O automobilismo nos dias de hoje é completamente regrado, amarrado por regras e restrições de todos os tipos, por inúmeros motivos. Redução de custo, controle de competitividade, segurança, aparência e apelo ao público. Salvo raras exceções, as categorias são definidas por normas técnicas e pouco pode-se escapar.
Talvez um dos campeonatos mais liberais neste aspecto é o WEC (World Endurance Championship, campeonato mundial de resistência), onde as regras são um pouco menos restritivas e carros diferentes aparecem de vez em quando, como o atual Nissan NISMO GT-R de tração dianteira e o Nissan Deltawing dos anos anteriores.
Ao meu entendimento, faz falta tanto para os participantes como para o público uma liberdade técnica maior. Menos restrições, menos limitações e mais liberdade criativa dos construtores e equipes. O custo é o contrapeso desta medida? Sim, mas e daí? Economia de dinheiro se faz em fabricação de carro popular. Há outras formas de se cortar custos que não limitando o projeto dos carros.
Hoje em dia você não vê mais corridas com carros participantes muito diferentes entre si, e isto tira um pouco da graça do esporte. No geral, não é mais possível colocar cara a cara carros distintos, como ver se uma perua consegue vencer um carro esporte na pista, ou se um carro de uma categoria não consegue vencer em outra completamente diferente.
Listamos aqui alguns dos carros de corrida menos previsíveis para as corridas onde se apresentaram, a maioria de tempos passados onde os regulamentos eram menos ortodoxos. A ordem listada é aleatória.
1) Volvo 850 Estate BTCC
Para a temporada de 1994 do BTCC (British Touring Car Championship, Campeonato Inglês de Turismo) a Volvo entregou nas mãos do lendário Tom Walkinshaw e sua equipe TWR o programa para criar um carro de corrida capaz de trazer de volta a marca sueca ao mundo do automobilismo, e também divulgar seus carros no mercado inglês.
Na apresentação do carro no fim de 1993, um modelo sedã e uma perua foram apresentados já na configuração de corrida, para deixar na dúvida qual carro iria participar do campeonato. Muitos pensaram que a perua era apenas uma brincadeira ou uma jogada de marketing da Volvo, mas ao final, foi ela que foi inscrita para correr. A idéia era realmente chamar a atenção.
O motor de cinco cilindros sem turbo rendia 290 cv e a tração era dianteira. Não fizeram feio, conseguiram bons resultados e deixaram uma imagem que nunca mais será esquecida na categoria. Até hoje os 850R brilham aos olhos de muitos entusiastas, e este carro do BTCC guarda boa parte da culpa.
2) Mercedes-Benz 450 / 500 SLC
A tradicional marca alemã ficou muito tempo afastada das competições automobilísticas depois da tragédia de 1955 em Le Mans, mas no fim dos anos 1970, já estava de volta à ativa. Os carros de produção normal eram extremamente confiáveis e os motores, potentes, a combinação perfeita para corridas longas e ralis.
Em função das características dos carros, como serem menores, duas portas e mais esportivos, os SL foram a escolha de Erich Waxenberger para criar a divisão de rali da marca. A versão de teto rígido (SLC) era a escolha perfeita, com motores V-8 que podiam chegar até a 350 cv sem perder a robustez alemã da era dos famosos Mercedes-Panzer. Não eram pesos-pena, mas era o que a gama de produtos da MB tinha de melhor a oferecer para a proposta da equipe.
Ao longo da evolução dos anos, os SL foram sendo aprimorados, com peças de carroceria mais leves, maior uso de alumínio na construção. Mesmo com isto tudo, o pesado motor dianteiro fazia com que o carro tivesse que escorregar muito, e desenvolveram um freio de mão especial para fazer o drift na entrada das curvas, que era um show para os espectadores.
Este foi um dos carros de rali de maior classe a competir na história dos campeonatos de rali. Pilotos como Hannu Mikkola e Björn Waldegård foram alguns dos mais bem-sucedidos pilotos de todos os tempos e que andaram nos SL.
