Nas últimas semanas, dois fatos vêm gerando uma série de notícias que não ocupam as primeiras páginas dos jornais ou dos sites noticiosos, mas, como uma sombra, está transformando o mundo digital. Há prenúncios de uma guerra no ar. Não uma guerra ruidosa de bombas, tanques e canhões, mas uma guerra silenciosa de telas, chips e bytes e que ameaça tomar o mundo.
A polícia da Suécia apreendeu os servidores do maior site de pirataria da internet, o “The Pirate Bay”, derrubando o serviço que há mais de 10 anos vem dando dor de cabeça às gravadoras e aos estúdios de Hollywood. Depois de tanto tempo tentando derrubar o site, alegando prejuízos, gravadoras e estúdios de Hollywood amargaram uma estranha estatística: a derrubada do site não fez a mínima diferença na pirataria.
O outro fato que vem gerando notícias é o ataque de crackers (tipo de hacker que objetiva ações malignas) à Sony. Houve vazamento de filmes inéditos para as redes de pirataria, de documentos internos, expondo conversas e dados sigilosos da companhia. A Sony e a rede de cinemas foram postas de joelhos e, ao menos inicialmente, cederam às ameaças dos crakers terroristas e desencadeou uma sucessão ainda não terminada de eventos.
O FBI afirma que o ataque teve envolvimento da Coréia do Norte, e o presidente Obama ameaça uma retaliação. É a primeira vez que vemos um ataque de crackers se tornar um problema diplomático grave.
O caso levou toda indústria cinematográfica a exigir que pesadas leis de direitos autorais (SOPA, Stop Online Piracy Act, e PIPA, Protect IP Act), que já foram engavetadas, sejam postas em prática.
O fato é que, historicamente, todas as vezes que se desejou criticar a política de algum país, Hollywood sempre usou países fictícios em seus filmes (“Ao sol de Parador”, por exemplo), mas no filme que é o foco da suposta ação dos crackers (“A Entrevista”), usa-se nominalmente locais e pessoas reais diretamente, em especial desafetos da política americana.
Dado o passado sobre manipulação de fatos ser comum nos EUA (como das fictícias “armas de destruição em massa” alegadas como motivo para a ação militar contra o Iraque de Sadam Hussein), não se sabe realmente até que ponto o caso de “A Entrevista” não é um factóide fabricado para empurrar uma legislação draconiana já recusada pela população e ao mesmo tempo poder cutucar um antigo desafeto de Washington.
Porém, nem tudo será fácil. Além dessa posição se antepor aos interesses de outras grandes empresas como Google e Facebook, essas leis irão trazer para o campo de batalha grupos de hackers e crackers que até agora estavam de fora dessa briga. O caso promete ainda muitos desdobramentos.
Todos esses eventos estão ocorrendo muito rapidamente e irão modificar o padrão do mundo digital que conhecemos hoje para algo completamente novo. Mas, pela escalada dos fatos, esta é uma velha Fênix que terá de ser queimada na fogueira da guerra digital antes que uma nova renasça a partir das suas cinzas. Muitos especialistas vêm profetizando essa guerra há anos.
Transformações tecnológicas sempre impactam em transformações sociais e econômicas. A carroça foi principal meio de transporte de carga por milhares de anos, mas o caminhão tomou seu lugar em questão de décadas. Hoje as pessoas nem se lembram das carroças. Não seria diferente com as transformações promovidas pela tecnologia digital.
Mas nunca as corporações foram tão poderosas e nunca transformações técnicas afetaram modelos de negócio e interesses econômicos numa escala tão profunda como agora. Quando se tem um modelo de negócios de sucesso por décadas, não é fácil admitir que a realidade mudou e tenta-se manter o status quo tanto quanto possível.
