Paro e olho para os dois lados para ver se não vem ninguém na estrada que vou entrar. Quase nunca vem alguém, pois o movimento não é grande ali. Saio acelerando forte, em descida leve, a primeira vai até 7.000 rpm, a segunda também. Coloco a terceira, ao mesmo tempo que passo do lado da casa, um pequeno ponto de descanso que aparece incontáveis vezes nas fotos do Paulo Keller, enfeitado por carros novos de todos os tipos.
Em outros tempos, como quando andava exclusivamente de Chevette, teria trocado as marchas de maneira brutal: pé direito sempre ao fundo, imóvel, o esquerdo acionando de supetão a embreagem numa varada só, pá-pum, até o fundo e de volta, ao mesmo tempo que a mão direita trocava a marcha para a próxima. Violento e destrutivo, este movimento, conhecido como “powershift”, era tolerado por anos a fio em minhas cheviolas queridas sem nenhuma conseqüência maior. E é a maneira mais rápida para se dirigir, se dirigir o mais rápido possível é o objetivo.
Mas hoje, talvez pela idade, talvez pela experiência, ou mesmo por perceber que as vezes não é necessário andar o mais rápido possível, não faço mais isso. Talvez seja medo de destruir a caixa da minha perua, um carro que para todos os efeitos práticos é único e insubstituível. Talvez porque nela o ganho de tempo percentualmente seja bem menor que no Chevette, carro em que qualquer milissegundo conta para se manter em movimento a uma velocidade boa.
Na verdade tudo é diferente num Chevette. O carro não é extremamente potente, mas aprendi cedo que era muito mais rápido do que imagina a maioria da população mundial; na verdade aprendi um truque que fazia ele matar qualquer um (sim, qualquer um) nos primeiros 20 metros. Parado no sinal ao lado do Gol GTI, era só acionar a embreagem e acelerar tudo. Ao abrir-se o sinal, tira-se o pé da embreagem de lado e pá, o bichinho pulava feito um sapo assustado. Era um pulo instantâneo, sem cantar muito pneu — o tubo de torque não deixava o eixo torcer e aliviar peso da roda traseira direita — que o colocava imediatamente um carro à frente do adversário, com motor cheio, bem na faixa gorda de torque. E repito: botava um carro em QUALQUER adversário.
O GTI tinha que suar forte a camisa para me pegar até o próximo sinal, porque dali obviamente trocava as marchas fazendo “powershifts” e espremia cada um dos 82 cv até sua última fração decimal conhecida. Se o cara fosse inexperiente e fizesse o mesmo violento movimento de tirar o pé da embreagem de lado no GTI, ficava meia hora transformando 120 cv em fumaça de pneu, para depois começar a se mover, presumivelmente em direção o consultório psicológico mais próximo para tentar curar o trauma de perder para um reles Chevette. Feio, neste caso, de perder de vista, tchau tchau baby.
Mas divago; voltando ao meu passeio: acabei de colocar a terceira em frente à casa, e já tenho que tirar um pouco o pé pois uma curva se aproxima; não é apertada e apenas uma tirada de pé e no freio de leve é o suficiente para já entrar nela acelerando de novo. A terceira na perua é a marcha mais deliciosa; se a reta fosse longa o suficiente ela esticaria até 160 km/h (igual a um up! TSi, por sinal) puxando o carro e gritando tão veementemente que você jura que morreu e foi para o céu.
As curvas que se seguem são tão tranqüilas que são despachadas como uma reta, e logo começamos a mergulhar lá para baixo, onde depois de algumas curvas há um córrego, para depois voltarmos a subir. Acelero forte, jogo a quarta e chego na primeira curva, de raio longo à direita, à uma velocidade censurada nesse mundo onde as mamães que mandam levar o casaquinho para não pegar friagem tomaram o poder e decretaram o fim de toda diversão que seja remotamente perigosa. Mas mamãe não está vendo, então que se lasque; freio forte, meto a terceira igualando as rotações com um punta-tacco, e entro na curva de novo do jeito que gosto: acelerando.
