Caro leitor ou leitora,
Dando continuidade à publicação aqui no Ae do livro do Arnaldo Keller, “Um Corvette na noite e outros contos potentes”, hoje é a vez do quinto capítulo, “Um Corvette na noite paulistana”. Tenho certeza de que muitos de vocês curtirão o “lado selvagem” do Arnaldo em uma aventura amorosa misturada com velocidade — lembrando que seu livro é uma obra de ficção, mas tão magistralmente escrita que se fica em dúvida se é mesmo.
E desculpe-nos pelo atraso na atualização de hoje.
Boa leitura!
Bob Sharp
Editor-chefe
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UM CORVETTE NA NOITE E OUTROS CONTOS POTENTES
Por Arnaldo Keller
Capítulo 5 – Um Maserati 300 S a ser acertado
Eu já estava com o saco cheio. Bem cheio. Quem já esteve com o saco cheio da vida que levava vai entender. Minha carreira de piloto de corridas ia de morro abaixo. Estava com trinta e um anos e ainda não havia conseguido nada de espetacular, além dos acidentes. O último me custara dois dedos da mão direita, por sorte, o mindinho e o anular, os menos necessários. De qualquer modo eu teria que me conformar com essa deformação chata. Além disso, os patrocinadores e a equipe já não acreditavam mais em mim. Dou-lhes razão, nem eu mesmo acreditava.
Minha então noiva, a Priscila, pra completar, estava insuportável, irritadiça. Queria casar, e logo. Dentista de sucesso, sua especialidade era os buracos rasos, sem complicação. Consultório e clientela montada em São Paulo – tudo certinho. Tudo branquinho e organizado. Para ela, o imprevisto irritava e devia ser evitado a todo custo. Já eu, gosto dos imprevistos, acho que dão graça à vida.
Uma nuvem negra e abafante divisava-se no meu horizonte, a nuvem poderosa da persistência feminina. Via que mais cedo ou mais tarde eu definharia nas mãos delicadas da Priscila. Sentia meu peito cada vez mais oprimido. Precisava de ar. Precisava de um amor de verdade, uma mulher a quem me entregar com prazer e que me deixasse ser o que quero ser. Do jeito que estava, não dava mais. Com essa não dava pé.
Situação posta, decisão tomada. Por telefone avisei meus pais na fazenda, peguei meu velho casaco de couro Hércules, capacete, luvas, mochila, razoáveis economias, minha Harley 883, e sumi do mapa.
Desci para o sul e fui indo. Era fim de março, estava quente e só o casaco de couro bastava. Usei-o mais por proteção contra insetos e pedriscos. Lenço no pescoço e luvas completavam. Logo me acostumei a pilotar sem os dedos que faltavam. Bastava frear só com o médio, que ficava mais forte dia a dia, compensando.
Paraná, Santa Catarina. Dormi em Mafra, numa pousada de madeira na beira da estação de trem. Às cinco da manhã acordei com o barulho do trem manobrando. Voltei pra estrada. Rio Grande do Sul. Dormi em Porto Alegre. A próxima puxada seria a Punta Del Este. Fui. Entrou uma frente fria. Chuva ao final do trecho. Jornal e saco plástico abertos junto ao peito; essa dica segura todas. Em Punta fiquei por dois dias esperando o fim do mau tempo e jogando bacará. Toquei para Buenos Aires. Balsa no Rio da Prata. Vento e friozinho na balsa. Sentado de lado na moto e vendo a água passar respirava fundo o ar fino e úmido já impregnado dos pampas. Céu clareando bonito, nuvens altas esfiapadas. Muito vento lá em cima. Boa hora pra um café e um cigarrinho. Aos poucos voltava a saborear a vida. Ar puro e amplo me faz bem.
No fim da tarde, chegando ao porto de Buenos Aires, liguei de um bar para a Blanca. Ela não estava. Havia ido ao ensaio, segundo sua amiga. Blanca é bailarina. Desde pequeno tenho atração por bailarinas. Femininas e levinhas. Faceiras e atuantes. Estava com saudades dos pés da Blanca. Cheios de calos, dos quais tem vergonha e procura esconder. Boba, eu adoro a magreza e a arqueadura de seus pés. Era impositivo mordê-los, e logo.
Fui para o Hotel Frossard, na Calle Mitre, pertinho da Florida, bem no centro. Hotelzinho antigo, arquitetura francesa do século XIX. Meio caído e gasto; bem “porteño”. Já no quarto, liguei para os meus pais. Tudo bem com eles. Disseram que a Priscila havia ligado, desesperada, indignada. Meu cão estava bem. Caçara um preá. Meu cavalo velho estava bem. Pedi para não esquecerem de casqueá-lo. O leite ia bem, as vacas produziam bem. Papai e mamãe estavam contentes. Desliguei, tomei um banho, cochilei. Acordei com o fone tocando. Era a Blanca, que sabia onde me achar. Só de falar com ela meu peito esquentou. Já fazia uma semana que eu estava sem mulher.
— Fred! Estás bien mi querido? Que surpresa!
— Já se passaram dois anos. Vim só pra te ver. Você vem aqui ou vou aí?
— Mentiroso! Charlatón! Como estás? Que saudadiis!!!!
— Estou com dois dedos a menos. Perdi num acidente de corrida. Dedos da mão direita. Mas foi só. Quero te ver.
— Pobrecito! Não dói?
— Não, não dói nada. Fazem um pouco de falta, mas, deixa pra lá. Eu quero te ver.
— Hoy no puedo, querido. Hoje não. Mas amanhã sou toda sua, todita.
— Entendo… Então você está com um cara, né? Pena. Estou com tudo para te ver.
— Ai querido!
— Deixa que eu sobrevivo. Amanhã à tarde passo em sua casa. Lá pelas quatro, está bom? De manhã tenho que ir ver um negócio.
— Está bem, querido, mas é melhor que te espere na livraria Ateneo da Calle Corrientes. A que era um teatro e tem o teto pintado com afresco. Tem um café, lembra? Fomos juntos. Lindo, não? Está bom assim? — a Blanca propõe.
— Amanhã, quatro horas, no café da livraria. Estarei lá.
— Você está forte? – ela pergunta, como sempre.
— Estou.
— Huummm….
Ela, magrinha, gostava de homens fortes.
Desci para comer um bom filé na cantina que fica ao lado do hotel. Tomei uma jarrinha do vinho tinto da casa. Saí, dei uma volta na Calle Florida pra comprar cigarros. Muita gente na rua. Casais de bailarinos dançando tango. Uma dançarina bem tesuda e coxuda enroscava as pernas no sujeito com pinta de malaco e lhe tomava o chapéu. Imaginei que essa mulher deveria dar um trabalho danado pra sossegar. Pena não dar para comê-la. Um velho desbotado debaixo duma marquise tocava sua harmônica e cantava com voz gasta e rascante. Ninguém de platéia pra ele. Por consideração, fiquei escutando e dei-lhe uma graninha. Fui pro hotel dormir. Deitado, pensei: amanhã vejo a Blanca; não é ela quem procuro, mesmo assim vai ser bom vê-la. Estou com energia sobrando e ela vai gostar dessa energia toda.
A mulher que procuro não sei quem é nem onde está, mas a sinto. Dormi.
Costumo acordar cedo. No máximo seis e pouco. Hábito da roça. Tolstoi disse em Anna Karenina que se até as dez da manhã o homem do campo não tiver feito a metade da sua tarefa o dia estará perdido. Café, pan con mantequilla, jornal para ver a quantas anda a Argentina. Levei a moto para lavar.
Às oito horas liguei para o Héctor.
— Héctor! Como andas? Acá es Fred, de Brasil. Como estás, hombre?
— Fred! Carajo! Donde estás, voludo?— Estou aqui na sua terra. Posso vê-lo? Tenho um plano que espero que goste.
