“A Volkswagen gostaria de mostrar o seu reconhecimento por este fato…”
Em outubro de 1950 apareceu o primeiro exemplar da Gute Fahrt (Tenha uma boa viagem), uma revista para os usuários dos veículos Volkswagen. Conforme a própria redação da Gute Fahrt esclareceu, esta revista se atribuiu a tarefa de fomentar o “relacionamento pessoal” entre o pequeno garoto cujo nome era Volkswagen (Fusca) e seus motoristas, e também de ser um elo de união entre os motoristas deste carro. Com sucesso se formou uma crescente comunidade de fãs da Gute Fahrt.
Um ano depois, a Gute Fahrt de outubro de 1951 publicou uma matéria sobre carros que haviam ultrapassado cem mil quilômetros rodados com o mesmo motor cujo título é “Herzlichen Glückwunsch – 100.000 Kilometer mit demselben Motor” (Cordiais parabéns – 100.000 quilômetros com o mesmo motor), reproduzindo uma carta que a Volkswagen enviou a uma empresa cujo Fusca ultrapassou a barreira dos 100.000 km rodados. Ai vai a tradução desta carta (os nomes foram abreviados pela redação daquela revista em nome da preservação de privacidade):
Como fomos informados por nosso Concessionário da cidade de D., a empresa H. & Co., o Volkswagen utilizado na sua empresa (chassi Nr. 1—098.564, motor Nr. 1—129 706) recentemente ultrapassou a distância total percorrida de 100.000 km sem ter necessitado de reparos de motor significativos. Permita-nos felicitá-los por este sucesso muito satisfatório e expressar a nossa apreciação através da entrega do certificado anexo e de um alfinete VW de lapela, de ouro.
Ao mesmo tempo, nós lhe enviamos para identificação de seu comprovado Volkswagen um emblema VW para ser aplicado externamente e outro do nosso protetor São Cristóvão para o painel do carro. Ambos podem ser colocados gratuitamente em seu carro por seu Concessionário.
Como acreditamos que a comprovação técnica do veículo em questão não depende somente da qualidade do nosso produto, mas se deve também ao tratamento exemplar e manutenção cuidadosa deste Volkswagen, pedimos que vocês nos permitam dedicar a seu motorista, Sr. Franz N., em cujas mãos o carro em questão foi confiado em especial, um singelo reconhecimento. Portanto, pedimos que vocês entreguem ao Sr. N. o certificado anexo, um alfinete VW de ouro e um relógio de pulso VW em nosso nome.
Além disso, desejamos-lhes muita alegria com o seu Volkswagen …
Este tipo de carta foi enviado aos milhares numa grandiosa ação de marketing da Fábrica que estava recém deslanchando na fabricação do Fusca. Mas este tipo de ação já tinha sido iniciado em 1949 com toda a pompa e circunstância, apenas quatro anos após o término da Segunda Guerra Mundial — e com boa parte da fábrica ainda em ruínas — mas com um plano de fidelização de clientes exemplar. O Volkswagen era um carro novo no mercado e tinha que se afirmar e nada melhor que valorizar a qualidade dos carros a partir de uma ação como esta.
Havia cartas para carros de empresa, como a reproduzida acima, bem como para particulares, e neste caso os presentes eram o diploma, o alfinete VW de ouro, as duas plaquinhas e o relógio VW.
Nas primeiras premiações, em 1949, já havia o certificado e as plaquinhas que vinham da Fábrica. Já o relógio era adquirido pelo revendedor VW que mandava fazer uma gravação manual na tampa traseira do relógio com uma dedicatória. No caso da foto a dedicatória dizia: “100.000 km no Volkswagen sem troca do motor – Revendedor Freichhau – Colônia”. Não havia indicação VW na parte dianteira do relógio.
A indicação relativa à premiação no mostrador do relógio de pulso só veio a ocorrer numa campanha de premiação isolada feita na Suécia, onde havia uma indicação no mostrador do relógio com o símbolo VW e o número 100.000 e nada na tampa traseira.
Não raro os carros recebiam uma decoração com flores e um cartazinho com a indicação 100.000; era uma festa.
Pouco tempo depois a Fábrica deu um jeito de organizar a questão dos relógios de uma maneira profissional; apareceram as gravações profissionais nas tampas dos relógios e as compras eram feitas em lotes. A partir daí as diferenças que ocorreram foram devido a diferentes fornecimentos ou trocas de layout das gravações.
Também havia diferenças entre as plaquinhas comemorativas. A plaquinha com o São Cristóvão tinha duas versões: as primeiras, no tempo dos carros de vigias traseiras bipartidas tinham um abaulado na parte interna superior para se adaptar ao painel daquela época.