Na entrada uma pequena sugestão de subesterço logo some para aparecer um comportamento neutro, onde a gente sente a aceleração lateral aumentar de forma gostosa, segura, aconchegante. Incrível como pneu é realmente a peça de suspensão mais importante: meus antigos Yokohama C-drive teriam desistido de segurar o carro há muito tempo atrás, e estaria ali lidando com alguma derrapagem, algo que, embora bonito em filminhos e programas de TV, é mais lento e francamente muito mais perigoso em uma estrada de mão dupla. Os atuais Khumo KH-17, mesmo modelo que veio original em meu saudoso Cruze vermelho, são muito melhores em aderência, transformando o carro completamente. Ela agora segura muito melhor.
Ainda em terceira, negocio o zigue-zague final da descida, chegando no córrego, em cima do qual existe uma curva bem fechada à direita. Esta curva exemplifica o cuidado extra em andar rápido nas vias públicas com segurança: existem duas maneiras de fazê-la. Ela é uma curva coberta por árvores, que tornam seu traçado invisível para quem vem de cima como neste caso. Mas, durante a descida, consigo ver se tem gente vindo ao contrário se aproximando da curva, pois depois dela a estrada sobe de novo e é visível. Quando se chega a ela e nenhum carro vem ao contrário, quem a conhece pode tomar ela como em pista, fazendo a trajetória ideal. Se vem alguém no sentido contrário, é meter o pé no freio e fazer a curva bem mais devagar, mantendo-se na faixa da direita.
Neste dia a estrada está deserta e já passei por aqui três vezes, nos dois sentidos. Freio forte então, coloco a segunda de novo fazendo punta-tacco e a perua grita de novo, entrando na curva devagar mas saindo rápido, berrando a plenos pulmões em segunda, de novo na maior neutralidade de comportamento.
Recentemente subi a bola branca que é a manopla de câmbio da minha BMW para sua posição mais alta possível, algo em torno de 40 mm acima do que estava, com resultados ótimos: a troca ficou mais leve, precisa e divertida (“Dai-me uma alavanca grande o bastante que moverei o mundo”, disse Arquimedes). Está realmente uma delícia, mas ainda pode melhorar: o kit de redução de curso e esforço da Turner Motorsport americana está no topo da minha lista de desejos hoje. Depois de experimentar um Toyota GT86 aqui neste mesmo lugar, vi como uma alavanca de câmbio pode ser boa… E também como é bom carro que não rola. A minha perua hoje rola pouco por conta dos amortecedores mais firmes, mas longe da incrível invulnerabilidade à rolagem do GT86. Um carro realmente especial, esse tal de GT86.
Depois da curva em cima do córrego, a segunda é esticada até quase o corte a 7.500 rpm, tira-se um pouco o pé e se faz uma curva fechada a esquerda, em subida, seguida por outra a direita. Estica segunda mais uma vez, reta minúscula em subida, terceira ainda acelerando, freio forte, segunda de novo, curva fechada a direita, subindo rampa bem inclinada agora. Mas o carro mal sente, sobe forte, gostoso, suave, berrando a plenos pulmões como se não houvesse amanhã. Como meu carro está acertado para esta estrada! Como é gostoso de andar rápido aqui. Não foi sempre assim, mas a última rodada de acertos, com troca dos pneus (os Yokohama duraram bem menos de um ano com a cambagem bem negativa e andando forte), e alguns acertos de alinhamento, foi surpreendentemente efetiva.
Isto prova algo que muito pouca gente sabe: não é só comprar peça que faz um carro ficar bom. Não adianta nada jogar um caminhão de dinheiro em cima do carro se não se sabe o que quer e os efeitos de cada coisa. Meu carro é praticamente igual a um original de fábrica, mas ao mesmo tempo, muito diferente. E não porque eu sou algum gênio, é apenas tempo e muita tentativa e erro. Como já provou a Porsche, mais vale paciente e diligente desenvolvimento por décadas do que um novo e revolucionário design que começa tudo do zero de quatro em quatro anos.