Fui. Sua oficina fica num subúrbio da capital. Héctor fabrica réplicas de carros clássicos de corridas da década de 1950 — a fase com as linhas mais belas, a nosso ver. As faz em plástico reforçado com fibra, mas sua verdadeira arte está nas que ocasionalmente faz em alumínio, que são bem mais caras e costumam usar mecânica da época. Héctor está coroa. Foi um grande piloto, campeão argentino por algumas vezes nos anos cinqüenta e sessenta, dirigindo os originais que hoje replica. Manca de uma perna, coxeia, fruto de um vôo de vinte metros. Um pneu de seu Ferrari 375 estourou na reta da avenida que beira o Rio da Prata, trecho que fechavam para formar um circuito. O carro bateu na mureta e ele foi catapultado. Naqueles anos ainda não usavam cinto de segurança. O capacete era chamado de “casco”, pois era só um casco. Época em que não havia rede para o espetáculo de trapézio nos circos. Se errasse, dançava. Nas corridas de carros passava o mesmo, e o Héctor se esborrachou na calçada e sua perna esquerda partiu-se feio. Ele costuma dizer que enquanto voava torcia para cair na água, imaginava-se caindo na água. Passou a um triz de uma árvore e rachou na calçada dura. Fangio, indo calmo num Mercedes W196, ganhou a corrida.
Na sua oficina vejo um Ferrari 125 F1 de 1950. Motor doze-cilindros, um litro e meio, com compressor. É do museu do Fangio e que está para ser restaurado. Foi do Fangio, ou melhor, é dele ainda, mesmo ele estando no além. Os sujeitos aqui, reverentemente, só cuidam. Nas marcas da lixa feitas no Ferrari, por baixo da tinta azul, vejo tinta vermelha. Sinal que antes de pintarem-no com o azul e amarelo da Argentina ele estava com a cor italiana. Naquele tempo, antes dos Lotus do Chapman trocarem o verde pelas cores do maço de cigarros Gold Leaf, os carros levavam as cores de seus países. Verde para Inglaterra, branco para EUA, vermelho para Itália, prata para Alemanha, azul para França. Patriótico. Hoje pintam como o patrocinador bem entender. O que manda é a grana; o amor ao esporte ficou para segundo plano. Fangio parou de correr assim que não lhe deram o melhor amortecedor para seu Maserati 250 F. equiparam-no com o da fábrica que dava o maior patrocínio. Essa foi a gota d’água pra ele. Mandou todo mundo às favas. O esporte, como esporte, para ele, acabara.
Lá dos fundos da oficina vem o Héctor. Ele já sabia do meu acidente. Olhamo-nos, vimos que estávamos bem e abraçamo-nos. Seus olhinhos sorridentes na cara rechunchuda brilharam ao ver a Harley.
— Tá bem, Héctor, vai dar uma volta com a moto! Depois a gente conversa — disse-lhe.
Ele sorriu, montou e saiu acelerando forte, sem capacete e sem óculos.
— Este viejo não vai se matar, vai? — pergunto ao seu gerente, Estéban, que tem cara de índio.
— Não sei. É possível — me responde meio indiferente e risonho. Mas, amigo Fred, venha ver este Maserati que recém-terminamos. Todo de alumínio. Que tal?
— Mas que bárbaro! É um 300 S ou um 450 S? — pergunto.
— É um 450 S. Ele é mais bojudo e leva um motor V-8. O motor do 300 S é um seis-em-linha, como sabe.
— Nunca o vi ao vivo. Lindo! — exclamei, enquanto passava a mão mutilada pelas curvas lisas do carro.
O Maserati parecia uma fera. Que máquina! A carroceria ainda estava sem pintura, com o alumínio exposto, fosco, interior também em alumínio. Entrei nele. Portinha fininha e leve. Cordinha para abri-la. Nada de carpete, meus pés raspavam e faziam barulho no assoalho. Pedais de competição, com furos. Volante revestido em madeira, sem verniz, madeira fosca, na distância certa, na pegada certa. Alavanca de câmbio curta, mas de base alta, junto ao volante, com bola cromada para pegada e grelha e guias para ela correr. Quatro marchas. Para engatar a ré era preciso destravar uma chapinha. Bancos secos em concha, revestidos com couro vermelho, pouco acolchoados mas justos nos rins. Torpedo atrás da cabeça do motorista pro vento não vir por trás. Rodas raiadas com borboletas, do cubo rápido. Entradas de ar na frente do carro para os enormes freios a tambor, de alumínio e ventilados; freios feitos lá mesmo na oficina. Painel em alumínio sem pintura e com mostradores Jaeger de fundo azul claro, idênticos aos originais, painel completo, menos o velocímetro, que velocímetro não é pra carro de corridas. Pequeno pára-brisa de acrílico. Chassi tubular de secção circular, grosso, quatro polegadas. Suspensão dianteira de dois triângulos sobrepostos, e com traseira De Dion. Caixa de câmbio transaxle conjugada ao diferencial, dela saindo as semi-árvores. Rebites por todos os lados, boca do tanque de combustível para fora do capô traseiro. Tridente de Netuno na grade dianteira. O motor… ah! O motor! Um V-8 do Maserati Bora 1973. 4,7 litros, quatro carburadores Weber 42, duplos, uma boca pra cada cilindro. 360 cv carregando 800 kg. Pouco mais de 2 kg para cada cv.
Pronto! Sentado no carro eu já estava ficando esquisito. Meus poros se abriam, as narinas dilatavam. Não sei por que, no momento, lembrei-me da Blanca.
O Estéban logo saca o drama e me “pede”:
— Fred, vai dar uma volta para ver se o velho não se estampou por aí. Ele deve ter ido lá pra a estrada que sai para Córdoba. Conhece, não?
— Demoraste, amigo, demoraste! — respondo — Te faço esse favor…
— Rodando uns trinta quilômetros pela estrada há um anel viário onde há boas curvas. Ele deve estar por lá. Você sabe, aqui não temos curvas, é tudo plano. Para achá-las, só nos anéis — o Estéban me orienta.
Dei a partida numa chavinha mixuruca no painel. Uma chavinha tão pequena praquele motorzão. Logo no primeiro toque o ronco veio grosso, seco pra burro e meio pipocante. Forte e sério como um lutador. Comando bravo, taxa alta.
— Estéban. Parece que este motor não está original. Está mais forte, não? — pergunto.
— Sim, está mais forte. O original tinha taxa de oito e meio e este está com dez e meio. Também trocamos os quatro comandos e pusemos uns mais fortes. Dos 310 cv foi para 360. O carro vai para a Bélgica. O dono quer participar de ralis e corridas de clássicos, então, ele está meio nojentinho para andar devagar.
— Legal! É assim que eu gosto. A quantos giros posso ir?
— Ele vai a sete e duzentos, mas, por favor, não passe dos seis mil, tá? Ele ainda está no final do amaciamento. E os pneus já estão calibrados. Andei com ele ontem e está tudo em ordem. Depois me conte o que achou da máquina — e finalizando, me dá um tapinha no ombro pra eu me mandar.