3) Aston Martin Rapide
Em 2010, a Aston lançou seu modelo de quatro portas chamado Rapide, e como forma de mostrar ao mundo a capacidade técnica da marca e conseguir uma boa divulgação do seu lançamento, inscreveu o carro para participar das 24 Horas de Nürburgring de 2010.
Para pilotar o carro, o próprio CEO da Aston Martin, Ulrich Bez, foi candidato juntamente com outros colegas do time de desenvolvimento do carro. Bez é piloto amador nos tempos livres. O belíssimo sedã, praticamente original de fábrica exceto pelas adequações aos regulamentos de segurança da prova, completou a corrida em 34° lugar, onde mais de cem inscritos participaram da prova.
Foi a melhor forma de demonstrar a qualidade e desempenho do novo produto da Aston Martin ao mundo, e ainda conseguir um bom tempo de pista que conta muito nas futuras evoluções do projeto. Alguns anos depois, o modelo Rapide S com célula de hidrogênio participou da mesma corrida, sendo o primeiro deste tipo a correr em Nürburgring.
4) Rolls-Royce Corniche
Toda a classe e sofisticação dos Rolls-Royce os tornaram famosos ao longo de sua história. Por serem silenciosos, bem acabados e de excelente qualidade, foram sempre opções de chefes de estado, sultões, sheiks e milionários ao redor do mundo.
Com todas estas características de refinamento e glamour, outro uso óbvio para um Rolls-Royce poderia ser facilmente identificado: correr no famoso Rali Paris-Dakar. Um modelo Corniche duas portas foi inscrito no rali de 1981 pelo piloto Thierry de Montcorgé e patrocinado por Christian Dior (a marca Jules na lateral do carro era o nome de um novo perfume da Dior da época).
O Rolls foi todo modificado, com eixos dianteiro e traseiro de Land Cruiser, uma estrutura tubular interna, tanque de combustível de 330 litros e o motor original foi substituído por um V-8 Chevrolet 350 pol³ (5,7 litros), pois o 6 ¾-litros poderia não suportar os maus tratos do rali. O carro foi desclassificado pouco depois da metade da corrida por conta de um acidente e o tempo de reparo necessário, mas conseguiu chegar ao final do rali. Este é o espírito dos ralis, arrisque-se com o carro que julgar melhor.
5) VW Brasilia
Ingo Hoffmann é um dos maiores pilotos brasileiros de todos os tempos,
recordista absoluto de títulos na Stock Car, nos anos 1970 fez um
carro muito controverso para competir na Divisão 3 do automobilismo
nacional.
Com mais liberdades para modificações nos carros da Divisão 3, um VW Brasilia foi feito para o Ingo. Nas cores azul e laranja com patrocínio da Creditum, pneus tala larga e o convencional motor boxer bem preparado, o VW era muito rápido. Em tese, o longo teto favorecia a aerodinâmica do carro, porém o carro de rua era classificado como um utilitário, e foi complicado conseguir a liberação para a corrida.
Foi com este inesperado VW que Ingo foi campeão em 1974 no Campeonato Paulista Divisão 3 na Classe A, para carros com motores até 1,6 litro. Ponto para a criatividade tupiniquim em como aproveitar os veículos do mercado nacional.
6) Dodge Custom Sportsman Van
Quando Brock Yates, editor da revista Car and Driver, teve a brilhante idéia de reviver as corridas costa-a-costa nos EUA, a primeira edição foi feita em 1971 como um teste de apenas um carro. A travessia de Nova York até a Califórnia de carro no menor tempo possível seria uma ótima reportagem para a revista, além de uma incrível aventura.
Porsches, Ferraris, Corvettes e Mustangs, muitas eram as opções de carros para a grande viagem, mas a opção foi um Dodge modelo Custom Sportsman, que na verdade, era uma van. Modificada para melhor cumprir seu papel na histórica viagem, o Dodge apelidado de Moon Trash II completou a tarefa com louvor. Assim nasceu o Cannonball Run dos anos 1970. Para saber mais um pouco desta corrida, veja aqui no Ae.