Ocorre que o meio digital é um universo de entes imateriais, e com propriedades muito diferentes daquelas do mundo físico em que habitamos. Preservar direitos de uns dentro do mundo digital exatamente como foi feito no mundo físico desde o princípio da História significa muitas vezes ferir direitos de outros. Muitos defendem novos direitos proporcionados pelo mundo digital, enquanto outros tentam a todo custo preservar antigos direitos, incompatíveis com a dinâmica do meio digital. O choque era inevitável.
Explanar por alto algumas destas contradições, transformações e de algumas propriedades estranhas desse meio, é o foco da atual série. O que pode ser dito nesta série pode ferir o modo de pensar de muitos, mas o texto tenta ser imparcial ao máximo. Com o automóvel caminhando a passos largos para esse meio digital, certamente ele entrará para este turbilhão de eventos, e o painel do seu futuro carro poderá se tornar o palco de mais uma batalha dessa guerra silenciosa.
Uma situação simples, mas sutilmente estranha
Vamos imaginar que um consumidor tenha acabado de comprar o carro dos seus sonhos mediante um financiamento que pesa no orçamento doméstico, e este é o único carro da família. Porém, logo ao sair da concessionária, ocorre um acidente e o suporte de um retrovisor externo é quebrado.
O suporte do retrovisor não tem nada de especial. É apenas uma peça plástica, e o dono volta à concessionária para comprar outra peça. Mas, chegando lá, descobre que que ela custa R$ 500,00 mas não existe a peça em estoque, e normalmente demora meses para ser entregue.
Já temos aqui uma coleção de situações desconfortáveis na relação entre o dono do carro e seus fornecedores. O retrovisor é item de segurança obrigatório. A falta dele, além de prejudicar o uso do veículo, pode gerar multa e apreensão. O dono não pode circular com este carro até regularizar a situação dele. Porém, ele precisa do carro para as necessidades da família, e optar pela locação de outro veículo é simplesmente inadmissível apenas porque o fabricante não disponibiliza uma mera peça de plástico. Também é desconfortável que uma simples peça de plástico seja tão cara e tão difícil de adquirir.
Por outro lado, a situação é cômoda para o fabricante, distribuidores e concessionárias. Estoques de peças de baixa rotatividade significam que um capital foi imobilizado sem previsão de ser liberado e, para baixar custos evita-se essa situação não tendo estoque de peça alguma. Quando o consumidor precisa da peça, é sempre o lado mais fraco a ser penalizado na relação de consumo, só consegue a peça através do fabricante e dos distribuidores, e receberá sua encomenda apenas quando uma unidade sobrar do processo produtivo.
Aí este consumidor faz uma descoberta. Existe uma alternativa. Um amigo dele acabou de comprar dois equipamentos muito interessantes de última geração e está ansioso para experimentar a novidade. Um scanner e uma impressora 3D.
Ele consegue emprestada uma peça igual à quebrada, leva-a ao amigo, escaneia a peça para formar um modelo 3D no computador e manda imprimir a peça. Em questão de poucas horas, ele tem uma peça prontinha nas mãos para montar no seu lindo carro novo e pode voltar a usá-lo.
É muito provável que a cópia não seja feita com o plástico adequado, não tenha a mesma resistência mecânica e possa se deteriorar rapidamente com as intempéries, mas, e daí? Outra cópia pode ser feita à hora que precisar substituir a atual, e com o custo da peça original se faz 50 cópias pela impressora.
A situação só descamba para a distorção. O dono do carro pensa:
– Por que pagar R$ 500,00 numa peça original e esperar 3 ou 4 meses, se é possível fazer uma na hora ao custo de R$ 10,00?
A sensação é a de ser ludibriado e leva ao próximo passo. Ele pega o arquivo digital da peça em 3D e disponibiliza para download pela internet para quem mais precisar dela.