Pensei lá comigo, “Seis mil já tá bem bom. Dá pra buscar uns 300 cv. Pesando só uns 800 kg, praticamente a metade do Bora, deve andar uma barbaridade”. Embreei num pedal duro e que batia num ferro ao final do curso, engatei primeira na alavanca justa, que fazia um “clack” de metal, e acelerei um téco. Rrrrláápp! Rrrlááápp! “Uau! Está forte mesmo!” Embaralhando em baixa, fui saindo da oficina. Rrlááp, rrlááp, frrruuuu! Fui em primeira marcha até a esquina, tentando manter o giro ao redor das 3.300 rpm, um pouco antes do ponto do motor limpar. Eu sabia que se acelerasse um pouco mais ele iria estilingar lá para cima, e antes queria esquentar mais os ferros, amolecer o óleo para depois fazê-lo girar alto e limpar as goelas dos Webers. O carro ia dando uns tranquinhos e pipocando, nervoso. “Calma, bichão!” — falei para ele — “Já já vou te dar o que comer. Só me deixa achar um espacinho. Vai se esquentando aí, vai”. Dobrei a primeira esquina, acelerei mais um pouco e puxei a segunda. Ele não gostou do giro baixo. Fui acelerando suavemente para ele desengasgar. Mantive a segunda até o sinal da avenida. Ponto morto, parei fazendo punta-tacco pra manter o giro. Virei à direita, peguei a avenida, acelerei suave até a terceira marcha e a mantive, andando devagar a uns 80 km/h, com os outros me passando. Esperei os instrumentos chegarem ao ponto certo. Temperatura nos 85 graus, pressão de óleo OK, temperatura do óleo Ok. Agora posso brincar. Toquei um pouco mais rápido.
Dobrei à direita na ligação para a estrada que vai a Córdoba. Puxei segunda marcha na curva do acesso. Fui apontando ao ponto de tangência para entrar na estrada e aumentei a aceleração suavemente. O motor limpou de todo só quando atingiu quatro mil giros. Foi aí que dei o gás de verdade. Os pneus eram finos, como os da época. A traseira rabeou, ciscando, desperdiçando tração. Com as mãos apoiadas nas pernas fui dando os leves toques corretores e sem tirar o pé do talo. De rabo de olho chequei o conta-giros: seis mil e quinhentos. Soquei terceira. Pé no talo, menos rabeadas. Entrei na pista já a uns cento e sessenta, como que lançado por uma corda, escapando pela tangente, deixando o carro escorregar e aproveitando a força centrífuga pra acelerar ainda mais. Fui beirar o guard-rail na pista da esquerda. Acabei de esticar terceira até os seis mil e puxei quarta. O barulho do escape esquerdo ecoava intermitente nos postinhos do guard-rail: sá, sá, sá, sá… A velocidade foi aumentando até essa intermitência praticamente cessar e ficar um som contínuo, sinal que eu estava mesmo no pau. Pela quarta longa calculei que a seis mil estaria na faixa dos 250 km/h. Fui aos seis mil. O carro estava firme de suspensão, porém o sentia meio na ponta dos pneus, escorregadios, com a direção leve, leve. Sentia que se alguém me tocasse de lado, por mais delicado que fosse, o carro sairia voando. Faltava downforce para o empurrar de encontro ao solo, mas não era o bastante para intimidar, dava pra ir curtindo a estrada a duzentos e pouco. Baixei para duzentos e pouco.
Logo cheguei à alça onde poderia estar o Héctor. Vi-o curvar deitado com minha Harley, já saindo da alça e pegando a pista oposta, para voltar. Ele nem me viu e tocou de volta pra oficina. Freei forte para sair da estrada e entrar à direita no retorno. A traseira balançou um pouquinho. Achei as molas dianteiras um pouco moles, pois o carro afocinhou na freada mais do que devia e aliviou demais a traseira. Entrei para a direita e deixei-o em quarta, diminuindo a marcha, pra refrescar. Olhei as curvas do anel, para reconhecê-las. Eram enormes, com piso de cimento e curvas longas que poderia fazer em terceira. Reduzi para terceira e pisei no acelerador. Pisei mais fundo. Fui pisando para ele soltar a traseira. Ele soltou-a suavemente. Fiz a curva de lado, no oversteering, controlando no acelerador. Uma delícia! Belo carro! Só falta aumentar a pressão das molas dianteiras, pensei, mas agora, em aceleração e já apoiado nas de fora e sem balanço, pois o asfalto era liso, ele equilibrava-se.
Dei duas voltas pelas curvas da rotatória, divertindo-me, e analisando o carro. Voltei pra oficina. Acabei chegando antes do Héctor. Sei lá onde ele foi. Vai ver que foi comprar cigarros.
Ouço o Héctor voltando. Chega com tudo e feliz.
—Camina poco esta bigorna de moto, heh! — reclama o Héctor.
— Tem razão, anda pouco, mas na estrada vai bem. Cinquenta e um cavalos. Motor bem elástico. Viaja macia a cento e trinta ou pouco mais. Não preciso mais que isso. Gosto dela.
— Gostei também. Bela máquina.
— Bela é a que você fez! Mas que Maserati! Caramba! Foi Fantuzzi quem desenhou, não foi? — pergunto.
— Sim, o designer foi Fantuzzi. Parece calientita. Guiaste-a?
— Sim. Fui até a rotatória te procurar. Te vi saindo de lá. Achei o carro fantástico! Estou meio tonto até agora. Adorei — respondo.
— Que bom que gostou. Um carro para ser forte de verdade tem que deixar a gente meio tonto. Você deve ter achado as molas dianteiras um pouco fracas, não? Vou trocá-las — diz o Héctor. E como estou curvando com a moto? Viste?
— Continuas o louco de sempre, meu velho. Estavas deitadinho. Mas também acho que endurecendo as molas dianteiras o 450 fica estupendo! Depois que ele apóia fica absolutamente na mão. Ninguém melhor que você pra calibrá-lo, meu lobo velho.
— Tenho outra Maserati, Fred. Também pronta. É uma 300 S e de carroceria plástica. Só necessita da mecânica, que será moderna. Os freios são a disco, de um Renault, mas não são definitivos. Não a vendi até agora. Acho-a mais bonita que a 450 S. A 300 é a origem, digamos assim. A 450 foi feita a partir dela, como uma adaptação. E a 300 S é mais gostosa de guiar, mais ágil. Anda um poquito menos na reta, porém, é mais equilibrada e curva melhor.
— Então, Héctor, acho que cheguei em boa hora. Creio que tenho uma solução para nossos problemas. Vamos conversar…
20 de abril:
Agora sigo de navio cargueiro para a Europa. Minha bagagem, além da mochila e a Harley, é uma réplica perfeita do Maserati 300 S. Carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro, cor vermelho sangue, sem motor e sem câmbio.
A Blanca, como sempre, cumpriu o que prometeu, como sempre…
Não faz mal lembrar e aqui vai.
— Blanca, boneca, você me deixou dois anos e um dia sem te pegar! Vai tirando essa roupa aí que agora vou te maltratar um pouquinho — falei-lhe, meio brincando, meio sério.
— Ai, Fred! Que bruto! – sorrindo, ela fingiu surpresa, enquanto baixava a saia justa que lhe marcava as ancas carnudas e firmes; rijas e torneadas, de bailarina profissional. Sardinhas nos ombros, pele branca, fina, sensível ao toque, com os nervos à flor. Mamilos delicados e róseos, que entumesciam facilmente. Tetas firmes e pequenas, alvas a ponto de divisarmos as veias. Ainda em pé, dei-lhe uma mordida fortinha no traseiro. Unhas na minha nuca. Cheiro de sexo.
— Minha gazelinha bailarina… Hoje vamos dançar a Morte do Cisne.
— E o Quebra Nozes — ela emendou, rindo.
Essa mulher não tinha é medo de nada. Sua fragilidade óssea, sua leveza e certa pequenez, camuflavam uma energia inesgotável. Sua coragem de gata no cio aliada ao contentamento feminino de ser possuída a fazia submeter-se com prazer aos meus mais duros desejos.
Mais, não lembro. Sinal que a noite foi das boas, das suadas, das que nos deixam com uma alegre estafa e as pernas bambas e falseantes.
