Caro leitor ou leitora,
Dando continuidade à publicação aqui no Ae do livro do Arnaldo Keller, “Um Corvette na noite e outros contos potentes”, hoje é a vez do terceiro capítulo, “O último automóvel”. Tenho certeza de que muitos de vocês sentirão emoções especiais ao ler o que o Arnaldo conta sobre esse último automóvel na face da Terra.
Boa leitura de domingo!
Bob Sharp
Editor-chefe
___________________________________________________________
UM CORVETTE NA NOITE E OUTROS CONTOS POTENTES
Por Arnaldo Keller
Capitulo 3 – O Último Automóvel
Ferry Porsche, filho do Prof. Dr. Eng. h.c. Ferdinand Porsche, certa vez profetizou que o último automóvel será um esportivo.
Escrevo este relato porque acabei de passar por um acontecimento insólito, inesperado e fantástico, e que sei que, infelizmente, não o provarei outra vez. Se me permitem, contarei o desenrolar dos fatos que culminaram nesta experiência única.
Tudo começou em 1963, cento e dez anos atrás, quando meu bisavô casou-se. Do pai, ganhou dois presentes: um Ferrari 250 GTO, amarelo, zero- km, e um grande tonel de vinho Bordeaux de nossa melhor safra, 1945. As recomendações do pai, seu melhor amigo, foram as seguintes: “Concorde com sua esposa e acate suas opiniões, no varejo. Assim terá paz para fazer o que deseja da vida, no atacado”. Disse também que o vinho e o carro esporte eram para que as responsabilidades da nova família e do trabalho não o fizessem esquecer dos prazeres do homem, das aventuras da mente e do corpo, pois ambos nos mantêm jovens e produtivos. Do GTO e do vinho meu bisavô usufruiu, porém, sendo um homem de família, soube preservá-los para seus descendentes. Do tonel, com os amigos, bebeu um quarto. Com o GTO correu, venceu algumas corridas e o guardou na garagem, sobre cavaletes e coberto com lençóis de flanela. A carroceria ficou com estava, com pequenas lanhaduras, marcas de sua bravura nas pistas. A mecânica, intacta, azeitada.
Ainda guardo o vinho, que está pela metade do tonel. Ainda guardo o GTO, em perfeito estado. Somente eu cuido deles.
Gosto imensamente dos dois, pois para mim eles simbolizam os mais elevados produtos da arte humana em seus respectivos setores. Apesar de toda tecnologia acrescentada aos trabalhos da nossa vinícola, nunca mais fizemos vinho igual, de cor tão bela, de aroma e sabor tão espirituosos — nunca mais, nessas quatorze décadas já passadas, produzimos um vinho tão essencial. Com o 250 GTO 1963 ocorre o mesmo. Apesar de – e creio que por excesso de – toda tecnologia desenvolvida pelo homem, nunca mais fizeram um automóvel igual, de linhagem tão pura, de desenho tão belo, de comportamento tão espirituoso — nunca mais produziram um automóvel tão essencial. Creio que as mais sublimes obras de arte só podem ser criadas em certos momentos da história, durante uma espécie de janela no espaço/tempo. Seguindo a mesma impressão, supomos que nunca haverá outro Beethoven na música clássica, outro Michelangelo na pintura, outro Jimmy Hendrix na blues/rock guitar, outro Pelé no futebol, outra Rita Hayworth dentre as estrelas, outro Dostoiévsky na literatura, outro Duke Kohanamoku no surfe, outro Fangio nas corridas de automóvel. É necessário haver condições ambientais para que essas artes aflorem tão puras e belas. É necessária uma forte dose de inocência desabafada de regras para que atinjam tal ápice. É necessário estar desapegado de dogmas, estar livre da opressão das técnicas consagradas para que a arte prevaleça. No caso de nosso vinhedo, 1945 foi o ano em que os céus focaram-lhe uma luz abençoada. Aliado a essa bênção celeste, devido às conturbações do final da guerra, houve algo que “não fizemos”, que deixamos de dirigir, quando deixamos a natureza mais livre para encarregar-se do processo. O mesmo se deu com o Ferrari 250 GTO 1963. Sua personalidade é tão forte, suas linhas tão belas, sua potência e equilíbrio tão bons, que ele parece feito por si só, brotado de suas próprias entranhas, como se a máquina resolvesse ensinar ao homem como deve ser um automóvel. Em suma, ele é o automóvel que todo automóvel queria ser…
O GTO está no museu da família, sobre cavaletes, e ele é meu. Ganhei-o quando casei, em 2047, porém nunca o dirigi, simplesmente por falta de combustível. Então já não havia gasolina à venda, pois praticamente já havia acabado o petróleo, e este já era, como sabem, de uso estritamente militar. Ao menos quando pequeno, pude andar no GTO com meu pai ao volante, mas foi uma pequena volta, escondido de minha mãe, que o achava muito perigoso, com risco de perda de controle, acidente e explosão. Posição compreensível, já que para nós, que há décadas nos locomovemos em carros elétricos, com comandos controlados por computadores e satélites, veículos seguros, macios e silenciosos, é realmente estranho aceitar uma máquina estrepitosa como o GTO, que requer toda a nossa atenção para que não nos acidentemos. Uma máquina de loucos que carrega combustível suficiente para explodir um prédio e ao mesmo tempo solta labaredas pelos escapamentos. Pensando friamente, é realmente perigoso.