Há alguns sentimentos que se somam aqui, já bastante pesquisados, que amplificam esse comportamento:
– Compartilhar faz parte do nosso instinto social. Assim como gostamos de confraternizar com amigos em uma festa regada a fartura de comida e bebida, as pessoas fazem o mesmo com arquivos digitais;
– Como não há uma subtração material, as pessoas sentem-se confortáveis por não verem nesses compartilhamentos um ato economicamente ruim e moralmente condenável;
– Nossa cultura e nossos hábitos estão permeados de heróis subversivos e é um dos alicerces da contracultura. Batman, Hulk, Zorro, todos personagens “bandidos” que são endeusados, inclusive pela própria indústria do cinema e com os quais nos identificamos e que acreditamos como perfeitamente justificáveis seus atos ilegais.
– Há um certo espírito de “Robin Hood” no ato de compartilhar, de tirar riqueza e poder dos ricos opressores e dar aos pobres oprimidos.
Com o tempo, este ato se repete com o dono do carro e com seus conhecidos, até o ponto que se torna natural por toda uma faixa da sociedade. Quem a pratica não vê nada de errado no ato em si.
É a escalada da pirataria, mesmo entre pessoas de bem.
Conforme a tecnologia de impressão 3D for se tornando mais e mais popular, mais os donos de carro a usarão para fabricar em casa as peças que necessitam. Se tornará até a primeira alternativa para muita gente. É claro que uma hora isso vai afetar o setor de autopeças, e em seguida virá o choramingo já visto em outros setores: “Isso é pirataria!!!…”, “Pirataria além de crime é imoral…”, “Quando você pratica a pirataria está participando de um crime…”, “A pirataria vai tirar o pão da mesa de muitos trabalhadores honestos…” …
As pessoas de bem não enxergam que estão praticando algo errado, mas ser chamado de ladrão é pesado, especialmente quando a alternativa proposta como moral e legal abusa no preço e na disponibilidade da peça. Isso reforça ainda mais os sentimentos que levam à pirataria, em especial o sentimento de “Robin Hood”.
Há vários estudos sobre o que é chamado de “pirataria”, e há diferentes tipos de práticas que acabam enquadradas sob essa classificação genérica. Alguns tipos realmente são nefastos, principalmente os que envolvem lucro e crime organizado, porém outros são fenômenos naturais do meio, que tendem a trazer o sistema sócio-econômico de volta a um equilíbrio. Entretanto todos são chamados genericamente de “pirataria” por aqueles que tem interesses feridos por essas práticas.
Outro aspecto importante é entender que muitas das práticas chamadas genericamente de “pirataria” são parte integrante da natureza descentralizada da rede. Computadores são feitos para comunicar e trocar dados e é isso que é essência da pirataria. Sendo parte natural do meio, a pirataria nunca será completamente eliminada, mas ela pode ser reduzida, controlada e pode ser até benéfica em muitos casos.
Quando alguém abre a página do AUTOentusiastas, o computador do leitor se comunicou com o servidor da página e faz uma cópia de arquivos pela rede para exibição, e quando alguém baixa uma música pirata da internet tecnicamente está fazendo a mesma coisa, mas a primeira ação não só é legal como é desejável, enquanto a segunda é regularmente chamada de pirataria. Isso torna muito tênue os limites entre o uso legal e ilegal de arquivos, dando espaço para diferentes interpretações.
Assim, a dita “pequena pirataria” (aquela praticada para consumo próprio) é então apenas a classificação moral que fazemos de algumas variações de práticas naturais dentro da rede.
Exemplo de quanto o julgamento é moral, um dos milagres de Jesus mais reverenciados pelos católicos é a multiplicação dos pães e peixes durante o sermão da montanha. A situação é a mesma da multiplicação das músicas e filmes pela internet, mas sob a ótica moralista atual, Jesus cometeu o crime de pirataria, violando o direito de padeiros e pescadores e causando-lhes enorme prejuízo. Tente dizer isso a um padre.
Se é impossível acabar completamente com a pirataria na rede, por outro lado é possível reduzi-la por meios de práticas de relações mais equitativas e também aprendendo com ela e até tirando proveito dela. Resolver o problema da pirataria significa, antes de mais nada, se despir do preconceito, entender o que a pirataria realmente representa para conviver com ela. Mas isso exige, sobretudo, desprendimento de antigos tabus e modelos preconcebidos, além de espírito aberto para entender esse estranho mundo novo.
