Muito se usa o termo “agressivo” quando se fala e escreve sobre carros, especialmente quando o assunto são esportivos verdadeiros ou pseudo-esportivos, que são os carros normais que tem versões esportivadas. Fala-se também em “invocado”, “maldoso”, “brutal” e outros adjetivos utilizados mais para pessoas.
Há tantos carros assim que fica difícil escolher o melhor representante da classe, ou até mesmo fazer uma lista de dez, como acostumamos a nos divertir aqui no AUTOentusiastas.
Mas há um carro raro que considero ser a carronalização da agressividade automobilística, sem contar exageros caricatos, tanto antigos como atuais.
Há vinte e um anos vi pela primeira vez numa revista inglesa o carro aqui mostrado, e nunca mais esqueci. Um Fiat 8V com estilo Ghia, mas bastante modificado, e chamado na matéria de Willment Special. Não há nome oficial para o carro até onde apurei, e podemos chamá-lo de Fiat 8V Cobra Willment. Ou Willment Fiat Cobra, ou de qualquer outra forma, desde que se some os elementos que o compõe. Os vidros e suas colunas, bem como o teto lembram demais o nosso conhecido Karmann-Ghia. Natural, em se tratando que ambos tem como origem o estúdio Ghia, de Turim, Itália. A história do Fiat 8V foi resumida em uma matéria mais antiga, que pode ser lida aqui.
A John Willment Racing Organisation montou o carro para seu proprietário. Essa empresa trabalhou desde os anos 1940 até os 1990, construindo e modificando vários carros de marcas diversas, tanto para uso em ruas quanto em pistas.
Sua contribuição mais conhecida foi em parceria com outro John muito mais famoso, o Wyer, sócio na JW Automotive, a empresa que foi contratada pela Ford em 1967 para manter o programa do GT40 e suas participações em corridas. Ganharam os dois anos seguintes nas 24 horas de Le Mans, 1968 e 1969, continuando a seqüência dos dois anos anteriores, quando o GT40 foi oficialmente inscrito pela equipe Shelby-America. Wyer e Willment já eram parte do time que auxiliava a Ford nessa empreitada, desde o começo, quando Henry Ford II ordenou a construção de um aniquilador de concorrentes para vencer a prova mais famosa do mundo.
Mas vamos em frente.
O carro tem chassis de Cobra alterado para casar com a carroceria que também foi modificada. Motor Ford V-8 de 427 polegadas cúbicas, aproximadamente 7 litros, com 430 cv anunciados, câmbio Borg Warner manual de quatro marchas, diferencial traseiro Salisbury inglês, 2,88:1 de relação, chamado extra-oficialmente de “Le Mans” devido à desmultiplicação longuíssima para permitir alta velocidade máxima, que era ao redor dos 320 km/h, as mágicas 200 milhas por hora. Teóricas, já que a relação final dava pouco mais de 48 km/h por 1.000 rpm, o que resulta meio forçosamente em 320 km/h a 6.500 rpm.
As suspensões são independentes de triângulos duplos superpostos nos quatro cantos, com freios a disco, rodas Hallibrand de liga de magnésio, 8 polegadas de largura.
Quando foi dirigido pelo autor da matéria da revista Classic and Sportscar, as 100 mph (160 km/h) se mostraram um teste de nervos para o motorista, assim, os 320 km/h não foram sequer tentados, salutarmente. E isso foi em piso seco. Dessa forma, foi dito que a brutalidade do carro se devia muito ao seu comportamento dinâmico, algo bastante estranho e que me pareceu exagerado quando li o texto, já que o histórico de Willment não combinava com isso.
John Willment era concessionário Ford no final dos anos 1960. Corria e mantinha em competições Cobras, Lotus, Escorts e outros, antes de começar a participar com Wyer no programa do GT40. Um pouco da história da empresa pode ser vista no site oficial, que tem a venda peças para o GT40. O link está aqui.
John Willment tinha um chassis sobrando, com mecânica completa, e trazendo a carroceria para sua oficina, organizou o trabalho de casar os dois conjuntos. Juntou tudo, um 8V aerodinâmico, um chassis Cobra com o último estágio de melhorias, trazendo o motor e câmbio deste, mas com o eixo inglês.
Dá para imaginar que não foi fácil. O 8V original tinha 2.388 mm de entreeixos, e abrigava um motor de dois litros. O Cobra tem entreeixos de 2.286 mm.
Isso tudo ficou pronto em 1970, e mostrou-se problemático em vários aspectos, a dirigibilidade em altas velocidades sendo a principal, o que fez o carro ser colocado a venda por 4.000 libras esterlinas (cerca de US$ 9.500 à época) com apenas 1.500 km rodados. Como era originário do Fiat, foi anunciado como um Fiat Cobra 1967, ano da carroceria original.
