O AK nos brindou quarta-feira passada com a matéria sobre seu tio Roberto, o quanto este lhe ensinou sobre dirigir, inclusive como reduzir de segunda para a primeira não sincronizada no seu Jaguar XK120. Como os carros só passaram a ter a primeira sincronizada na virada da década de 1950 para a de 1960, para a maioria dos motoristas, especialmente aqueles que dirigiam carros com motor de baixa cilindrada, aquele instante entre a segunda não ser mais suficiente para o motor desenvolver a potência necessária para o carro vencer uma subida íngreme, e decidir o que fazer, na maior parte das vezes obrigando a parar para só então pôr a primeira, era de autêntico terror, só comparável ao motorista aprendiz arrancar numa ladeira com carro de câmbio manual. O uso fácil o câmbio hoje era completamente diferente cerca de 70 anos atrás, quando o mundo já tinha razoável taxa de motorização.
O Volkswagen Sedã, por exemplo, em que uma das suas virtudes logo notada foi a facilidade e a diversão do uso do câmbio, começou sua vida de fato em 1946, com uma caixa sem nenhuma sincronização em todas as marchas. Era preciso ter habilidade especial para dirigir aquele novo e estranho carro. Só depois que Heinrich Nordhoff assumiu o comando da fábrica, em janeiro de 1948, por concessão das tropas de ocupação inglesas, e viu que para poder exportar o Volkswagen e obter as divisas estrangeiras de que tanto necessitava seriam necessários vários aperfeiçoamentos no então rústico carro, inclusive no visual, foi que a 2ª, 3ª e 4ª passaram a ser sincronizadas. Era o modelo De Luxe, lançado em 1949, em acréscimo ao que passou ser chamado de Standard (produzido até 1952).
Esse aperfeiçoamento, isoladamente, pode ser considerado o fator que deu impulso ao sucesso do modelo no mundo todo. Naquele início dos anos 1950 era realmente o grande destaque do VW, a facilidade (e a diversão) de passar marchas. Não havia nenhum carro que se comparasse a ele nesse aspecto.
Contudo, levaria cerca de dez anos para que o Fusca e diversos carros ao redor do mundo ganhassem sincronização na primeira marcha. Pesquisei bastante e até o momento não achei o carro que tem o crédito dessa primazia. No Brasil, o VW Sedã começou a ser fabricado em São Bernardo do Campo em janeiro de 1959 e só em 1961 passou a ter primeira sincronizada. O FNM 2000 JK, de 1960, já a tinha, mas o Renault Dauphine (depois o Gordini e o 1093) nunca a tiveram até a linha ser descontinuada em 1967. Outro foi o DKW-Vemag, que começou com primeira não sincronizada em 1956 e só em 1960 ganhou o recurso; o utilitário Candango 4 nunca o teve.
Os motivos de a indústria automobilística demorar a sincronizar a primeira não são conhecidos, mas presumo tratar-se de alguns fatores acumulados, como custo e complicação, falta de necessidade no caso de motores maiores, e grande diferença de relação entre 1ª e 2ª que dificultava a sincronização. De qualquer maneira, a tecnologia acabou sendo dominada e primeira “seca” (apelido de primeira não sincronizada, também “queixo-duro”) passou à História.
Lembro-me do primeiro VW lá de casa, em 1953, eu treinando fazer o que eu lia nas revistas sobre automóveis, a dupla-embreagem para passar à primeira com o carro andando, logo conseguindo êxito. Aquilo deliciava o adolescente de 11 anos. Um dia, ao dirigir o Citroën 11 do meu tio Paulo, que me ensinou a dirigir, ele no carro, claro, fiz a redução e ele ficou surpreso, pois acreditava que só era possível parando o carro.
Anos mais tarde, eu já sócio da concessionária Volkswagen, um amigo apareceu lá com um Fiat 850 Spider, de motor traseiro, e fomos dar uma volta. Na primeira engatada da primeira com o carro em movimento escutei um “nhéc”, que estranhei e julguei tratar-se de defeito ou mesmo imperfeição do sincronizador, apesar de a marcha entrar perfeitamente.
Não demorou para que eu dirigisse o Fiat 147, no seu lançamento em setembro de 1976, ao qual compareci acompanhando o editor do caderno de automóveis Carro Etc. do jornal O Globo, Fernando Mariano, a seu convite, e notasse o mesmo ruído ao engatar primeira com o veículo em movimento. Só quando passei a trabalhar na Fiat, em agosto de 1978, entendi o porquê do tal ruído: a luva sincrônica de 1ª-2ª tinha uma coroa dentada que fazia parte do arranjo da marcha à ré e ao se movimentar em direção à engrenagem de primeira passava pela pequena engrenagem intermediária de ré, ocasionando o ruído. Era essa engrenagem que se deslocava ao colocar a alavanca em ré, interligando a coroa dentada da luva com a engrenagem de ré da árvore secundária, desta maneira invertendo a rotação do pinhão da coroa do diferencial.
Por causa desse “nhéc”, muitos, até jornalistas de publicações especializadas, acreditavam que a primeira do 147 não era sincronizada, que “arranhava” ao ser engatada com o carro andando.
Quando o câmbio do Uno mudou em 1990, passando ao tipo de haste seletora alta, o chamado câmbio Termoli, o arranjo interno mudou e a engrenagem intermediária de ré ficou fora do caminho da luva sincrônica de 1ª e 2ª, deixando de haver o ruído.
Assim, para recapitular, o motorista pode “sincronizar” a primeira quando ela não é sincronizada, bastando dar uma pequena acelerada depois de colocar a alavanca em ponto-morto com o pedal de embreagem solto, para em seguida embrear e engatar a primeira. Isso é particularmente importante para quem tem carro antigo, seja ou não de coleção.
BS