O mero discurso moralista não acabará com ela, e atos deliberados para afrontá-la só servem para fortalecê-la ainda mais.
O “fair use”
A EFF (Electronic Frontier Foundation) é uma fundação especializada em direitos autorais em meio digital, e defende o “fair use” (“uso justo”) dos bens de origem intelectual. Ela aponta que muitas das práticas chamadas popularmente de “pirataria” ocorrem por desequilíbrios nas relações entre as partes.
Vejamos novamente a questão do retrovisor. Antes das impressoras 3D, o dono do carro estava nas mãos do fabricante. Se estocar a peça representava imobilizar capital, uma idéia abominável a qualquer capitalista, então simplesmente são se fabrica a peça para este fim. É uma ação do fabricante em benefício próprio e em detrimento do consumidor. Se o consumidor desejar a peça, ele que espere a sobra do próximo lote. Se o consumidor não tem outra fonte para a peça, uma peça de R$ 50,00 pode ser vendida a R$ 500,00, e ainda assim apenas quando for conveniente para o fornecedor. É um fenômeno de monopólio que distorce o valor e as condições de venda da peça, em favor do fabricante em detrimento do consumidor. Quando é o consumidor, pequeno e fraco, reclamando do preço e do prazo de entrega da peça, é apenas um voz na multidão contra o grande e poderoso fabricante, e ninguém nota a distorção.
Porém, quando surge uma nova tecnologia que abre um caminho alternativo, barato e prático de ser usado para o usuário obter a peça, como é a impressora 3D, e os consumidores passam a usá-la em larga escala, isso afeta as vendas do poderoso fabricante. Aí ele faz muito barulho contra a “pirataria”.
É fácil perceber no caso do retrovisor que não só a prática dos consumidores é ruim, mas a prática dos fornecedores também é. Já sabemos que o ato de copiar a peça do retrovisor foi um ato de pirataria, e também já sabemos que “pirataria” é uma designação moralista do lado que se sente lesado pelo ato do dono do carro.
Falando de uma forma genérica, “pirataria”, a partir da posição do fabricante e distribuidores, é o abuso de um poder do consumidor em detrimento de direitos que fabricantes e distribuidores possuem.
Mas o que aconteceria se usássemos os mesmos parâmetros de julgamento no sentido oposto, do consumidor para os fornecedores?
Quando fabricantes e distribuidores abusam de sua posição dominante para maximizar lucros pessoais, seus atos não implicam em uma falta consistente da peça e o abuso do preço para o consumidor, portanto uma ação lesiva a ele?
O julgamento moral não só pode ser invertido, como leva à conclusão que a prática de venda da peça do retrovisor por quem de direito é uma forma de “pirataria”, embora ninguém lhe dê esse nome.
Esta é uma conclusão estranha. Quem acusa o lado poderoso de pirataria? Mas a sensação em cada consumidor que já passou por esta situação é precisamente essa, e ela acaba sendo a mola impulsora para o seu próprio ato de pirataria.
Portanto, a “pirataria” do dono do carro nada mais é, na maioria das vezes, uma oposição à prática de “pirataria” do fabricante e seus distribuidores.
Se alguém lembra, falei que todo Universo conspira para alcançar um equilíbrio, criando a figura do Yin e Yang, e aqui é um bom exemplo disso. São oposições de força que buscam um equilíbrio dentro de um universo dinâmico. Quanto mais um lado radicalizar sua ação para um lado, uma reação tão extrema quanto irá surgir no sentido oposto.
Entretanto, apesar da pirataria cruzada entre as partes seja uma tomada de equilíbrio do ambiente, ela é uma radicalização de reações entre opostos. Esta radicalização é prejudicial a ambas as partes. O melhor para todos é buscar um equilíbrio mais próximo do centro. Há menos atritos e tensões menores entre as partes.