Já fazem mais de quarenta anos e ainda lembro, ao menos vagamente, do rugido daqueles doze cilindros trabalhando e meu pai quase gritando para me explicar o que fazia para controlá-lo. Alavanca de câmbio bruta, pedais duros, volante mecânico, motor vibrante, barulhento e temperamental; freios também. Era muito difícil e trabalhoso guiar aquele carro, mas, por estranho que pareça, meu pai tinha imenso prazer em dirigi-lo correndo como um doido. Alguns anos após, fui à Rússia. Visitei o museu aeroespacial e lá estava a cápsula que levou Yuri Gagarin no primeiro vôo do homem ao espaço. Aquilo nada mais era do que um cone minúsculo com grotescas alavancas para acionamento dos jatos direcionais, mostradores analógicos, janelinha. Quanta coragem tinha esse Yuri! Fiquei me perguntando como raios o homem conseguiu jogar-se no espaço, e voltar, usando recursos tão parcos. Em seguida, lembrei-me do GTO, e minha imaginação colocou-o ao lado da cápsula. São praticamente contemporâneos, o GTO e a cápsula do Yuri. Duas máquinas rústicas capazes de feitos incríveis.
E agora chegamos mais perto do acontecimento, motivo do relato.
Há um mês completei cinqüenta anos. Grande festa em nossa secular casa da vinha. Minha mulher, Estela, estava linda e exuberante. Acabara de voltar da China, onde passou pelo tratamento que faz a cada quatro anos, quando volta ao aspecto de quando tinha vinte e cinco. Ela, apesar de ter quarenta e cinco, voltou pela quinta vez à imagem de quando nos casamos. Se por um lado acho bom, por outro, é um pouco estranho, pois perco a noção da passagem dos anos. Além disso, por alguns dias após o tratamento, ela exala um cheiro químico esquisito devido às reações em sua derme e epiderme. Não falo nada, para não magoá-la. O diminuto médico chinês (como devem saber, eles reduziram a altura média da população para um metro, visando menor consumo de alimento, água e do látex usado nas camisinhas), desde a primeira vez, orientou-me a respeito do cheiro e dos burburinhos de fervura que escuto quando estamos a sós, no silêncio do nosso leito. Bom, de qualquer modo, ela estava linda e exuberante, excitada com a festa, sensação perceptível pela rigidez de seus mamilos, já que se exibia em nudez, última moda lançada na Albânia.
Ao final da noite, o advogado da família, um velho encarquilhado de cento e trinta anos, me entregou um envelope trazendo uma carta de meu falecido pai (ele morreu ainda moço, explorando água na Lua). Após alguns murmúrios o velho foi embora, de ponta-cabeça, em sua cadeira magnética. Pensei comigo que deveria funcionar esse costume de ficar duas horas em cada posição, afinal, o velho mantêm-se inteligente e sacana.
Emocionado, pedi aos convidados que me permitissem alguns minutos e me retirei à biblioteca para ler a carta. Abri-a:
“Querido filho Nino.
Gostaria de dizer-lhe pessoalmente o que agora redijo, porém, já que estás lendo, é sinal que já parti desta para outra. Pena. Mas, deixe pra lá. Onde quer que eu esteja nesse momento, saiba que estou feliz. Feliz por saber que o amei mais do que minha vida. Sendo assim, de algum modo, continuamos juntos.