Em 1952 a Gute Fahrt, com apoio da Fábrica e de vários subfornecedores, lançou a idéia de realizar anualmente os Treffen der VW Hunderttausender (Encontros dos VW que rodaram cem mil quilômetros). Estes encontros eram destinados aos condutores de Volkswagens com mais de 100.000 km rodados com o mesmo motor e sem panes maiores; por exemplo, o virabrequim não poderia ter sido trocado. Mas, como veremos, isto não se concretizou, foram realizados apenas dois encontros, em 1952 e 1954.
Um lindo cartaz de convite do encontro de 1952 dizia: Herbsttreffen und Zielfahrt der VW Huderttausender und aller Volkswagen-Freunde (Encontro de Outono com passeio até o destino dos VW- que rodaram cem mil quilômetros e de todos os amigos da Volkswagen). Erbrach 6 e 7 de setembro de 1952, há exatos 63 anos!
Os participantes receberam lindas plaquetas de participação. Para os 1.196 que tinham completado os 100.000 km as plaquetas tinham uma borda dourada. A plaqueta dos demais “amigos Volkswagen” tinha uma borda prateada – uma aula de fidelização. Hoje estas plaquetas têm um grande valor entre os colecionadores.
As fotos deste evento são impressionantes. Foi o primeiro megaevento de Fuscas, sim, pois os Fuscas eram novos nos cenários alemão e mundial, e reunir esta turma num só lugar foi um belo exercício de logística.
No evento de 1952 foi realizado um gigantesco sorteio, no qual só puderam participar os motoristas que atingiram 100.000 km com seus Volkswagens. O valor total dos prêmios que foram sorteados foi de 100.000 marcos alemães. Além de peças e acessórios, foram sorteados sete Fuscas zero-quilômetro. O primeiro prêmio foi um Fusca Kabriolett zerinho feito pela Karmann, e era exatamente o 10.000º Fusca Kabriolett, fato ressaltado por um cartaz.
Para ganhar este carro o Sr. Kaiser, que era motorista de táxi da cidade de Limburg, teve que ganhar uma gincana de quem dirigia de maneira mais econômica realizada entre os 11 finalistas. Cada um recebeu uma proveta com 250 ml de gasolina adaptada aos carros. O Sr. Kaiser conseguiu andar 4.336,65 metros — equivalente a 17,3 km/l. Seu carro de uso já tinha rodado 151.126 km. Mas ele não era o recordista de quilometragem rodada com o mesmo motor, pois apareceu um Fusca que tinha rodado 485.000 km, que foi o mais antigo a comparecer à festa.
Logo depois do evento o Sr. Kaiser vendeu o Kabriolett para comprar um táxi Mercedes-Benz. Mas ele manteve o seu Fusca até a sua morte em 1973, quando o carro passou às mãos de um Fuscamaniaco, Otto Weiymann. E desde 1985 este carro está no AutoMuseum Volkswagen como empréstimo. O carro entrou lá com 531.000 km rodados, depois de 2 motores, 10 jogos de pneus, dois jogos de amortecedores e após ter consumido uns 45.000 litros de gasolina comum.
Chegamos ao encontro de 1954
O evento de 1954 foi chamado de Sommertreffen der VW Hunderttausender (Encontro de Verão dos VW com cem mil quilômetros rodados) e foi realizado em Killesberg, Stuttgart, reunindo aproximadamente 4.500 participantes, vindos da Alemanha e de alguns países próximos. Os participantes do evento ocuparam dezessete estacionamentos. Aproximadamente 16.000 pessoas se acotovelaram no domingo pela manhã em frente ao palco onde o Diretor Geral da Volkswagen, Dr. Heinrich Nordhoff, proferiu o discurso de boas-vindas. Este afluxo enlouquecedor de pessoas deve ter sido o motivo pelo qual não foram mais realizados eventos subseqüentes; seria impossível estabelecer a logística para eventos ainda maiores. Certamente os significativos prêmios oferecidos foram atrativos importantes numa Alemanha de pós-guerra.
A taxa de inscrição em 1954 foi de 8 marcos alemães; esta taxa dava direito, além da placa comemorativa (agora exclusivamente com aro de cor dourada) e uma placa oval de participação tipo rali, personalizada com o respectivo número de inscrição no evento. Os participantes com menos de 100.000 km rodados recebiam esta placa com a indicação de 100.000 km rodados tachada em vermelho. Além disso, todos os participantes receberam bilhetes gratuitos para uma opereta ao ar livre. Os carros que tinham ultrapassado os 200.000 km receberam prêmios adicionais.