Logo cedo na manhã seguinte, de Harley, por uma Buenos Aires ainda deserta, levei a Blanca pra casa. Leve e lampeira ela desceu da garupa e subiu as escadas do hall de seu prédio como num vôo de borboleta, enquanto eu me desculpava por não acompanhá-la até a porta do apê, pois minhas pernas mal sustentavam a moto parada.
Saí me perguntando quem foi o trouxa que inventou essa história de que mulher é o sexo frágil? Tenho certeza que ele não entendia nada de mulher…
Voltando ao cargueiro.
Tenho quinze dias para chegar a Marselha, França. É tempo bastante para bolar meu plano. O objetivo é acabar de montar e acertar o carro com mecânica moderna, e depois arrumar um representante europeu que toque o negócio adiante. Minha base será na Suíça. Lá as pessoas cumprem o que prometem, é um ponto central na Europa e, fator preponderante: também tenho cidadania suíça — boa herança de meu avô. Sendo assim, para todos os efeitos, também sou suíço, o que facilita os negócios. Também pretendo circular pela Europa em busca de eventos com carros antigos para divulgar a réplica. Da Suíça vou num pulinho pra qualquer lado.
Tenho pensado em vários motores. Ele tem que ser um de seis cilindros em linha, para não fugir da característica original. Não se imagina um Cobra com um motor que não seja um V-8, como também um 300 S com outro além do seis em linha e dois comandos. A caixa de câmbio tem que ser uma transaxle — a que vai entre as semi-árvores traseiras —, também para seguir o esquema original. Além disso, com ela atrás, jogo mais peso para a traseira e terei melhor equilíbrio. As opções são as caixas do Porsche Boxster, Ferrari ou Maserati. As duas últimas são mais caras e complicadas para comprar, além do que foram feitas para potências maiores do que preciso, então, devo ir atrás da do Boxster. A do Boxster deve cair bem. É leve e robusta. O Porschinho tem mais ou menos a mesma potência que pretendo ter no Maserati, uns 250 cv ou pouco mais, e o meu carro será bem mais leve; desse modo a caixa será menos forçada. Vai sobrar robustez.
O 300 S, depois de montado, deve acabar pesando uns 800 kg, no máximo. O Maserati original, em alumínio, pesava 750. Com 250 cv a relação peso:potência ficará na casa dos três quilos por cavalo, e isso é bem bom. Se eu conseguir lhe dar boa tração vou buscar o zero a cem em algo em torno dos cinco segundos, o que é ótimo. O 300 S original, com motor de 245 cv e diferencial longo, chegava aos 280 ou 290 km/h. Deverei chegar nisso também.
A suspensão dianteira, com dois triângulos sobrepostos, já estava como eu queria. A traseira, que era De Dion, o Hector mudou para independente multibraço, também chamada multilink. Desse modo está formado um conjunto excelente; falta acertá-lo. Amortecedores, molas e pneus, buscarei com o pessoal das pistas. Eles me darão as dicas de onde achar uma variedade enorme de bons fornecedores. Boa suspensão, bons pneus, baixo centro de gravidade e boa distribuição de peso, farão ele grudar nas curvas; não tem erro.
Os freios. Este carro está com freios que vieram de um carrinho comum. São a disco, os quatro, e podem até segurar bem, porque o carro é leve, mas não são ventilados e os acho um pouco pequenos. Os quero maiores e ventilados, pois, além de mais eficientes e livres do fading, impressionarão o comprador. Vou de Willwood, de competição. Os freios têm que sobrar; não superaquecer nunca, e usando todo o sistema da Willwood posso fazer a correta dosagem de freada entre a dianteira e a traseira.
Após montado e acertado, definido o que vamos usar, importaremos o motor, o câmbio, os freios e peças, em regime de drawback para a Argentina, portanto, sem impostos, e em seguida o carro será exportado pronto para ser vendido pela Suíça. Eis o esquema.
Viagem de cargueiro é longa. Falta mulher.
10 de maio:
Cheguei a Marselha há cinco dias. Despachei por trem o Maserati, para Zurique e vim de moto. Estou num hotelzinho chamado Splügenschloss, “Castelo dos Espelhos”, bem no centro, perto do lago.
Decidi pelo motor do BMW 330. Por fidelidade à origem o ideal seria usar um motor Maserati, porém os Maserati atuais são V-8 e muito caros, o que inviabilizaria o projeto. Além de tudo isso, os motores BMW são excelentes; potentes e confiáveis. Nunca ouvi ninguém reclamar dos motores da marca. O do 330 produz 255 cv a 6.000 rpm. Seis em linha, três litros, cabeçote com duplo comando — a configuração do Maserati 300 S original. Torque máximo de trinta quilogramas-força por metro, a 2.750 rpm. Isso dá e sobra. O automóvel BMW 330 pesa 1.550 kg e faz o zero a cem em seis segundos. Dando uma leve preparada no motor, só para enervá-lo, e com o Maserati pesando praticamente a metade do que o BMW pesa, meu carro ficará um canhão. Vai baixar fácil dos cinco segundos.
5 de junho:
Comprei o motor e a embreagem do BMW. Veio sem a eletrônica, pois usarei três carburadores Weber 44 duplos. Uma boca para cada cilindro. Os Weber 40 até que dariam conta do recado, não fosse a troca dos comandos de válvulas por outros mais fortes. Com os Weber 44 tenho uma marcha lenta mais lisa. Os comandos são da BMW Motorsports, fortões. Assim o giro sobe mais e ganho ainda mais potência. Não preciso de tanto torque em baixa, pois o carro é bem mais leve que os BMW, e gosto de um comando nervoso; é característica destes carros dar uma embaralhadinha em baixa e ter uma pegada louca quando afina. Adoro a embaralhadinha, adoro a expectativa da afinada que ele dá assim que limpa, adoro a afinada e o despejar maluco de potência. Adoro liberar a repressão. Com carburação e comandos fortes me disseram que chego nos 290 cv, o que dá relação peso:potência de 2,75 kg/cv — um foguete.
Comprei a caixa de câmbio do Boxster e estou assentando-os numa oficina-galpão de um primo balonista. É um primo distante. O álcool nas veias o mantém ainda mais distante. Costuma vir aos sábados pela manhã, quando já aparece meio balão para voar no seu balão. Aos sábados trabalho na oficina, pois quero terminar logo este carro. No último, voei com o Jürghen e a Judith, sua prima loirinha meio bicho-grilo – prima dele, não minha. Subimos às nuvens. Entramos em meio a elas. Tudo branco leitoso, como se flutuássemos num floco de algodão. Não sentíamos o vento, pois íamos com ele. Escutávamos baixinho os sons da cidade, porém, com nitidez. Nossas pestanas estavam úmidas da névoa fresca. Meu primo abriu um champanhe gelado — uma delícia — dizendo que beber champanhe era sorver estrelas. Essa foi a primeira garrafa do cesto, onde havia várias. Sorvi um monte de estrelas. Lembro que os lábios da Judith estavam doces de champanhe. Lábios finos. Acordei em seus braços. Abri os olhos e vi lindas tetas. Estava num hotelzinho de uma cidade que não guardei o nome e nem sei onde fica. O Jürghen tinha voltado a Zurique de trem para buscar a picape. Ele, mesmo estando bêbado, consegue fazer tudo direitinho. Achei legal voar de balão.
A Judith é cheirosa e comportada. Não é uma beldade nem tem a mente brilhante, mas, me mantém calmo. Ajudando na montagem do Maserati ela descobriu que adora mecânica. Trabalha firme e empolgada. Dirige qualquer veículo com muito prazer. Bicho-grilo europeu, ao contrário do brasileiro, não tem vergonha de trabalhar. Estou pensando em nomeá-la nossa representante.
30 de junho:
Mandei fazer o cardã e as semi-árvores. Os tamanhos são únicos para as medidas deste carro.