Então…, parabéns! Fizeste cinqüenta anos! Tá coroa, hein! Até mais coroa do que eu agora.
Senta e te prepara, pois tenho um presente muito especial pra você.
Eis as instruções para pegá-lo:
……………………
…………………….
…………………….
Com amor,
Teu pai.”
Ao terminar a carta — com as mãos tremendo, os olhos embaçados e o peito ofegante —, juntei-a de encontro ao plexo, que borbulhava como sal de fruta, e recostei-me na poltrona, olhando para o teto pintado com um afresco retratando nossa vinha. Verdes parreirais, alguns trechos de terra revolta, pessoas trabalhando. Por uns segundos, como sempre que olhava para a pintura, pensei em meus antepassados escarrapachados na mesma poltrona e também pensando. Nos momentos de preocupação e nos de alegria, essa imagem, esse cheiro de terra fértil que dela emana, a visão do trabalho, deve ter servido como um orientador para as decisões a serem tomadas. Porém, neste caso, decisão nenhuma, pois não havia o que decidir, só agradecer a meu pai e comemorar.
Tive vontade de gritar: — Combustível!!! Combustível, meu chapa! Gasolina da melhor! Quatrocentos litros de alta octanagem! Uueebaaa!!
Garrafões de vidro cheios de gasolina estavam guardados atrás de uma parede falsa da nossa adega. Porca miséria! Isso é que é presente! Junto aos garrafões, numa caixa, estava o livro de Piero Taruffi, “The Technique of Motor Racing”, escrito no final da década de 1950, onde o mestre dos mestres ensina a arte da pilotagem! É comigo mesmo! Eta pai drugue do caramba!
Aflição? Ansiedade? Alegria? Essas expressões são pouco para descrever meu estado. Não via a hora de me livrar dos convidados. Não podia contar a boa nova a ninguém, pois o uso da gasolina é ilegal, poluidor e politicamente incorreto, como sabem. Muito menos à minha esposa, que tentaria barrar meus perigosos planos. Voltei ao salão e cumpri os salamaleques sociais completamente desatento, como um zumbi, pensando na gasolina. Nas despedidas, meio sem querer, beijei na boca algumas mulheres tal o meu estado de ânimo e alienação. Creditaram meu comportamento ao excesso de vinho, imagino. Lá fora, nevava suavemente.
Casa vazia. Ordenei aos criados que se retirassem. São imigrantes ilegais suíços. Desde que a contagem do tempo foi abolida pelo referendo mundial e os canivetes considerados armas perigosas, os suíços têm chegado aos milhares. Não sabem fazer outra coisa além de relógios, canivetes e pôr a casa em ordem. Além do mais, depois de acabarmos com o dinheiro e instituirmos o “Um Dia Eu Te Pago”, os bancos fecharam e é outra coisa a menos pro suíço fazer. Fui um dos mentores do Um Dia Eu Te Pago, me orgulho disso, pois agora todo mundo anda feliz, todo mundo tem tudo o que quer – é só chegar, pegar e falar: “Um Dia Eu Te Pago”, e ir embora com a coisa. Com os robôs hoje fazendo todo o trabalho chato, e a gente só trabalhando por prazer, eu, por exemplo, produzo vinho Bordeaux, e os suíços, arrumam as casas. Os prédios dos bancos, hoje, são usados para os que gostam de desfilar de terno, e só. Ficam lá, andando a toa pra lá e pra cá, desfilando e se fazendo de atarefados, falando aos celulares, comprando e vendendo fictícios Um Dia Eu Te Pago. Estão felizes assim e isso é o que importa.
Dei voz de desligamento aos robôs. Mansão em silêncio. Estela subiu para o quarto. Acompanhei-a. Nossa filha veio nos beijar na cama, pois na manhã seguinte voltaria com o marido e o meu neto ao Azerbaijão, onde eles construíram um refinado resort. Estela tomou suas pílulas, apagou a luz, dormiu. Escutei-a ferver, trshrrshrrsh… Dei um tempinho para ela embalar no sono, peguei a lanterna na gaveta do criado-mudo e escorreguei das cobertas. Enfiei os chinelos e, pé ante pé, saí do quarto. Desci as escadas e fui ao porão.