A curva seguinte é fechada à direita, ainda em subida, mas chega-se nela com a terceira mais cheia, bem veloz, freia-se mais, e como é “cega”, não se vê o tráfego contrário, é necessário manter a direita, sem usar toda a largura da pista para aumentar o raio. Portanto freio forte, o carro faz a curva bem perto do fim do asfalto à direita, mas solto ele dentro da curva, para o resto da velocidade ser debelada por um pouquinho de subesterço (não tem outro jeito, o traçado fica ruim assim), e volta-se ao acelerador assim que se contorna a curva, idealmente em segunda, mas muitas vezes em terceira mesmo, sem mudar marcha. Em segunda seria mais rápido, mas isso não é uma corrida, e é mais limpo e gostoso na marcha mais alta. Uma curva que exemplifica bem a diferença da pista para a rua: seu traçado é imperfeito, fazendo ela ruim de contornar, e deve-se exercer calma, controle da empolgação, e cuidado para não errar ali.
Ajuda aqui a direção precisa. A direção da E36 é seu ponto alto, precisa, leve mas não exageradamente leve, e com a progressividade em sensibilidade que se espera com alteração de carga; freando fica mais firme, acelerando mais leve, de uma forma linear e sem nunca perder a previsibilidade nos movimentos. Mas o volante é muito grande, e se a patroa deixar (compartilhamos o uso do carro no dia-a-dia), em breve coloco um volante menor ali para liberar mais o movimento das minhas pernas.
Dali é uma quase-reta, e logo começa outra descida onde se ganha bastante velocidade. O suficiente para de novo ser censurada. Na verdade, minto; nunca olho a velocidade andando assim. Não sei a minha velocidade em nenhum ponto deste passeio. Para que saberia? O que me ajudaria? Sei rotação e marcha em que estou, mas meus olhos se fixam na estrada. A velocidade é uma informação irrelevante, que nunca olho. Eu na verdade acho que devíamos proibir velocímetros (e claro, radares juntos) para que as pessoas se concentrem em dirigir ao invés de discutir qual velocidade é segura. Esta, é pessoal e óbvia, mesmo sem o instrumento. E é por isso que costumava ser famosa por sua ausência em carros de corrida. Não sei quem inventou o velocímetro, mas maldito seja!
Na subida seguinte, até pista dupla aparece. No fim dela, uma curva a 90 graus, onde de novo muito freio e uma redução de marcha permite tomá-la num traçado perfeito de entrada, abrindo bem o raio, mas com a saída restrita pela pista simples. Com prática se faz bem rápido, sem derrapagem alguma. Dali para frente o tráfego aumenta, e se anda mais devagarzinho. Muitas vezes volto dali pelo sentido contrário.
Eu não faço isso todo dia, e as vezes pulo mês. Mas andar de carro é meu maior prazer. Sempre que a estrada se esvazia o suficiente para o risco se tornar desprezível, volto lá. Ao volante todo o resto, todas as dívidas, os problemas do trabalho, em casa, as injustiças da vida brasileira, tudo some em fumaça de pneu e em cheiro de freio cozinhando. Eu e meu carro nos tornamos um só e o que acontece com ele, comigo parece ter rolado. Não marco tempo, não há competição nem ninguém vendo; não há ego envolvido. O que erro e o que acerto fica só para mim. Quando estico as marchas até a linha vermelha e troco para a próxima rápido, feito uma pausa para respirar e gritar de novo, é como se tudo de ruim saísse neste grito. E realmente sou completamente feliz.
Parafraseando uma velha e conhecida frase de Steve McQueen: Dirigir é viver, todo o resto é somente espera.
MAO