7 de julho:
Estive nas pistas. Comprei amortecedores Koni, de ação regulável, e vários tipos de molas. Os freios, comprei da Willwood. Os escapes, com coletor dimensionado, juntei os seis em um.
15 de julho:
Carro montado. Parti com a Judith para uma volta noturna e fora-da-lei; o carro ainda estava sem documentos. Levei jogo de ferramentas e giclês para pequenos ajustes na carburação. O Maserati ficou um rojão! Acelera como se não tivesse fim. Está tracionando bem, mas vou trocar as molas traseiras, que estão muito fortes, “encabritando” o carro. Um pouco mais macio vai tracionar ainda melhor. As molas da frente estão boas. Não mergulha nas freadas e a frente está firme sem ser áspera. Freia forte e alinhado. Nem me preocupo com o superaquecimento dos freios.
2 de agosto:
Fui com o carro para a pista de testes. Levei três conjuntos de molas e barras estabilizadoras. Os amortecedores, como disse, são reguláveis. Em dois dias acertei o Maserati, pelo menos o ajuste mais grosseiro. Com o tempo e com as viagens que farei com ele, acerto a sintonia fina.
Consegui os documentos do carro, como se fosse um carro artesanal, o que não deixa de ser. Posso agora viajar.
4 de agosto:
A Judith queria sair em viagem comigo. Ela merecia. Levei-a a Zermatt. O carro não tem capota, nem terá, pois o 300 S nunca teve. Seria uma heresia, e de heresia já basta replicá-lo. Mas ele é lindo e todo mundo adora vê-lo e escutá-lo, quanto mais dirigi-lo, então, porque não recriá-lo?
Uma manhã de estrada, com paradas e tudo para pequenos ajustes. Deixamos o Maserati coberto com capa num estacionamento de uma cidade próxima e pegamos o trem para Zermatt, pois lá turista não chega de carro, pra não entulhar a cidade com trânsito. Eu também já não agüentava mais ver automóvel na minha frente.
Passeando, subimos de bondinho teleférico ao sopé do Matterhorn.
Nessa noite a Judith esteve mais feminina e quente que nunca. Nessa noite fui o Matterhorn dela, e ela, meu céu azul…
Mas não era ela quem eu procurava. Quem eu procurava eu não sabia quem era nem onde estava, mas sentia que me esperava.
12 de agosto:
Deixei a Judith em Zurique e parti para viajar. Não sabia bem pra onde. Saí cedinho, tão cedo que pela cidade andei devagarinho pra não acordar ninguém. A cidade estava vazia. Parei num café que fica na encruzilhada da saída da cidade. Desliguei o motor e saí. A porta, fininha, estava batendo com um só clock. Não pensem que é fácil fazer uma porta de alumínio, levinha, fechar assim. Entrei no café e comi croissant quentinho e crocante com manteiga, croissant com geléia, tomei um espresso com leitinho, paguei e saí. Olhei pro Maserati e as rodas raiadas chamaram a minha atenção. Delas vinham finos reflexos do sol da manhã. Pneus pretos brilhantes, rodas raiadas, cubos rápidos, carro vermelho com cromados. A pintura estava tão lisa e limpa que refletia com nitidez os picos nevados dos Alpes. Motorzão forte e afinado, carro levinho… Encostei-me no pára-lama traseiro e acendi um cigarro pra pensar. Pensei: “O negócio é ir pra Alemanha, pegar uma Autobhan, e tocar para Nürburgring. Aí sim, com os tempos que fizer no Nordschleife, poderei compará-lo aos outros carros. É chegada a hora da verdade”.
Toquei para Basiléia. Dali, entrei na Alemanha pela Floresta Negra e peguei uma Autobhan para Frankfurt. Nela mantive 200 km/h. Até os 230 km/h o carro ia bem, porém, acima disso sentia falta de downforce. Ele estava mais estável que o 450 S que havia dirigido na Argentina, certamente devido à melhor suspensão traseira e pneus, porém eu queria mais; sabia que dava para melhorar. Parei em Frankfurt para dormir. Pensei: “Nos arredores de Nürburgring há boas oficinas. Vamos ver se consigo puxar esse carro pra baixo, por baixo”.
A pista fica a uns 100 quilômetros de Frankfurt. Logo pela manhã já estava em meio às montanhas Eiffel, onde a pista Nürburgring foi construída em 1927. Comprei um ticket para cinco voltas pelo Nordschleife, o circuito norte. Cada volta são 20,8 quilômetros. Cem quilômetros me bastariam para ter uma base de como o carro estava para depois melhorar sua aerodinâmica.
Era a primeira vez que entrava nessa pista. São 73 curvas. 33 para a esquerda e 40 para a direita. Se considerarmos as curvas que desprezamos, fazendo-as reto, beirando tangências num “S”, por exemplo, serão 170, mas, de curvas que são dobradas mesmo, são essas tais 73. Traçado sinuoso em sua maior parte, porém, com trechos de longas retas, do tipo que costumamos chamar de “flutua válvulas”, tal é o giro que o motor atinge. São retas em que atolamos o pé em última marcha e lá o deixamos, com tempo para rezar uma Ave-Maria e um Pai-Nosso completos e em ritmo de missa. A altitude vai de 320 a 620 metros acima do nível do mar, portanto, 300 metros de variação. Só daí já se faz idéia do quão sinuosa é, e, além de tudo, é uma das boas pistas em terceira dimensão, pois é num sobe e desce danado de bom. Muitas curvas são cegas, não dando para ver seu ponto de saída. Não sabemos se ela vai diminuir seu raio logo adiante, o que até conhecê-las nos obriga a entrar com cuidado, abaixo da velocidade possível. O único jeito de realmente andar bem nessa pista é tendo-a na memória, porém, memorizar 73 curvas leva tempo, bastante tempo. Os que de cara se metem a bacanas, logo afinam ou fatalmente vêem o asfalto acabar e virar grama sem que possam fazer mais nada.
Depois de duas voltas parei e esperei sair um dos BMW que são dirigidos por instrutores. Eles levam passageiros que se divertem nesse tipo de montanha-russa sofisticada. Embuti atrás dele para pegar umas dicas. Esses camaradas conhecem o de cor traçado e andam bem pra caramba. Meu carro estava andando bem mais que o dele. Curvava praticamente igual, só um pouco melhor, mas a diferença mesmo estava na aceleração de saída de curva, onde eu tinha que maneirar para não ultrapassá-lo. Nas retas longas a falta de downforce me intimidava, e era aí que eu pensava em quão machos eram os pilotos da época destes carros, que agüentavam a tensão de disputar posição com o carro flutuando a mais de 270 km/h… Isso é o que chamo de a vida por um fio.
No final da quarta volta, na reta de chegada, passei-o, dando um tchau, que foi alegremente correspondido. Fiz a quinta volta sozinho. Tomei meu tempo: 9:08 — nada maul para dois principiantes em Nürburgring. O Porsche Boxster S faz em 8:32, com piloto da fábrica, que na certa é um craque.
No dia seguinte procurei uma oficina de funilaria. Colocamos um pequeno defletor dianteiro para diminuir o volume de ar que passa por baixo do carro e o conseqüente lift. Coloquei-o em posição onde quase não fosse notado. Instalamos também um extrator traseiro também só visto de um ângulo baixo. Algumas chapas lisas de alumínio também foram instaladas para melhorar o fluxo de ar por baixo do carro; um fundo irregular, com canos de escapamento e protuberâncias em geral, chega a aumentar em seis por cento o arrasto aerodinâmico. Dois dias de trabalho.
Voltei para o Nordschleife. Manhã cinzenta e fria. Pista seca. Malha, casaco, capacete, luvas. Tanque de gasolina pela metade — tanto quanto ia no Maserati 250 F do Fangio, quando ele largou aqui na célebre corrida de 1957, a sua melhor; a melhor corrida do mais completo piloto da história.