O porão-adega é enorme, compreende quase toda a base da casa. O ambiente estava frio, por volta de 14 °C, a temperatura ideal para a conservação do vinho. Achei a parede citada por meu pai. Com uma espátula, rente ao chão fui retirando os tijolos, que tinham sido assentados com terra. Consegui abrir passagem para o meu corpo, que é magro. Entrei. Gostei de não sentir cheiro de gasolina, do qual ainda lembrava, pois isso indicava que os garrafões estavam hermeticamente fechados. Eram de vidro escuro. Tampa plástica. Vinte litros cada. Contei-os. Eram vinte. Vinte vezes vinte resultam em quatrocentos. Quatrocentos litros de gasolina! Quatrocentinhos!! Apaguei a lanterna e abracei-os, pensando no meu velho drugue, o meu pai.
Após um momento, voltei a acender a lanterna. Achei a caixa de madeira onde estava o envelope contendo o livro de Taruffi. Peguei-o. Vi alguns galões de plástico. Eram os óleos. Saí pelo buraco rente ao solo, tampei-o com os tijolos e pus uma barrica na frente, pra disfarçar. Fui à biblioteca, sentei na poltrona fofuda de leitura e acendi a luz do abajur. Abri o envelope e retirei o livro. Na capa, Taruffi em seu Ferrari, com o qual venceu a Mille Miglia de 1957. The Technique of Motor Racing.
Prólogo de Fangio, apoiando as recomendações contidas no livro do amigo. Comecei a ler. Imediatamente fascinei-me. Completamente envolvido, bebi as palavras pela madrugada adentro. Curvas, derrapagens, roncos estridentes, fortes acelerações, fortes freadas, marchas, alavanca de marcha, dupla-embreagem, câmbio não sincronizado, quebras, poupar a máquina, gasolina, óleo, suor, volante, posição ao volante, pegada certa, força, braço forte, temperatura da água, veias saltando, suor, pedais, punta e tacco, perigo, calor, sede, pressão do óleo, ponto de tangência, saída de curva, abdômen duro, dor nos rins, rivais, vácuo, instantes, reações rápidas e precisas, euforia, honra, companheirsmo…
Meu cérebro absorvia as informações trabalhando com rapidez e lucidez jamais atingida em minha vida. Agora sim começava a entender o encanto que meu pai e meu bisavô tinham por essas máquinas, esses motores primitivos, temperamentais, potentíssimos e frágeis. Compreendia a atração pelo perigo; o desafio de fazer as curvas na máxima velocidade possível, o prazer de beirar os limites, o medo do castigo.
Li de uma só fincada até a última página. Com um longo suspiro o fechei. Mantive-o ao regaço. Não queria separar-me dele. Ele me ligava a toda essa confusão de emoções. Além de ligação, ordenava as infinitas informações, orientando, aconselhando com uma voz dura e experiente.
Olhei pela grande janela ao meu lado. O dia clareava, a neve caía em leves flocos. Ar parado. Os pinheiros estavam carregados com pesados mantos brancos. Seus galhos, como braços cansados, vergavam. Os parreirais, desfolhados, hibernavam, reservando forças para produzir belas e deliciosas uvas. A paz da natureza conflitava com as imagens estonteantes que acabara de viver pela leitura. Eu precisava dormir e botar a cabeça em ordem. Fui pra cama. Estela ainda fervia baixinho, trsschhhssrss… Escutei Amanda acordando, escovando os dentes… dormi.
Acordei quando me vi voando, apavorado, caindo por uma ribanceira dentro do GTO, que enfurecido e rebelde agia como louco e fazia o que bem queria. Suado, sentei na cama e tentei racionalizar o sonho. Estava inseguro, não me sentia capaz de dominar essa máquina bruta e caprichosa. Mas isso não ia ficar assim, aaah, não! Não comigo e meu GTO!
Levantei, escovei os dentes, voltei pra cama, comi a Estela, que continuava gostosinha e quentinha.
O Sol ainda estava encoberto pelas brumas da manhã fria quando desci para o café. Nossa copeira, que há cinco anos submeteu-se a uma cirurgia plástica para tornar-se uma réplica da Elzabeth Taylor, serviu-me aproximando perigosamente o decote de onde borbulhavam seios alvos salpicados de sardas. Quando a Elizabeth Taylor voltou a ser cultuada, Judith fez a cirurgia de replicação, arrumou namorado, casou-se, teve uma filha. A menina nasceu com um nariz enorme e adunco. O pai processou Judith por propaganda enganosa, já que a filha não se parecia em nada com a Elizabeth Taylor. Judith, nem aí, casou-se com dois japoneses com exatos um metro e vinte de altura e há pouco replicados; um de Clark Gable e o outro de Burt Lancaster. Hoje eles cuidam do nosso jardim, da Judith e da menina; e cuidam muito bem, pois todos se mostram felizes. O povo japonês adora plantas e fazer sexo até a exaustão. Encheu-se da eletrônica e renunciou a ela.