As fotos deste evento também impressionam e marcam a sua pujança. Choveu bastante na ocasião e muitas áreas viraram um grande lamaçal, mas nada afastou os participantes, muitos vindos de longe. Neste evento a quantidade de carros que já haviam ultrapassado os 200.000 km foi muito maior.
Desta vez os prêmios principais foram um Fusca Kabriolett feito pela Karmann e outros nove VW sedãs tipo Exportação, todos zero-quilômetro; o sorteio ocorreu no domingo.
Os demais prêmios encheram um enorme salão de exposições; e seu valor somava aproximadamente 320.000 marcos alemães. Eram, entre outras coisas, 280 auto rádios, 57 câmeras fotográficas, 129 dispositivos para reclinar encostos, 527 conjuntos de capas para bancos, 290 luzes de marcha à ré e muito mais. Mas havia também uma miríade de outros produtos que foram sorteados, tais como refrigeradores e aspiradores de pó. Um incrível atrativo para os participantes.
Um total de 400 voluntários (como o da foto acima entregando prêmios) da organização VW trabalhou diuturnamente no evento; e outros 150 ajudantes foram enviados por concessionárias.
A seleção das pessoas que sortearam os nove Fuscas tipo exportação (modelos topo de linha na época) foi muito original. Foram selecionados para este fim, entre outros, o participante mais gordo (devidamente conferido por uma balança, visto na foto à esquerda durante a pesagem), alguém com as iniciais VW, uma pessoa que tivesse uma nota de 100 marcos (coisa rara na Alemanha naqueles dias) e uma pessoa que tivesse exatamente 74 anos. O número que sorteou o Kabriolett foi formado com o auxílio de balões a gás numerados que foram soltos. Os números dos balões que passaram uma certa marca em primeiro lugar foram anotados e formaram o número de quatro algarismos que definiu o ganhador (até parece que o velho lema “para que simplificar se podemos complicar” voltou a ser usado neste caso).
A organização deste evento foi incrível e teve o cuidado inclusive de oficiar aos correios para emitirem um carimbo comemorativo do evento e imprimir cartões filatélicos comemorativos em linha com os costumes da época.
Estes eventos fazem parte da mitologia do Fusca na Alemanha e no mundo e eles são lembrados com freqüência, tanto que o cinqüentenário do evento de 1952 foi comemorado com um evento de mesmo nome realizado entre 31 de maio e 2 de junho de 2002 na cidadezinha de Hückeswagen, que fica próximo a Colônia, no estado da Renânia do Norte-Vestfália. Foi organizado por um grupo de Fuscamaníacos, o Dirk de Colônia e o Andreas “Paule” Richter em conjunto com o clube Brezelfenstervereinigung e.V (do qual sou associado há mais de 20 anos), que aproveitou o evento para realizar o seu Encontro de Primavera daquele ano. Foi um encontro internacional que reuniu 250 participantes de 14 países (Alemanha, Áustria, Suíça, França, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Inglaterra, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, EUA e Japão). A placa comemorativa deste evento se baseou na placa original de 1952 e no panorama característico do centro de Hückeswagen, com destaque para a torre de sua igreja, o resultado ficou muito interessante:
Uma história que se perpetua entre os colecionadores europeus que decoram seus Fuscas, inclusive os modificados, com plaquetas comemorativas dos 100.000 km.
Certamente estas ações de marketing foram das mais bem-sucedidas ações jamais feitas pela Volkswagen. Ponto para ela, que na época era conduzida por Heinrich “Heinz” Nordhoff, que certamente era um homem à frente de seu tempo!
AGr
Nota do autor: este material, em sua versão resumida, foi originalmente publicado na minha coluna “Volkswagen World”, do Portal Maxicar (www.maxicar.com.br), e esta publicação ocorre de comum acordo com o meu amigo Fernando Barenco, gestor do Portal MAXICAR, companheiro de muitos anos de trabalho em prol da preservação dos veículos VW históricos e de sua interessante história. O conteúdo foi revisado, ampliado e atualizado. O seu conteúdo é de interesse histórico e representa uma pesquisa bastante aprofundada do assunto. Fotografias e material de Alexander Gromow e resultantes de pesquisa na revista Gute Fahrt , em livros e em sites de internet, com material de internet postado por Dirk de Colônia e Carsten Reeder de Plettenberg. Fotos de colaboradores como o Francois Dutoy. Agradeço a todos pelas importantes colaborações.
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.