Então, a idéia do “fair use” é criar uma relação mais franca entre fornecedores e consumidores, de respeito mútuo aos direitos de todas as partes.
Se o fornecedor oferecer a peça a preço justo e prazo realista, haverá poucas razões para o consumidor apelar para a saída alternativa da pirataria. Porém este é um aspecto que muitos acham polêmico, porque não acreditam que a mudança de posição de um implicará na mudança de posição do outro.
Direito autoral e suas diferentes violações
Existem bens intelectuais na mesma medida que existem bens materiais. Quando nos referimos a livros, artigos, fotografias, filmes, softwares, estamos falando de bens puramente intelectuais, também chamados de obras de autor. Bens intelectuais possuem uma propriedade importante: exigem enorme esforço para gerar a primeira cópia, porém as cópias seguintes são muito baratas de ser reproduzidas.
Vamos pensar em um filme. É preciso que os autores escrevam os scripts, é preciso construir os cenários, os atores precisam interpretar, os câmeras precisam filmar, depois as gravações precisam ser editadas, gerados os efeitos especiais, e tudo sob a coordenação de um diretor. Até gerar a primeira cópia definitiva do filme, muito dinheiro é gasto e muito esforço é despendido.
Entretanto, depois da cópia-mestre ser finalizada, gerar as cópias que irão para o cinema ou a produção dos DVD sai muito barato.
Quando alguém compra um DVD e paga R$ 40,00 nele, pensa que está pagando pelo material gasto no disco, na caixa e na capa. Errado. Isso pode custar menos de R$ 1,00 em processo de produção em larga escala. Fora os impostos, o que o consumidor está pagando na verdade é por uma coisa quase imperceptível.
Olhe a imagem a seguir, e repare na frase em destaque:
Quando alguém compra um DVD e paga R$ 40,00 nele, quase todo o custo, além de impostos, é para pagar por essa declaração quase imperceptível que está impressa na capa em letras miúdas. Essa declaração é uma licença de uso, e nos termos desta licença de uso é expresso sob quais formas o consumidor pode ou não usar o conteúdo do DVD, segundo os desejos do fornecedor.
O direito de uso de uma obra intelectual é um bem imaterial que não pode ser extraviado ou roubado e é muito específico sobre a imaterialidade da obra, e gera direitos quase desconhecidos.
Quando o consumidor extrai o vídeo do DVD adquirido legalmente e o converte para assistir no seu smartphone, ele não comete crime algum. Como o direito de uso se refere a apreciar a obra, a mídia de suporte não é relevante e ele pode fazer a conversão de DVD para arquivo digital para assistir no smartphone. O mesmo vale em muitos países, há ao direito de fazer pelo menos 1 cópia de backup da obra.
Digamos que o DVD sofreu um acidente, foi danificado e o dono deseje outro. O dano do DVD não implica na perda de direito de assistir a obra. É direito do consumidor ir até a loja e comprar outro DVD apenas pelo custo da mídia, porque ele não tem que pagar novamente por um direito que ele já possui.
Digamos que o dono do DVD pense em comprar uma cópia em BluRay com mais qualidade. Direito de assistir a obra ele já tem e esse direito é completamente avulso de questões técnicas, como a resolução da tela e tipo de mídia de suporte, então ele tem o direito de pagar apenas pela nova mídia do Bluray, o que é muito mais barato que pagar o preço do disco completo.
Mas quem já ouviu falar nisso? Nas lojas, ou paga de novo o preço cheio ou fica sem, e se o consumidor exigir seus direitos vai passar por uma situação de constrangimento.
Porém, se o dono do DVD já pagou pelo direito de assistir o filme, ir na internet e baixar o mesmo filme para assistir em casa também não constitui violação ao direito de autor, mesmo que a fonte seja pirata.
Essa desinformação é uma violação não só de direitos do consumidor, como fere o “fair use”.
