Talento (s.m.): grande e brilhante inteligência, agudeza de espírito, disposição natural ou qualidade superior, espírito ilustrado e inteligente, pessoa possuidora de inteligência invulgar.
Talento não é aprendizado, é a essência criativa do ser humano, é o seu DNA que faz a diferença em todos os aspectos.
É notória a falta de talentos criativos na indústria automobilística de maneira geral. Os veículos estão praticamente com a “mesma cara”, sem destaques que possam eternizá-los. É decepcionante a falta de arte no desenho dos automóveis, atualmente. Como exemplo cito os “utilitários esportivos” que de utilitários não têm nada e muito menos de esportivos.
São veículos enormes, massudos e com linhas abrutalhadas e sem nenhuma criatividade, inclusive na relação desproporcional volume externo/espaço interno. Peço desculpas ao leitor pelo meu radicalismo, porém admito detestar os “veículos de utilidade esportiva, SUVs” que não me fazem nenhum sentido.
E como é difícil criar um veículo que tenha alma que o faça brilhar eternamente! Louvável a inteligência de algumas fábricas como, por exemplo, a Porsche, que consegue preservar a identidade do seu modelo 911 ao longo dos anos, mantendo vivo o espírito criativo do seu criador, Ferdinand Alexander “Butzi” Porsche (1935–2012), neto do Dr. Eng. h.c. Ferdinand Porsche.
Além da Porsche, foram poucos os veículos que mantiveram a sua alma icônica preservada ao longo dos anos, por exemplo, o Ford Mustang, o Mini, o Fiat Cinquecento, o VW Beetle e o VW Golf, são alguns que me vêm â mente enquanto escrevo. O leitor poderá complementar a lista, certamente!
Algumas fábricas projetaram ícones e incompreensivelmente os abandonaram, como foi o caso da Ford em 1984 com seu modelo Escort XR3, de estilo inovador com “dois volumes e meio”, a famosa rabeta que marcou época.
E foi nos idos de 1965, quando iniciei meus estudos na FEI ( Faculdade de Engenharia Industrial, hoje Fundação Educacional Inaciana) que conheci o professor Rigoberto Soler.
Espanhol de nascimento e naturalizado brasileiro, o professor Soler foi um dos primeiros projetistas/estilistas do Brasil, com criações inovadoras que não foram viabilizadas, pois infelizmente o Brasil na época não prestigiava as iniciativas tupiniquins. Sem incentivos do governo que apoiava somente as multinacionais, ficava praticamente impossível qualquer iniciativa local.
Um exemplo importante foi o Capeta, grã-turismo que o professor Soler desenvolveu na Willys-Overland do Brasil e que ficou somente em um elegante protótipo funcional que hoje faz parte do acervo do Museu Nacional do Automóvel, em Brasília, cujo curador é o nosso (do Ae) Roberto Nasser.
Houve uma exceção, o projeto de nome-código Uirapuru que o professor Soler desenvolveu na Brasinca S.A., empresa fundada em 1949 e que fabricava carrocerias para ônibus e caminhões.
Veículo esportivo, grã-turismo de 2 lugares, com estrutura monobloco e todo feito em chapas de aço estampado, era extremamente leve, aerodinâmico e dotado de um motorzão 4,3-litros de 6 cilindros em linha e 148 cv brutos, herdado da picape Chevrolet Brasil. Com a adoção de 3 carburadores duplos SU H4, chegava a 155 cv a 4.000 rpm. As portas avançavam sobre o teto para facilitar o acesso ao interior, normalmente difícil nos baixos esportivos.
Com tração traseira e diferencial GM com relação 3,55:1, era equipado com câmbio Clark manual de três marchas (2,45:1 – 1,47:1 e 1,00:1, respectivamente).
Suspensão dianteira independente de duplo braço e suspensão traseira com molas helicoidais e barra Panhard, freios a tambor assistido nas quatro rodas e direção rosca sem fim sem assistência hidráulica integravam o veículo.
O acabamento era muito cuidadoso com carpete e bancos reclináveis em couro, apliques de madeira no painel de instrumentos e console central que encobria o câmbio e o túnel da transmissão.
O painel de instrumentos era completo, contando com velocímetro até 240 km/h, conta-giros, termômetro da água, manômetro de óleo, medidor de combustível e voltímetro. No console ficava o relógio e diversas teclas de comandos.
Diz a lenda que foram consumidas 60.000 horas de trabalho incluindo testes no autódromo de Interlagos, em São Paulo.
Foi apresentado por ocasião do Salão do Automóvel de 1964 com o nome de Brasinca 4200 GT e seu sucesso com o público foi imediato, tornando-se imediatamente um objeto de desejo.
A Brasinca produziu 50 unidades de seu esportivo em seu primeiro ano de vida, em 1965, quando repentina e inesperadamente tirou-o de produção.
Em 1966, seguindo-se à interrupção de produção do carro, a fabricação do Brasinca se transferiu para a STV – Sociedade Técnica de Veículos, do empresário e piloto Walter Hahn Jr., da qual Rigoberto Soler se tornou sócio e o nome-código Uirapuru passou a ser o nome oficial do esportivo.
Várias versões foram lançadas, inclusive o GT 4200 SS, especial para competição, com 177 cv, que chegava a 240 km/h na reta de Interlagos. Tinha câmbio Corvette de 4 marchas com diferencial autobloqueante que melhorava ainda mais o rápido Uirapuru.
O Uirapuru foi descontinuado em 1967.
Como curiosidade, no Salão do Automóvel de 1966 foi apresentado o Gavião, versão destinada ao policiamento rodoviário, um pequeno furgão à imagem dos shooting brake ingleses, derivado do Uirapuru. Era todo blindado, inclusive os vidros, e que acomodava uma maca e duas metralhadoras na grade dianteira, acionadas no painel do veículo. O Gavião não passou de uma unidade produzida, que foi doada à Polícia Rodoviária do Estado de São Paulo.
O professor Soler tinha uma personalidade forte, as vezes difícil, porém tinha prazer de ensinar os seus alunos os “segredos dos projetos”, carroceria, chassis, aerodinâmica, estruturas, tudo enfim esmiuçado de uma maneira didática em uma época onde a informática apenas engatinhava. Ele tinha a perseverança dos gênios, se dedicando de corpo e alma em seus projetos, incluindo o interior, painel de instrumentos e habitabilidade.
Veja o leitor a “pegada” do painel dos instrumentos com detalhes em madeira e com tudo à mão. Detalhe do volante Walrod, fazendo a diferença em elegância e conforto.
Vale a pena lembrar do volante Walrod, criação do talento Walter Rodrigues em sua metalúrgica que produzia volantes de direção para a indústria automobilística brasileira. Lembro-me bem do desenvolvimento do volante do Corcel GT, de que participei fazendo dupla com o Sr. Walter
Como sempre, encerro a matéria com uma homenagem.
Reverencio os talentosos Mario Boano e Luigi Segre, do Studio Ghia, que criaram uma jóia sobre rodas, o Karmann-Ghia tipo 143 (o primeiro), que em minha opinião foi um dos mais lindos veículos já produzidos no mundo.
CM