AK