O Passat azul era do meu pai. Na época eu morava na fazenda e vendera meu Super Fuscão que usava para andar na roça para levantar a grana para comprar o Passat, que, claro, me fora vendido por preço de Fusca. Intrinsecamente ele estava ótimo, mas precisava de um tratinho cá e acolá, já que meu pai não dava a mínima pra automóvel. Ele gostou dos carros dele tanto quanto gostei das geladeiras que tivemos em casa; apreciando sua utilidade e mais nada; na base do “se está funcionando, está bom”. Então, ao deixar o Passatão na oficina do Zé Luís, lá em Pirassununga, onde ele ficaria recebendo um trato por uma semana ou mais, e sair para ir embora pra fazenda, vi um Fiat 147 tímido e baleado logo ali estacionado. Ele estava caidinho, tinha lá uns poucos furos de ferrugem, as portas não fechavam nada bem, os bancos, forrados de plástico, estavam meio ondulados e uma ou outra mola parece que saía para tomar um ar; cada pneu era de uma marca, e por aí vai. Tímido, um coitado só esperando ordens e nenhum carinho. E era branco, ou melhor, tinha sido branco, e além de encardido estava como que tatuado com marcas de mãos sujas de graxa, porém, ora, era um 147 e eu gosto do 147 e boa.
Não deu outra. Meu cérebro funcionou rapidamente e no tempo em que a nossa genial presidentA leva para somar um mais um eu já voltara pra dentro da oficina e me agachara para falar com o Zé Luís, que estava debaixo de um carro:
— Zé! Caramba! Agora é que me toquei. Estou a pé. Minha mulher usa a Belina pra fazer as coisas dela com as crianças e eu preciso de um carro pra trabalhar. Vi esse 147 aí fora com as digitais de todos os teus mecânicos. Me vende esse carro.
— Tudo bem, o Zé Luís respondeu. Ele está à venda mesmo. Está feio, mas a mecânica está boazinha. Meia-vida, mas está boa. Dá pra rodar. Tô pedindo mil e cem reais.
— Mil está bom?, perguntei.
— Está. Vá embora com o carro que depois a gente acerta. A chave está no contato, ele disse. O marcador de combustível não funciona, mas tem uma garrafa de Coca família com gasolina no porta-malas. Com esses três litros você chega onde tiver que chegar. As portas não trancam, mas não esquente que ninguém tem ânimo para roubá-lo.
— Beleza! Amanhã eu trago a grana, eu disse me despedindo.
E foi assim que comprei o segundo 147 que tive. O primeiro foi um vermelho, zerinho, logo no lançamento, em 1976, e esse fazia mais sucesso na rua que hoje faz um Ferrari, mas essa é outra história, é uma história de potência, de vigor, de motor preparado pelo Silvano Pozzi, uma história de carburadores Weber gorgolejando legal e esta aqui é uma história de um mirrado em apuros.
Do Zé Luís igualmente comprei um Corcel I anos depois, do mesmo jeitinho, deixando lá um carro para ele cuidar e ao sair e me vendo a pé desamparado sem carro no meio da rua, mas essa também é outra história.
Pois não é que quando o Passat azul ficou pronto o meti no barracão e segui fazendo minhas coisas com o 147 branquinho? Gostei dele, gosto de carro pequeno e simples. E como era valente aquele carrinho! Ia bem na lama, ia bem na roça. Bom carrinho. Só na estrada de asfalto que ele não andava muito bem, não. Ou melhor, ele não andava nada, pois o motor de um litro, na verdade 1,05-litro, estava de meia-vida, mesmo, na base da meia-potência, mas isso foi fácil e baratamente resolvido numa papelaria da cidade, onde comprei um adesivo, desses de colocar em porta de vidro, escrito EMPURRE, e o colei no vidro traseiro. Quem não estivesse satisfeito que o empurrasse. O único inconveniente é que na estrada de asfalto, pista simples, que passa pela fazenda e vai para a cidade, volta e meia tinha caminhoneiro que levava a sério a indicação posta e colava aquele monte de ferros na traseira da minha bamboleante caixinha de fósforos. Quando eu digo colava é porque colava mesmo. Esses Volvo e Scania da cara chata não precisam estar muito longe para que nos encham todos os retrovisores do carro.
Nos casos que bravamente enfrentei com esse 147 os caras colavam tanto que dava pra ler direitinho a marca do caminhão que decidira colaborar com o meu deslocamento: “AINACS”, “OVLOV”, esses eram os mais colaborativos. Guiando o tremelicante e desconjuntado Fiatzinho parecia que o sujeito tinha enfiado o motor do caminhão no porta-malas do carrinho, tal a barulheira de motor diesel turbo que ecoava. E assim a coisa ia, eu pé no talo e mesmo assim o drama só crescendo, até que acontecia alguma coisa com o ar. Parecia que eu entrava no vácuo, e não era só porque eu estava com o pé atolado no acelerador que o Fiatzinho nesse momento passava a deslanchar legal com o ponteiro do velocímetro deitando para a direita até ficar agonizando na horizontal. Aquela velocidade toda não era só às custas do pobre e esforçado milzinho ali na frente, não, que eu sei que não era e já sabia. Fazem isso nas corridas, principalmente nas corridas nos ovais da Nascar, onde o de trás, de tão colado, acaba por “empurrar” o da frente. E isso é situação de carro pau a pau, tamanho igual, e mesmo assim funciona, tanto que formam aquele trem de carros colados, com o da frente puxando e o de trás empurrando.