Duas voltas indo relativamente maneiro, para rememorar. Ao final da segunda volta segui um Porsche Boxster S que me ultrapassara. Ele ia rápido, mas eu o seguia com certa facilidade. Será que ele está dando tudo? — pensava. Na saída da curva Galgenkopf — que é para a direita e antecede a reta de chegada, e que a fazia em terceira marcha —, soquei tudo o que tinha. Estava a 4.200 rpm e o motor reagiu gritando como um guerreiro em plena carga. A traseira soltou gostosa e suavemente. Delicado, contraestercei, ao mesmo tempo em que mantinha a aceleração no máximo. Com o descortinar da reta fui endireitando a direção e alinhando. Abriu-se a reta. A traseira do Boxster crescia rapidamente. Dei farol sem tirar o pé do talo. Se ele demorar muito, pensei, encho-lhe a traseira. Ele titubeou, mas, rápido, pulou para a direita. Por essa ele não esperava: humilhação de um Maserati “antigo”… Puxei a quarta ao ultrapassá-lo, dando um urro intimidante na sua orelha. Despachei-o, ele sumiu lá atrás. Esqueci dele, pois via um ponto lá adiante, provavelmente o BMW M3 que antes também me ultrapassara. Era ele quem ia buscar.
Ainda na reta o ponto crescia, eu me aproximava; meu carro andava mais. Cheguei mais perto. Era, sim, o M3. Passei babando por um Lotus Elise. Ainda bem que o peguei na reta, pensei, pois eles não passam de uns 220 ou 230 km/h. Se o pegasse no trecho sinuoso esse danadinho ia brincar comigo. Na linha de chegada abri o tempo no cronômetro que estava esparadrapado no painel. Ao final da reta, em sexta marcha, vi o giro: 6.700 rpm. Isso significava 290 km/h. O vento zoava no meu capacete, minha visão era só adiante, a lateral era mancha riscada. Passei alguns carros, que não pude, nem quis, identificar, de tão rápido que os papava. E o 300 S seguia estável, confiável. Acho que não precisarei mexer em mais nada — pensei — Está tudo ótimo até agora.
O M3 freiou forte, fez num zip-záp a chicane do fim da reta e seguiu grudado ao chão buscando as curvas Hatzenbach e Hocheichen. Freei o que dava, sem dó, pra maltratar, tudo no freio, reduzi. Consegui fazer a chicane tão bem quanto o M3 e segui na caça. Ele fez a Arenburg e saiu de vista, com as árvores escondendo-o. Abriu a reta que antecede a Adenauer-Forst, uma curva de alta velocidade e traiçoeira. Consegui aproximar-me do M3 a ponto de ler sua placa. Era inglesa. Ele afastou-se na Adenauer. Na certa a conhece bem, pensei. Aproximei-me na curva Fuchsrohre. Colei, embuti. Na Kallenhard, uma curva fechada à direita, não pude passá-lo, apesar de ter mais carro. E assim segui dentro do seu vácuo, ora não ultrapassando devido a ele, defendendo-se, não me deixar espaço, ora por ele fazer melhor as curvas. Um ótimo piloto, sem dúvida. A partir da Bergwerk há curvas que de tão abertas fazemos a fundo. Emparelhamos duas vezes, porém ele, esperto e conhecedor, sempre me dava o lado que desfavorecia a tomada da próxima curva, e retomava a frente. Logo chegaríamos à Klostertal, que é bem travada à direita e cujo traçado eu já manjava bem. Uma antes da Klostertal, ele, protegendo-se, entrou muito fechado. Foi a dica. Tomei a curva bem aberto para ter melhor saída e saí forte, bem embalado. Acelerei feito louco, na base do vai ou racha, quarta marcha passando de giro. Ameacei por dentro, ele fechou a porta, puxei rápido, ameaçando para a esquerda, ele seguiu meu movimento, porém, enquanto ele ia, eu já voltava, e embiquei por dentro na entrada da Klostertal. Freei o que não tinha, meio travado, passei-o e fiz a curva de lado, até perdendo tempo, mas não lhe deixando espaço nem para pensar em me dar o troco. Segui andando como alucinado, para que ele pensasse um pouco antes de querer me cutucar. Vinha a Karussel, a famosa Karussel, à esquerda, compensada, cimentada para agüentar os esforços dos pneus. Freei fundo, puxei segunda e fiz a curva no limite, com o carro grudando-se com as unhas e vibrando devido às irregularidades do solo áspero. Na saída, que é numa subidinha, empurrei terceira bem no momento em que o carro alivia o peso no topo da subida e passa a descer para a direita. Foi nessas duas curvas que o despachei, afastando-me uns cinqüenta metros. Dali, até completar a volta, só consegui mantê-lo assim, sem obter maior distância. Mas estava satisfeito, ou melhor, satisfeitíssimo. Na linha de chegada parei o cronômetro: 8 min. e 33 seg. Um suspiro contente. Finalmente acertara o carro.
Saí da pista para tomar um café e baixar a adrenalina. O inglês da M3 me seguiu. Parou ao meu lado no estacionamento. Veio cumprimentar-me e conhecer o carro. Travamos amizade. O Bert é um simpático londrino, entende de carro, boa cultura automobilística e tem uma loja de carros esportivos. Quatro vezes por ano tira o fim de semana para brincar em Nürburgring. Mostrou-se muito interessado em revender a réplica. Tomamos nossas bebidas quentes: ele, chá, eu, café. Fumamos. Saímos e trocamos de carros para uma volta. Ele foi à frente, pois eu queria ver meu Maserati andando na mais linda e desafiadora pista do planeta. Realmente, o 300 S e o Nordschleife foram feitos um para o outro. As árvores verdes, o asfalto cinza, os pneus pretos, as rodas raiadas e cromadas, o vermelho brilhante da carroceria… O gracioso Maserati bailava nas mãos do Bert. Não posso esconder que tive um pouco de ciúmes. Pensei lá comigo que o Bert provavelmente não sentia o mesmo em relação ao seu BMW. O BMW é ótimo, comportadíssimo, perfeitíssimo, porém, falta-lhe algo, falta-lhe alma, personalidade, e só há personalidade se houver, além de grandes qualidades, pequenos defeitos, senão, fica um carro chato. O prazer do desafio está em termos capacidade de domar um carro que não se rende a qualquer um.
E o safado do inglês estava se dando bem demais com meu Maserati; daí o meu ciúmes… Ciúmes é uma coisa que nos aperta a garganta e sufoca, e ninguém agüenta isso por muito tempo, ninguém. Esforcei-me e ultrapassei-o ao final da volta, dando sinal que sairia da pista. Ele me seguiu. Paramos, trocamos endereços e fiquei de mandar-lhe informações da evolução da produção e importação do carro.
Voltei para a pista com o 300 S e andei o mais forte que podia. Tive sorte, e na segunda volta peguei curvas livres de tráfego e fiz as ultrapassagens nas retas. Baixei o tempo para 8 min. e 26 seg.. Agora, sim, eu podia ir embora. O carro estava como eu queria. Dei mais uma volta. Dessa vez, devagar, despedindo-me da bela pista, pensando em quantas vezes foi palco de fantásticas histórias, espetaculares mostras de bravura de pilotos como Fangio, Nuvolari, Stuck, Rosemeyer, Stewart, Moss, Lauda…
Na 1000 Km de Nürburgring de 1956, um 300 S foi o grande protagonista de uma dessas histórias. Venceu, tendo Moss, Taruffi, Behra e Schell ao seu volante. Chegou vinte e seis segundos à frente do potente Ferrari 860 Monza de Fangio e Castellotti.