O espírito americano de liberdade que foi ferido quando o governo impôs um limite de 55 mph (88 km/h) nas estradas seria questionado na forma do Cannonball Run, e a escolha do Dodge representa hoje que não apenas com carros esporte pode-se aproveitar uma viagem dessas. Só teria sido mais americano se fosse feito de picape.
7) Ferrari 308 GTB
O Grupo 4 do campeonato mundial de rali teve diversos carros interessantes inscritos, mas colocar um Ferrari para disputar corridas na terra e no gelo era no mínimo curioso. Em 1978 o carro foi homologado, com o projeto sendo puxado por uma equipe francesa e pelo piloto Jean-Claude Andruet.
Para as corridas no asfalto, o 308 estava em casa, mas notoriamente também foi muito bem nos terrenos off-road. No ano seguinte, já conquistava sua primeira grande vitória no rali de Monza. Teve bons resultados, mesmo com a tradicional péssima confiabilidade italiana da época.
O 308 era quase que um primo distante do lendário Lancia Stratos, ao menos no espírito. Motor central de oito cilindros girando alto (o Stratos era V-6), chassi de fabricação italiana e uma bela carroceria baixa e em forma de cunha. Faróis escamoteáveis completavam o charme do carro.
8) Cadillac Coupé de Ville
A Cadillac sempre foi um dos ícones automobilísticos americanos de sofisticação, luxo e status. O tamanho e imponência dos Caddys é respeitável, ainda mais nos modelos dos anos 1940 e 1950. Puro luxo e aço em movimento.
A corrida 24 Horas de Le Mans é um dos principais templos do automobilismo mundial, redutos dos melhoras carros esporte e equipes de ponta, desde seus primórdios. Mas em 1950, os dois opostos se uniram. Um Cadillac Coupé de Ville Série 61 foi inscrito pela equipe americana de Briggs Cunningham, com interesse no ótimo motor V-8 da empresa.
Com um incrível 10° lugar, seguido do carro “irmão” com carroceria modificada, os Cadillacs de Cunningham foram um sucesso, tanto para o público como para os próprios pilotos. Logo mais teremos um post especial sobre este feito aqui no Ae.
9) Citroën ID19
A Nascar é a categoria do automobilismo americano mais tradicional, e é um orgulho nacional. Raros estrangeiros tiveram oportunidade de competir ao longo de toda a história, que abriu suas portas ao mundo exterior apenas nos últimos anos. Hoje, até carros que imitam Toyotas correm junto com Fords e outros nativos.
Em 1958, dois carros estrangeiros bem diferentes participaram de uma prova da Nascar, em uma sub-categoria especial para carros importados, o par de Citroëns foram os vencedores, mesmo sendo carros quase que originais de fábrica. Na classificação geral, ficaram em 18° e 19°. O ID19 era um derivado mais simples do refinado modelo DS de 1955.
A primeira corrida em um circuito misto na Nascar foi em 1954, foi vencida por um Jaguar XK120 no aeroporto de New Jersey, onde diversos carros esporte europeus participaram. Foi um feito importante, mas o feito de dois pequenos DS franceses disputarem na raça com os grandes carros americanos em uma pista oval já o colocam em destaque pela coragem e bravura.
10) Dodge Charger / Ford Torino Nascar
Em 1976, a organização de Le Mans estava em contato com as federações norte-americanas para aumentar o relacionamento entre eles. A Europa estava interessada em estender suas corridas para os EUA, em especial nas 24 Horas de Daytona, e os americanos poderiam interagir mais na Europa.
A convite dos organizadores, dois carros americanos foram levados para a França para disputar a corrida de Le Mans daquele ano, como uma forma de promover a união das duas organizações. Porém os dois carros que chegaram em Le Mans não eram exatamente dos mais apropriados para a corrida. Os americanos levaram dois Nascar para correr na 24 Horas, um Ford Torino e um Dodge Charger. Foi o oposto do Citroën mencionado acima.
O desempenho foi fraco, uma vez que os carros não eram apropriados para um circuito do tipo de Le Mans, e também correr por vinte e quatro horas seria um desafio. Os grandes motores 7-litros iam bem na reta, mas nenhum dos dois carros completou a corrida. Os rednecks fizeram bastante barulho, com certeza.
MB