Fui ao museu, logo ao lado da mansão, e que só é aberto ao público em datas especiais. São máquinas, utensílios para a produção do vinho, veículos, móveis, roupas, aparelhos domésticos. Atrás de cada conjunto de objetos estão as fotos e os nomes de quem da família os adquiriu. Fotos de animais também; cavalos, cães e gatos, com os respectivos nomes.
Acendi a luz do setor do GTO. Encaminhei-me a ele e fui falando-lhe de mansinho, para acordá-lo. Puxei a coberta de flanela cor de vinho, que escorreu, deslizando sem ter onde se agarrar nas formas suaves. Passei a mão pela sua carroceria de alumínio, desenhada e construída por Sergio Scaglietti, um artista ímpar. Com a chave abri a porta, que é leve como uma pluma. Entrei. Senti a mistura do cheiro gostoso de couro, ferros e alumínio. Abri as janelas plásticas corrediças, puxando-as horizontalmente. Abri o porta-luvas e de debaixo das luvas de pilotagem estava o Manual do Proprietário. Comecei a ler desde o começo, como já havia feito várias vezes, sentado ali mesmo, dentro do carro, respirando o seu ar.
Painel, mostradores, pedais, embreagem, freio, acelerador, alavanca de câmbio alta, direcionada por canais numa grelha de metal, com primeira marcha para trás, à esquerda, cinco marchas, posição do banco, botões dos faróis, botão do start, bocal do tanque de combustível, bocal do tanque de óleo de cárter, quantidade dos respectivos, volante, pneus, pressão dos pneus, rotação máxima, velocidade das marchas… Peso, humm… está aqui: 765 kg. Lá fiquei algumas horas, lendo, mexendo, rememorando, imaginando. Porém dessa vez a situação era outra, pois tinha a perspectiva real de pôr tudo para funcionar. Sai do carro e peguei a bomba manual de encher pneus das bicicletas. Ela tem calibrador. Coloquei trinta e três libras nos traseiros e trinta nos dianteiros. Os conservantes os mantiveram sem ressecamento. Apaguei as luzes e fui almoçar.
Durante a sobremesa, Estela disse que me estranhava, que eu estava desatento e não prestava atenção ao que ela falava. Respondi que os homens após alguns anos de casamento ficam assim mesmo e que já era tempo de ela não se preocupar com isso. Saciado com pouco, levantei-me, beijei de leve seu mamilo direito, que estava mais doce que os doces da mesa e fui ao escritório. Peguei a bateria do laptop e uma seringa hipodérmica dos cavalos. Enfiei-as no bolso da calça e desci ao porão.
Escarafunchei-me pela passagem após retirar o tonel e os tijolos soltos, peguei dois garrafões pelas alças e subi ao museu, deixando os galões ao lado do GTO. Repeti a operação. Voltei, peguei vinte litros de óleo de cárter e dois litros de fluido de freio e levei-os ao carro. Abri as janelas do museu. O ar fino e gelado permeou-se pelo ambiente. Comecei o abastecimento. Parecia estar injetando sangue num ser exangue. Enquanto o abastecia escutava-o estalar de contente. Parecia tomar vida, estufar, pegar cor, ruborizar, esquentar. Separei uns 100 ml de gasolina e os coloquei na seringa hipodérmica. Coloquei o fluido de freio, tendo o cuidado de sangrar o sistema. Conectei a bateria do laptop ao sistema elétrico do carro e passei-lhe um esparadrapo. Ela tem dez vezes a carga das baterias automobilísticas de décadas atrás.