Muitos donos tiveram o carro, sempre por pouco tempo, e um vendedor especialista em carros antigos, Ron Leach, pesquisou a fundo — antes da era da internet, onde tudo é mais fácil — e descobriu que se tratava de um 8V feito pela Ghia nos anos 1950, uma edição de apenas três carrocerias iguais. Uma delas foi montada em um Alfa Romeo Mille Miglia, e os outros dois em chassis do 8V. Um deles foi da esposa de Sir Malcolm Campbell, o recordista de velocidade mais afamado da Inglaterra nos anos passados, e passou por tantas atribulações que acabou sendo desmontado e abandonado em um ferro-velho da cidade de Slough. Essa foi a carroceria que Willment utilizou para fazer o carro aqui mostrado.
Pintado em vermelho Mônaco, uma cor original da Ford, com interior em couro preto, tem duas coisas que estão meio fora de contexto em algo tão bruto. Vidros e antena de rádio elétricos.
Parecia a história de uma maldição. Um carro com motor V-8, maravilhosamente esportivo — ou grã-turismo, como queiram — com potência aos borbotões, estilo agressivo exemplar, e sempre desprezado pelos compradores.
O motor é interessante. Se trata de uma unidade preparada pela Holman and Moody, igual aos usados na Nascar americana, que com os dois carburadores de quatro corpos, o popular quadrijet, e chegava a quase 500 cv, bem mais que os 430 cv ditos na época que o carro ficou pronto.
A loja de Leach teve o carro à venda por quatro vezes, e se recordava que em 1981 o carro tinha uma boa estabilidade e comunicação de direção e suspensão com o piso. Mas a última vez que o carro veio para ele revender, em 1994, já era muito gasto e estava bem pior e temerário. Pelo visto, nunca havia sido cuidado como deveria, com peças de desgaste substituídas como deve ser sempre.
Na verdade, o Willment Special é parte pouco conhecida da história dos Cobras, que tiveram sua carroceria cupê de bastante sucesso em corridas desenhada por Peter Brock, mas esse aqui é obviamente mais raro, por ser único. CSX3055 é o chassis original, da fábrica de Carroll Shelby. Os da AC britânica começam com COB (Cobra of Britain) e COX, quando eram de lá fabricados para exportação, com volante de direção do lado esquerdo.
O trabalho na carroceria foi bem feito, e o acabamento é bastante bom por ter sido algo tão extensamente cortado e remendado. A posição de dirigir é boa sem ser perfeita, não há luxos exceto pelo couro dos bancos, que nem eram assim considerados no passado, sendo estes do tipo concha para segurar nas curvas, algo necessário, pelo desempenho possível.
Mas o melhor é como o carro anda com um motor com tanta potência desde as mínimas rotações, casado com um câmbio de relações longas. É puro som de V-8 sem desespero, empurrando forte e constantemente, e urrando pelo escapamento pouco restritivo, que torna todo passeio algo como uma volta de Nascar. As trocas de marchas devem ser feitas sempre suavemente. A alavanca é leve nos engates e desengates, e o acelerador de longo curso requer bastante cuidado, pois é bem pesado no início, ficando mais leve depois que se pisa mais forte. Com montes de torque a disposição, dá para imaginar que não é fácil controlar isso. Sem dúvida um ponto a ser alterado para melhor por um proprietário carinhoso.
Embreagem e freio também tem comandos de curso longo como o acelerador, e não são leves, apesar de bem progressivos na ação, como devem ser, sem pegadas abruptas que maculam a condução do motorista e podem levar a durabilidade comprometida.
Seu comportamento em ruas e estradas deixava a desejar, tanto pelos balanços quanto pelas escorregadas de frente e traseira, conforme se acelera ou se tira o pé do acelerador. Para ajudar, a direção não tem nada de especial, funcionando apenas de forma normal, sem ajudar, mas sendo atrapalhada pela suspensão imprecisa.
Tudo isso foi apurado em 1994 na matéria da revista, e me deixou um pouco deprimido, confesso. Como algo que me fazia tão bem aos olhos podia ser tão ruim?
E eis que como digo sempre, o maior prazer está em pesquisar para escrever para todos nós, descubro que depois de anos, em 2014 o carro foi todo reformado e consertado, e que um dos braços da suspensão dianteira estava torto.
Sem dúvida isso contribuiu para a má impressão na matéria de 1994, duas décadas antes. Tudo que estava ruim foi trocado, e alguns detalhes da traseira foram mudados, como a remoção do pára-choque e da moldura que havia na tampa do porta-malas, tornando o desenho mais puro sem esses enfeites. Nada proibido, já que o carro nasceu como uma modificação de um 8V, e não se pode condenar a modificação de algo já não original.
O que se falava desse carro não é justo, para dizer o mínimo. Raridades devem ser entendidas como pessoas esquisitas. Elas podem ter problemas, mas sem dúvida, se tiverem bom histórico, valem a pena sentar e conversar, trocando idéias que muitas vezes podem resultar em um futuro melhor. Como arrumar uma suspensão danificada e descobrir que seu comportamento não era tão ruim quanto parecia.
JJ
(Atualizado em 26/07/15 às 9h50)