Bom, se esse tal de vácuo funciona na Nascar funciona em Pirassununga também, uai! E lá íamos nós, o 147 “puxando” o caminhão e o caminhão empurrando o 147, naquela situação delicada. Pensava lá eu: “Será que o sacana está gargalhando? Será que ele está urrando e com a boca espumando? Madonna mia!”. O importante nessas horas é não frear. É óbvio. Não frear. Eu sei. Também sei que você, caro leitor, também sabe. Mas quero enfatizar que naqueles casos citados era não frear em hipótese alguma, houvesse o que houvesse, uma vaca atravessando a pista, um trator, um meteoro caindo na frente, tanto faz. Não frear pra nada. Aquela manha de dar um toque no freio, aqueles toque fraquinho só para acender a luz de freio para o cara de trás entender que é para manter distância, também nem pensar, ainda mais depois que eu colei aquele raio daquele adesivo de EMPURRE lá atrás. Seria uma contradição. E tem gente que fica fulo da vida com gente que se contradiz, e vai saber se o caminhoneiro é um desses que se enraivecem com contradições. Então o jeito era agüentar a mão e, se possível, achar um espaço nos pensamentos e ir tratando de encomendar a alma. Bom, sobrevivi, imagino que graças à calma que nos consola e ajuda a agir quando estamos diante do inevitável.
Mas isso aconteceu poucas vezes, umas quatro ou cinco nos dois anos que acabei ficando com o 147 encardidinho. Fora esses dramas passageiros, o resto foram só alegrias, principalmente para os outros. Minha mulher até hoje se lembra do quanto uns bebedores de cerveja riram alegres às suas custas por causa daquele 147. Acontece que minha mulher não andava de jeito nenhum naquele 147. Acho feio isso, esse negócio de preconceito, seja lá qual for, e minha mulher tinha um preconceito danado com o coitado do meu 147. Então ela, preconceituosa, não entrava no carro. Guiá-lo, muito menos. Ou era porque ia sujar sua roupa, ou era porque ela tossia quando subia aquele pó lascado de um ou outro buraco do assoalho, ou era porque quando chovia entrava borrifos d’água pelo vão entre o teto e a porta, ou era porque uma ponta de mola lhe prendia nas calças jeans e não a deixava sair do carro, essas coisas. Tudo preconceito, como o leitor pode ver.
Mas acontece que uma vez tive que viajar a trabalho e, não me lembro por que, o Passat não estava lá, o emprestei para alguém, não lembro, então tive que ir com a Belina da minha mulher. Viagem meio longe pra comprar vaca, coisa de um ou dois dias, e nessas minha mulher teve que ir para a cidade com o Fiat, já que não havia outro meio. Imagino que tenha ido resmungando um monte, costume próprio das mulheres quando contrariadas. E assim, ela, toda arrumadinha, como sempre, parou perto de uma farmácia para comprar alguma coisa, só que a vaga achada era bem em frente a um bar daqueles que colocam mesas de plástico e cadeiras de plástico e os cavalheiros bebem cerveja até escorrer pelo pescoço.
E ao sair da farmácia veio o susto. Os cavalheiros, decerto para se divertirem, resolveram empurrar o 147 dali. As portas do bichinho, lembre-se caro leitor, não trancavam, e isso algum deles sacou por ver que minha mulher não passou a chave na porta. E enquanto uns três ou quatro bêbados empurravam o 147 e com ele dobravam a esquina, outros tantos se esborrachavam de rir com a cena e os gritos de fúria de minha esposa: “— Parem aí, seus vagabundos! Esse carro é meu! Parem! Parem! Vou chamar a polícia!”. E toca ela a correr atrás do carro, e toca os caras deixarem o coitadinho do 147 atravessado no meio da rua e eles se mandarem correndo e rindo a ponto de rachar as panças cervejeiras.
Bom…, não preciso descrever ao caro leitor — principalmente se você for casado e também experiente montanhista — como foi a bronca que ao chegar em casa levei por causa do ocorrido com esses solícitos cavalheiros. Digo casado porque só depois de casado é que um homem descobre a grandeza da fúria que uma doce mulher abriga em seu doce íntimo. As namoradas, modestamente, nos escondem coisas de que são capazes, dentre elas sua potência de fúria. E também digo montanhista porque só um experiente montanhista teve a oportunidade de vivenciar uma avalanche, um dos poucos fenômenos naturais comparáveis a essa fúria citada.
Coincidentemente, vendi o 147 por mil e cem reais na manhã seguinte. Rodei dois anos com ele, poupei meu Passatão bacana dos trancos e do pó da roça, e ainda ganhei cem reais nas costas do pobre 147. Mas foi por uma causa justa: era ele ou eu.
AK