Abri o capô, e sorrindo, admirei o motor V-12 projetado por Gioacchino Colombo. É um Testarossa de três litros de cilindrada, que, apesar das tampas dos cabeçotes não serem vermelhas como diz seu nome, e sim pretas, é um Testarossa. 290 cv a 7.500 rpm, 250 cm³ por cilindro, seis carburadores duplos Weber 38, comando de válvulas único por cabeçote. Coloquei água no radiador, óleo no tanque reservatório do cárter, pois o sistema é de cárter seco, e verifiquei os níveis. Usei vinte litros de óleo de cárter. Retirei cada vela e verifiquei-as. Elas eram antigas, mas estavam como novas, pois nunca haviam faiscado. Recoloquei as velas e dividi a gasolina da seringa pelas doze cornetas dos carburadores. Fechei o capô, travei as travas. Voltei à cabine, esfreguei as mãos no volante revestido de madeira, liguei a chave de ignição e, após um profundo estufar do peito, apertei no painel o botão do motor de arranque. O Testarossa, surpreendentemente, assim que deu suas primeiras voltas, pegou. No início uma lufada de fumaça preta foi exalada num jorro pra fora dos escapes, parecendo um afogado que cospe a água que lhe impedia a respiração. Tudo tremeu com o rugido seco, pipocante e irregular do motor; a carroceria, os objetos do museu, as janelas, meu coração, tudo. Pelo retrovisor interno vi fotos balançando na parede logo atrás dos escapes; algumas voaram. Deixei-o um pouco acima da marcha-lenta, ao redor de 2.000 rpm. Quase não mais via fumaça. O cheiro gostoso da gasolina de alta octanagem já tomava conta do ambiente. O conta-giros oscilava, mostrando que nem todos os carburadores misturavam regularmente. Aos poucos, com os ferros esquentando e a temperatura da água subindo, fui bombeando o acelerador para em seguida deixar o giro cair de volta a 2.000 rpm. O motor foi limpando e regularizando a marcha, alisando. A temperatura da água subiu para 80 ºC. Pressão do óleo OK. A temperatura do óleo ainda ia fria, pois era muito óleo para esquentar, mesmo assim, bombeei um pouco mais fundo o pedal do acelerador, levando o giro a picos de 4.000 rpm.
E eis que chegaram correndo, vestidos de cowboys e munidos de extintores de incêndio, os pequenos Mori Lancaster e Tunataro Gable. Na freada, as alpargatas do Gable escorregaram e ele espatifou-se nos galões vazios. Levantou-se como um gato. Estavam apavorados, pois nunca ouviram tamanha e explosiva barulheira. Gargalhando, gritei-lhes que estava tudo sob controle. Pedi que abrissem o portão para eu ia sair com a máquina. Entreolharam-se, constatando minha insanidade, porém, como os japoneses adoram acessos de loucura, entreolharam-se, ergueram os ombros e, animados, foram abrir os portões.
Lembrando os movimentos do meu pai, embreei no pedal da esquerda e, trouxe a alavanca de marchas para o engate da primeira marcha. Minha perna esquerda tremia com o efeito da adrenalina, mas, amortecendo as oscilações com o calcanhar, consegui manter o pé estável e, aos poucos, fui soltando a embreagem, fazendo o disco atritar com o platô e o volante e movimentar as engrenagens do câmbio e diferencial. Eu não acreditava, mas o GTO movia-se!
Subitamente, o motor parou. Percebi que lhe dera pouca rotação e numa das suas falhas o motor apagara. Embreei, apertei o botão de partida e o V-12 voltou a funcionar. Dessa vez acelerei mais forte para sair. O disco grudou, o carro moveu-se de um pulo e saí meio destrambelhado, cuidando de sentir os movimentos de reação ao volante e evitando atropelar os dois cowboys, que a essa altura riam e gritavam gritos guturais, maravilhosos, de samurais, dando tiros de espoleta com seus Colts 45 e jogando os chapéus para o alto. Saí meio devagar e aos trancos. Acelerando mais um pouquinho os trancos pararam e pude dar uma volta no grande pátio da mansão. Ao me aproximar onde estavam os meus amigos cowboys, o Lancaster, com um lenço branco, acenou para que eu parasse. Parei. Ele, falando sério e com voz grossa, abriu a porta e me amarrou o tal lenço na altura da testa, com o laço atrás. Seu dedo, vertendo sangue, marcara em vermelho uma inscrição japonesa na faixa. Bateu um tapinha no meu ombro e fechou a porta. “É incrível como eles curtem um suicídio”, pensei comigo, “Agora temos aqui dois Testa Rossa: o motor e eu…” e saí acelerando mais forte partindo para a estrada, “Que seja o que Deus quiser, pensei. Agora ou vai ou racha!”