Visto sob este ponto de vista, a prática comercial do DVD que oculta e nega direitos legais do consumidor é uma forma disfarçada de pirataria corporativa em larga escala. A resposta a isso é um incentivo à pirataria pelo lado do consumidor.
Alguém que tenha comprado uma música ou um filme tem direito de apreciar a obra individualmente onde e quando quiser e na mídia que desejar. Ele também tem o direito de fazer cópias de segurança. Bloqueios ao processo natural de cópia entre mídias diferentes é amplamente praticada pela indústria fonográfica e cinematográfica como forma de defesa contra a pirataria.
A indústria trata o consumidor como criminoso em potencial antes dele sequer ter comprado os direitos sobre a obra e o único recurso do consumidor para exercer estes direitos é apelar para a pirataria. Numa sociedade democrática, os direitos de poucos nunca devem prevalecer sobre os direitos da maioria. Portanto, tais mecanismos são questionáveis a partir de seus princípios.
Essas proteções também tornam o uso do material licenciado mais complexo e chato, enquanto a pirataria proporciona um uso cômodo, sem interferências. Assim, um mecanismo que deveria ser usado para evitar a pirataria acaba por incentivá-la.
Novamente vemos o quanto o termo “pirataria” é um termo moral e assimétrico. Ele sempre se refere a práticas inconvenientes que o consumidor pratica contra corporações, mas ninguém usa o termo quando corporações exercem práticas lesivas ao consumidor e até as disfarçam como algo legítimo. Uma prática não justifica a outra, mas uma leva à outra.
Estas são situações de distorção assimétrica a favor do fornecedor que mais à frente desemboca na pirataria e no “hacking” (outra alegada forma de pirataria segundo a indústria) de equipamentos pelos consumidores.
No exemplo do retrovisor, a questão da obra de autor sutilmente está envolta. Quando o dono do carro escaneou e imprimiu uma nova peça, ele não roubou uma peça física do fornecedor, mas cometeu um ato onde o fabricante deixou de lucrar com a venda de uma peça original. Este tipo de ato é enxergado do ponto de vista legal como violação dos direitos de autor e portanto, pirataria. Legalmente é crime.
A peça original não é apenas um amontoado de plástico. Designers e engenheiros determinaram o desenho da peça para ela ser estética, funcional e resistente, atributos que são de origem intelectual, portanto a peça é um bem em parte material e em parte intelectual, e por esta segunda parte, protegido pelas leis de direitos autorais.
Direitos autorais são a arma da indústria para regular a fabricação de peças paralelas, por exemplo. Só fabricantes autorizados pelo autor (o fabricante original) podem utilizar o desenho para a fabricação de peças de reposição.
Embora o caso seja oficialmente considerado crime contra o direito do autor, há todo um conjunto paralelo de interpretações que não entende este ato como criminoso.
Quando o dono comprou o carro, este todo é fruto de um processo de criação intelectual e a passagem de propriedade do veículo para o dono não deixa de ser uma transferência tácita de direito de uso sobre a parcela intelectual do veículo. Então, assim como no caso da música ou do vídeo, reproduzir a peça para uso no próprio carro não constitui ofensa ao direito de autor do fabricante, uma vez que o dono do carro já foi licenciado no ato da compra do veículo.
Além disso há outro questionamento importante. O dono do carro procurou a concessionária e não havia sequer previsão de disponibilidade da peça, indicando que ela não é elegível de ter estoque regular. A falta de oferta da peça oferece duas interpretações. Uma peça que não está disponível é uma peça que não será vendida, e se fabricantes e distribuidores não se esforçam para a reposição de estoques, a preocupação com o lucro sobre a peça passa a ser questionável. Pode-se também interpretar a situação que ao negar uma peça necessária ao uso do veículo, fabricantes e distribuidores estão violando os direitos de uso do dono do carro. A pirataria do dono do carro neste caso, mesmo que ilegal no texto da lei, torna-se juridicamente justificável. Ela não fere um direito de lucro de alguém que ostensivamente demonstra não ter vontade em lucrar com o produto e preserva o direito de uso do dono do carro mesmo sob a negativa dos fornecedores legais.