Era a vez de me cuidar. Precisava de sol, calor, mar. Estava cansado do frio germânico, dos pés e mãos frios. Cansado da neblina que umedecia e gelava a seiva dos pinheiros. Zurique é que não me atraía e eu merecia umas férias, além de estar adiantado na minha programação de preparo do carro. O negócio era ir indo pro sul e no caminho decidir. Camiseta, camisa de flanela, malha grossa com gola rolê, casaco Hércules, luvas, óculos Ray-Ban: toquei para Frankfurt. Parei na cidade para almoçar. Ao sair do restaurante, reparei que havia estacionado o carro em frente a uma agência de viagens. Pôster da Ilha de Capri na vitrine. Foto da Marina Grande, com velhos barcos pesqueiros ancorados ao lado de modernos veleiros de passeio. Imaginei a água tépida. O vidro da agência refletia meu Maserati. Um casal de jovens, parados, olhava o carro. O rapaz, boquiaberto. A moça mirava-se no espelho retrovisor lateral, para ver se estava bonita. Estava. Sorriu para ver os dentes. Quando se afastaram um pouco me encaminhei para entrar no carro.
O rapaz perguntou “— Lindo carro! Está indo pra onde?”.
Apontei-lhe a foto do pôster, e disse “— Para Capri, meu amigo, para Capri!” — e liguei o motor, engatei primeira e fui saindo…
— Então, boa viagem! Acelera! Acelera! — escuto um grito já meio de longe.
Obedeci e saí rabeando, de lado, controlando no contraestrerço, só pra agradar o rapaz. Esse vai contar pros amigos, pensei contente.
Toquei para Stuttgart. Queria ir via Áustria, pois o caminho é mais curto. Passei reto pela cidade e nem parei para ver os Porsche. Passei por Munique. Peguei um trecho da Romantic Strassen, linda estrada, porém triste se estamos sós. Entrei na Áustria. Innsbruck. Itália. Bolzano, Trento, Parma, Bolonha, Florença, Roma, Nápoles. Dois dias de viagem. Cheguei a Nápoles tarde da noite. Noite quente e úmida. O carro estava sujo. Eu estava sujo. Tomei um banho e dormi num hotelzinho meio gasto, que escolhi pelas boas garagens — antigas estrebarias individuais adaptadas. No dia seguinte, numa ensolarada manhã, através do vidro da sala do café vejo uns homens namorando meu carro. Acabo o café e vou lá pra fora. Um dos admiradores é um velhinho, o dono do hotel. Peço-lhe para poder lavar o carro ali mesmo, no pátio das garagens, sobre os paralelepípedos, ao lado da antiga fonte do bebedouro dos cavalos. Em menos de um minuto já havia dois baldes, panos e um xampu, que depois vim saber que ele surrupiara da esposa.
— Pra que tantos panos e tantos baldes? — pergunto-lhe.
— Por favor, deixe-nos ajudar, sim? — o velho me pede.
— Claro! Com prazer! Então, mãos à obra! — e fui enchendo um balde no bebedouro.
O velho, apressado, logo foi encher o seu e lascou uma baldada d’água no capô do motor. Senti meu carro arrepiar-se de contente. Por falta de panos e excesso de lavadores, dei meu material a um menino e fui fumar um cigarro sentado na fonte, olhando o serviço. Essa é uma das vantagens de ter um carro destes, pensei. Não falta quem lhe queira pôr as mãos, nem que seja para lavar. O carro ficou lindo. Mostrei-lhes o motor, que ainda estava sujo, mas isso não faz mal algum. Levei-os, um a um, para uma volta no quarteirão. Antes de entrar no carro notei que o menino remexia as pernas. Mandei-o fazer xixi e voltar logo. Ele saiu correndo feito um raio e logo voltou ajeitando as calças. Eu sabia com ele se sentia, também fui menino. Dei boas arrancadas pra ele nunca mais esquecer.
Acertei com o velho para deixar o carro trancado numa garagem enquanto me ausentasse. Eu ia passar uns dias, não sabia quantos, em Capri. Peguei o ferry-boat para a ilha. De Nápoles a Capri são trinta e cinco quilômetros. Uma hora e meia de ferry-boat ou cinqüenta minutos de hovercraft. Quis ir pelo mais demorado, para que o ar salgado do Mediterrâneo entrasse gostoso em minhas veias. Aportamos na Marina Grande, pequeno porto na face norte, frontal a Nápoles. Mochila nas costas com pouca bagagem, pois deixei as roupas de frio no hotelzinho. Peguei um táxi. Ótima ilha, pouquíssimos carros, não tem barulho chato de motor.
“Pra onde vai?” — perguntou o motorista.
“Onde estiverem as mulheres mais bonitas!” — respondi-lhe.
“Meu amigo, aqui há muitas e estão espalhadas por toda a ilha, mas, para garantir, vou deixá-lo longe da minha casa, pois tenho mulher e três filhas moças. Vá bene?!”
Deixou-me em Marina Piccola, onde eu teria fácil acesso a uns barquinhos a remo, que poderia alugar para passear e mergulhar. Almocei e cochilei. Ainda estava meio quebrado da puxada de Nürburgring a Nápoles. Acordei já era começo de noite. Noite morna. Saí para um passeio a pé. Fui até a beira d’água. Estava limpa, transparente e quente. Peguei uma palmada d’água e bochechei-a. Gosto e cheiro de marisco, água rica. Vi os barquinhos de madeira balançando atracados. Amanhã, pela manhã, volto — pensei. Jantei num bistrô, passeei pelas ruas estreitas entre as casas caiadas de branco. As pedras do chão, lisas de gastas, ainda mantinham o calor do dia. Fui dormir cedo. Queria pegar um barquinho logo pela manhã.
E assim passei uns três dias, acordando cedo, remando pelos bordos da ilha, nadando, mergulhando, comendo, lendo, dormindo, me esquentando ao sol, recuperando energia. Aqueles dois dedos me faziam um pouco de falta na remada.
Certa tarde, tomando um sorvete no centrinho e sacando o movimento, vejo um cachorro vira-latas sentado à porta de uma loja de artigos para pintura. Feioso, pequeno, olhos e orelhas alertas, língua de fora para se refrescar do calor. Gostei do cachorro. Parecia que ele, fielmente, esperava o dono. Em seguida, vi que ele tinha boas razões para isso, pois da loja saiu a mulher mais linda que já vi. Carregava telas em branco. Ia meio atrapalhada, desajeitada com a carga maior do que podia levar. Quando as telas permitiram ângulo de visão, observei que a moça usava uma saia leve e fresca, que transparecia os movimentos do seu corpo. Um corpo ardente, ativo. Altura média, ombros retos, nem magrela, nem cheinha, no ponto. A pele — lisinha, e certamente cheirosa — estava bronzeada pelo sol do Mediterrâneo. Fiquei com vontade de, com meu rosto, sentir aquela pele.
O cachorro imediatamente começa a saltar, revoluteando, latindo feliz, fazendo festa para a lindeza. Ela, inutilmente, o manda calar-se. Tenta afastá-lo com o pé para que não suje as telas, enquanto as ajeita debaixo dos braços. O cão acaba obedecendo e afasta-se um pouco. Excitado, vai molhar o pé de um vaso de flores e passa a xeretar tudo em volta enquanto acompanha os passos da dona, que vinha em minha direção. Um pouco antes de passar por mim, chacoalha a cabeça, tratando de tirar os cabelos de defronte os olhos sem usar as mãos, que estavam ocupadas. Os cabelos castanhos claros afastam-se e posso ver seus olhos. Claríssimos, lindos, de um cinza esverdeado, tendendo para o azul; iluminados, fosforescentes, hipnotizadores. Tive uma sensação estranha. Como se minha alma fosse gostosamente sugada por aquele banho de cores. A boca: fresca. Lábios úmidos e carnudos, graciosamente desenhados, macios, moldurando dentes perfeitos e brancos. Senti que se não beijasse aquela boca e me misturasse àquela mulher me atiraria no primeiro precipício. Era caso de vida ou morte!