Fui em segunda marcha por cerca de um quilômetro, até chegar à rodovia. Fazia frio. Já dava para sentir o calorzinho provindo do motor, que começava a me esquentar as pernas, relaxando-as da tensão. A estrada é plana e de pista simples; uma faixa vai, outra vem. Estava completamente vazia, nem vento tinha. Esta é das azuis, velocidade limitada a 120 km/h. Nossos carros, como sabem, só passam dessa velocidade se apertarmos o botão de emergência, ocorrência que depois devemos explicar às autoridades, pois o computador de bordo as informa do ocorrido. De qualquer modo, os carros elétricos nunca passam dos 160 km/h — mais que isso, segundo estudos, é desnecessário.
Engatei primeira e com o motor embaralhando, entrei devagar na rodovia. O carro vibrava com o pipocamento do motor. A cor amarela do capô ondeado e dos pára-lamas contrastava com o piso azul do cimentado sintético. Era uma visão realmente fantástica dos ombros largos e amarelos do GTO abraçando a interminável reta azul. As barreiras brancas de neve, nas laterais, delimitavam e afunilavam a reta. Lá ao longe, as montanhas também brancas barravam o horizonte. Tudo silêncio abafado e só o motor rugia. O GTO e eu tremíamos, numa gostosa mistura de alegria e receio.
Em primeira marcha, suavemente, fui acelerando. O motor engasgava. Ao atingir as 3.500 rpm começou a limpar as gargantas. Em seguida senti que todos os doze cilindros respiravam livres e passavam a trabalhar sem falhas, e foi aí que dei pra valer o que ele tanto pedia: combustível e ar, acelerando fundo. Foi nesse momento que realmente senti a fera que tinha nas mãos, pois veio um urro selvagem de suas entranhas e me senti catapultado adiante, como se estivesse dentro de um tigre de ferro fincando as garras no chão. Senti a traseira do GTO coriscar para os lados, fazendo a reta serpentear-se na minha frente. Com cuidado, sentindo que o volante tornava-se cada vez mais leve, pois a frente erguera-se com a aceleração, fui aliviando um pouco e corrigindo com as pontas dos dedos as pretensões malucas do carro. Quando beirei as 6.000 rpm, embreei e empurrei a segunda, soltando a embreagem rapidamente, mas sem tranco, apesar de estar estranhando as forças que meu corpo sofria. Quase que inconscientemente, só sabendo que eu já tinha entrado na jogada que o GTO queria, continuei dando gás, gás e gás. E com isso fui enlouquecendo, literalmente enlouquecendo com as forças, o som, a vibração, a atenção aguda que me era exigida. Mal raciocinava, só reagia. Meu pé direito aprendera logo sua função e pesava e pesava, calcando fundo o acelerador que vibrava sob a sua sola, pedindo para ser pisado com força. Com o corpo arrepiado, a nuca arrepiada, travei os dentes e segui decidido. Não tinha volta, não tinha. Eu iria até o fim, desse aonde desse. A segunda marcha foi engolida num repente, o conta-giros vibrava a ponto de ficar fora de foco e subia rápido como uma mola, torcendo e entrando na faixa vermelha. Rapidamente puxei terceira. O carro continuou a acelerar forte, mantendo minhas costas travadas no encosto duro e o os pulmões sem forças para encher. Meu corpo extasiava-se com aquela plena explosão de energia. Estava contente; duplamente contente, por sabia que o GTO sentia o mesmo, que ele se libertava de décadas de imobilidade, parecendo um gênio poderoso e mágico sendo libertado da lâmpada. Um gênio que me realizava um desejo antes impossível, antes etéreo. A terceira foi um pouco mais longa, nos levando a uma velocidade onde o carro começou a tornar-se mais duro na pista, assentado pela aerodinâmica. Continuei pisando fundo em busca da faixa vermelha do conta-giros, que era o único mostrador que tinha tempo de verificar. As laterais nevadas já se tornavam indistintas, alisadas como que por uma régua, e delas escutava os ecos dos escapes. Imaginava os degraus de neve soltando-se e caindo moles no piso azul com o retumbar da nossa passagem. Empurrei a quarta. Veio um pouco de medo, pois eu sabia que estava entrando em outra fase, outra dimensão. Eu teria que dar conta desta marcha que iniciava e mais uma longa