Por outro lado, o caso se torna claramente um crime se o amigo do dono do carro aproveitar o modelo 3D e sair vendendo peças com objetivo de lucro.
Por situações estranhas como estas, no Brasil e em vários países (entre eles, a Suíça), apesar do que diz a lei escrita, existe a interpretação jurídica de que a prática de pirataria por parte do usuário para consumo próprio não constitui ofensa ao direito autoral, e portanto não constitui crime. Nestes países, o que categoriza a pirataria é ao ato de obter lucro a partir dela.
Essa briga é boa, e a melhor resposta para ela sempre passa pelo “fair use”. Se o fabricante oferecesse a peça com pronta disponibilidade e preço justo, o consumidor não precisaria apelar para a pirataria. E simples. Sempre haverá alguém apelando para a pirataria, mas a quantidade de pessoas praticando a pirataria é inversamente proporcional à adoção do “fair use”.
Todas as vezes que aparecerem notícias sobre a pirataria, tenha duas certezas. Sempre existe o reverso da moeda nesta questão, de uma pirataria que não é chamada por esse nome mas que é propositalmente colocada à sombra das discussões. E a melhor resposta para o problema sempre passa pelo “fair use”.
O problema é cada parte persistir em práticas que violem os direitos do outro lado e a manipulação assimétrica do termo “pirataria”.
Um pouco de História
Aquilo que hoje comumente chamamos de “pirataria” é uma prática que vem de tempos imemoriais, e nem sempre ela foi prejudicial. A diferença com os dias de hoje está no gigantesco poder de multiplicação e disseminação através da automação do computador e na imaterialidade dos arquivos digitais, permitindo a pirataria em larga escala.
Durante a Santa Inquisição, muitos livros eram proibidos e sua comercialização era tão reprimida e criminalizada quanto hoje é o tráfico de drogas. Mas a proibição não acabou com os livros como pretendia. Livros proibidos eram mais caros justamente por serem os mais perigosos. Bastava um exemplar chegar às mãos de um livreiro, e este se punha a fazer cópias, muitas vezes até traduzindo para outras línguas.
Este processo salvou muitas obras importantes da extinção, como Dom Quixote de La Mancha, onde todos os originais foram perdidos na Espanha, mas seu conteúdo foi preservado e disseminado pelos livreiros holandeses. Miguel de Cervantes jamais recebeu qualquer quantia por sua obra-prima reproduzida sem permissão na Holanda e dali para o mundo, mas sua obra tornou-se imortal graças à pirataria. O fenômeno da pirataria, do ponto de vista do curto prazo pode ter sido danosa ao autor, mas foi benéfica à História em longo prazo.
A História está cheia de queima de livros por autoridades que querem suprimir idéias discordantes do modelo estabelecido, enquanto a pirataria ilegal preservou estas obras para as gerações seguintes. Nazistas, os comunistas de Mao Tse Tung, o faraó Akhenaton, o incêndio da biblioteca de Alexandria pelos cristão radicais… todos tentaram censurar idéias pela queima de livros, mas as obras que eles tentaram suprimir sobreviveram graças à pirataria e criaram o mundo em que vivemos.
A pirataria não é um fenômeno puramente negativo como tanto se apregoa hoje em dia. É antes um comportamento complexo e natural do sistema, e que pode ser visto como ruim sob um certo ponto de vista e benéfico sob outro.
Não são leis escritas e discursos unilaterais e maniqueístas que vão eliminá-la porque ela está no cerne da própria natureza humana. Combatê-la é torná-la mais forte, e por isso, não é a forma mais inteligente de lidar com ela.
Não se trata portanto de endeusá-la ou demonizá-la como tantos fazem. É um fenômeno social que precisa ser aceito e entendido como realmente é, ou todos sairemos perdendo com ela.
Na próxima parte, o desafio de novos modelos de negócios.
AAD