Ela passou ao meu lado em direção a uma ruela. Inspirei seu aroma. Seu cheiro de mulher entrou em minhas veias. Me extasiei. Costumo, e gosto de, ter o controle da situação, mas, intimamente pressentia que passava a seguir ordens. Não sei o que, ou quem, ordenava, mas eu não questionava, obedecia — é a condição humana, presumo. Mãos à obra! Segui-a. Ela andava rápido. Sandalinha fina com fitinhas abraçando os tornozelos. Acho que tenho sangue de cachorro, já que adoro tomar vento na cara e morder perna de moça. Fiquei imaginando morder-lhe os tendões das pernas. Meu olhar subiu dando-lhe outra dentada, agora na dobra atrás do joelho, e subiu mais. Que andar rebolado! De onde virá essa mania masculina de querer beliscar um belo traseiro? Será que é o intuito de que, com o susto, elas parem e retesem as nádegas? Encantado, continuei a segui-la, farejando-a. Será que um dia poderei abraçá-la, apertá-la? O cãozinho me sacou e passou a ficar de olho em mim. Ela andava rápido e abria distância. Acelerei. “Melhor abordar logo minha futura namorada, senão algum italiano age primeiro. Esses caras não são de marcar bobeira”. Em seguida, pensei melhor: “Não tem problema, o caso é simples: quebro o cara e passo por cima. Com essa não tem pra mais ninguém. Ela é minha”. Cheguei perto da minha esbaforida lindeza, e disse-lhe:
— Bela, por favor, deixe-me ajudá-la.
Ela parou, me olhou, levantou o queixo, virou-se, e seguiu seu caminho atrapalhado, ainda com mais pressa e bravinha. O cachorro chegou perto para me cheirar. Peguei sua orelha. Ele tirou a cabeça e assim que se viu livre voltou a cheirar minha perna, me cutucando com seu nariz duro. Peguei de novo em sua orelha — aprendi com John Steinbeck em A Leste do Éden que cachorro gosta disso —, e agora ele deixou. Apertei-a firme, falando com ele. “— E aí rapaz? Tua dona é sempre brava assim? Aposto que não. Aposto que ela te faz bastante carinho, seu sortudo miserável. Pelo jeito, meu chapa, vamos ter que nos entender, porque em breve iremos dividir as atenções dessa moça e aí…” Nossa conversação ia bem até que foi bruscamente interrompida por um assobio curto e fino, e foi quando o vira-lata partiu voando atrás da dona como se tivesse sido puxado por uma mola. Segui a dupla. Emparelhei de novo. Ela fingia não me ver. Virei-me, dizendo: “— Por favor, só quero ajudar. Estou apaixonado. Namora comigo. Sou bonzinho. Mais bonzinho e fiel que esse seu escudeiro mirrado”. E ela, ainda mais brava, seguiu olhando pra frente, levantando o queixinho e chacoalhando a cabeça para tirar o cabelo de defronte os olhos.
Calei e me limitei a acompanhá-la. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde ia cair alguma tela e este seria o momento de agir. Torcia para que seu destino fosse longe. Conforme o previsto, uma tela escapou de sua mão e caiu. Imediatamente peguei a tela. “— Por favor, deixe levar”, pedi-lhe, agora, enfim, encarando-a de perto. Senti um calor de fornalha dominando meu corpo. O cachorro, lá em baixo perto do chão, voltou a me cheirar e de rabo de olho olhava pra cima, pra dona, esperando por sua reação. Ela deixou-me com a tela e sem falar nada retomou seu caminho. Segui ao seu lado, mudo e obediente, até uma pracinha na beira do morro. A vista descortinava-se para o mar azul. Uma forte lufada de vento fronteiro, vinda do mar, finalmente tirou seus cabelos do rosto. Ela parou, e de olhos semicerrados inspirou profundamente o ar salino. Sorriu. Sorriu o sorriso mais gostoso e doce que já vi. Nesse momento, realmente, definitivamente, me apaixonei. Apaixonei-me profundamente, de um modo diferente, que até então não conhecia nem imaginava. Que vontade terrível de beijá-la! Meu corpo tremia, os músculos contraíam-se, sofrendo uma vontade quase incontrolável de agarrá-la. Fui flechado no peito. Não havia mais nada a fazer…
Sua casa era antiga e, naturalmente, estilo mediterrâneo. O terreno começava na beira da praça e baixava acompanhando a queda do morro em direção ao mar. Da entrada, ornada por primaveras vermelhas e floridas, um caminho descia para a casa. Muros brancos, baixos e grossos — bons para sentar, pensei. Vi marcas de pés na parede do muro, confirmando que costumam ali sentar para olhar o movimento dos pedestres e do mar, sentindo a brisa, conversando.
Ela passou pelo pequeno portão de grade e parou. “— Pronto, me disse, já ajudou! Por favor, você pode me dar o quadro, pois quero trabalhar, quero pintar?”.
Dando-lhe o quadro, e ainda segurando-o, perguntei:
— Bela, como se chama?
— Gina… Satisfeito? Posso entrar agora?”, me respondeu.
— Pode entrar. Por hoje, sim, estou satisfeito. Te amo, Gina. Vou sonhar com você. Amanhã eu volto, pode esperar.
— Você é muito abusado! Quem te falou que quero te ver?…
— Não sou abusado, não, só apaixonado. Desculpe-me, não fique brava, tente entender. Vim de muito longe para te achar. Mais longe do que imagina. Você vai ser minha mulher. Amanhã eu volto. Hoje não quero te atrapalhar mais do que já está. Estou indo, mas, antes, dê um sorriso pra mim, dê?!
Ela virou-se, acho que para esconder o sorriso que presumi, e chamou “— Zico!”, e desceu a escada com o cachorro rente aos pés.
Esperei, vendo-a entrar. Ela entrou. Com a mão boa mandei um beijo para sua imagem, que ainda pairava no ar, e fiquei pensando: “O tal Zico, certamente, logo esqueceu de mim e foi deitar-se nalgum tapetinho do ateliê de pintura para tirar o seu merecido cochilo de guardião. E ela? O que pensou de mim? Será que teve asco da minha mão deformada? Invejo esse vira-lata. Deitar aos pés da Gina, e de olhos semicerrados escutar seus movimentos, enquanto mexe em telas, pincéis,… e sentir seu cheiro. O movimento de sua saia me traria o perfume daquelas pernas. Um pequeno afago seu já seria um gozo inspirador de bons sonhos.”
Saí meio aturdido, esquisito, meio sem rumo. Mas sou disciplinado e paciente, e ainda conseguia seguir meu raciocínio. Então, ao plano! Olhei bem o mar, as pedras, e marquei uma prainha logo abaixo no costão.
No dia seguinte, logo cedo, peguei meu barquinho, as tralhas de mergulho e biscoitos. Num isopor iam a garrafinha de suco de uva gelado e um ramalhete de flores vermelhas. Saí remando em direção à prainha abaixo da casa da minha pintora. O mar estava calmo, azul, e a água, tépida. O sol subia forte e havia uma leve brisa. Passei entre os Faraglioni e segui remando. Uma hora e meia de remada. Ancorei no ponto que marcara, defronte a prainha diminuta, e fiquei esperando. Tomei um suco, joguei a camiseta na cara e tirei um descanso.
Acordei com os latidos do Zico, que descia pela escadinha encravada nas pedras. Logo atrás, carregando cavalete, tela e estojo, vinha meu amor.
Quando me viu, sorriu pra mim.
oooooo
(6º e último capitulo, outro dia)