e perigosa quinta marcha. Para consolo lembrei meu bisavô ensinando que medo não é pecado; que covardia, sim, mas que medo, não. De qualquer modo, meu pé direito já não me obedecia com facilidade e continuei acelerando tudo. Não precisava mais do conta-giros, pois meu cérebro já sabia o tom certo do motor para as mudanças de marcha. A velocidade continuava subindo e a estrada estreitando-se, transformando-se num fio de navalha. Lembrei-me num lapso do livro de W. S. Maugham, “O Fio da Navalha” — o homem e o equilíbrio. A atmosfera fendida zunia pelas frestas da fina carroceria de alumínio, trazendo para dentro o ar gelado que refrescava minha face ruborizada, injetada de sangue quente. O GTO tornava-se agora cada vez mais leve, porém, seguia reto — o extrator de ar, traseiro, agia. Minhas mãos iam praticamente imóveis, sensibilíssimas, sentindo o piso como se com as palmas nele tocasse, como se os pneus estivessem conectados nevralgicamente a elas. Delicadamente, corrigia as tênues e perigosas oscilações do carro. Respirei um pouco, pois até então não creio que o tivesse feito, enchi o peito e puxei para quinta. Com o pé direito grudando o pedal ao assoalho, calculei, pela rotação em que estava em 5a marcha, 6.300 rpm, que deveríamos correr a 270 km/h. E eu ainda tinha motor com fôlego sobrando! Vamos em frente! pensei, Não gosto de ver ninguém insatisfeito! A velocidade continuava a aumentar e aumentar. Até que, de súbito, entramos numa fase que eu diria estática. O som dos escapes sumiu lá pra trás, só restando o do motor, logo aos meus pés, com suas engrenagens trabalhando e os carburadores chupando jatos de ar. As vibrações fortes quase sumiram, a ponto de somente senti-las como um leve tremor. Pararam as pequenas oscilações laterais e ele passou a seguir reto como uma seta no espaço… sssouufff… Sensação de vazio, vácuo, gravidade zero, tempo zero. Minha visão restringia-se a um ponto, lá longe, que não chegava nunca. Nada mudava. Tudo parecia parado. Não sei por quanto tempo assim ficamos, mas sei que foi tempo bastante para que a sensação me ficasse indelével a ponto de revivê-la agora, ou quando eu bem quiser. O gênio satisfizera meu desejo. Eu conhecera e tivera o prazer a velocidade pura.
A certa altura o motor começou a refrear, dando sinal que já atingira seu pico máximo de esforço. Creio que já havíamos passado dos 300 km/h. Satisfeito, aliviei-o. Ainda bem, pois estávamos chegando às montanhas. Baixei para uns 230 km/h. Tirei a faixa da testa e enfiei-a no bolso do casaco.
Por alguns minutos mantive-o assim, descansando, resfolegando, readquirindo a energia exaurida, reagrupando forças para enfrentar a íngreme serra nevada que aproximava.
Tentei. Dou minha palavra que tentei fazer aquelas curvas com classe e suavidade, no limite da aderência dos pneus, num deslize controlado, com um mínimo de movimentos do volante, mas não consegui. Infelizmente, não consegui fazê-las perfeitamente. Tentei acelerar no momento certo nas saídas das curvas, tentei acertar o ponto exato das tangências, o ponto e a força exata da freada, mas, infelizmente, não fiz como faziam, não fiz como recomendou Taruffi. Creio que estou embotado pela modernidade. Meus sentidos, não sendo exigidos, não precisaram desenvolver-se ao longo da vida. Seria o mesmo que querer caçar de tanga e arco e flecha, valendo-me de sentidos aguçados, que não tenho. Uma frustração com a qual terei que conviver, pois, afinal, a vida é assim.
De qualquer modo, voltei para casa contente e, como sou um homem de família, ainda guardo o livro de Taruffi e os restantes 320 litros da gasolina, porém, agora em outro esconderijo, que só meu neto saberá, e no devido tempo.
Enquanto isso, o mágico 250 GTO estará bem guardado, azeitado, prontinho para ser acionado. Tal qual a lâmpada mágica esperando ser esfregada. Tal qual a espada mágica, à espera do punho certo para soltar-se da pedra.
Pensando bem, como viram, Ferry Porsche acertou na mosca quando disse que o último automóvel seria um esportivo. Ele só não previu que seria um Ferrari….
ooooo
(Continua outro dia)