Em meus quase 30 anos de convívio com o setor automobilístico não havia vivenciado uma encrenca dessas proporções. Alguns colegas americanos tentam assemelhar o que ocorre aqui com o 2008/2009 deles, queda de quase 50% nas vendas, índices de confiança afetando não somente veículos novos, mas também o setor imobiliário e outros segmentos da economia. Na Europa, nessa mesma crise, as proporções da queda variaram de país a país. Itália e países do sul do continente também conviveram com quedas que chegaram a superar os 50%. E aqui, encostamos na barreira do –22% e avançamos semana a semana a passos variáveis para patamares ainda mais baixos, com os atores do cenário sempre buscando deixar uma mensagem de otimismo na tentativa de dizer que o pior já passou.
Lembro-me quando meu pai xingava aos ventos todo dia que encontrava uma receita de bolo ou poesia n’O Estado de S.Paulo, em espaços onde deveriam haver más notícias. Para quem não viveu aqueles tempos, a censura prévia imposta pelo governo federal da época ceifava os jornais de informações ou artigos que eles julgavam comprometedores e decidiam que não seriam publicados, decisões muitas vezes tomadas na calada da noite minutos antes das rotativas começarem a imprimir os cadernos de jornal que circulariam na manhã seguinte. Não havia internet, fax, computadores, a coisa era feita manualmente e a ordem de Brasília aos censores vinha por telefone. Essa cadeia de desaprovação respeitava os limites de velocidade de comunicação de 45 anos atrás.
O brasileiro, que tem na criatividade o seu ponto forte praticamente no DNA — a ciência que identifique e me confirme esta crença —, nas empresas de comunicação da família Mesquita a ordem era não deixar nenhum espaço em branco e sim, substituir as notícias e artigos censurados por receitas de bolo caseiras ou poemas de Camões, sem nada esclarecer; o leitor, com o tempo, identificaria e entenderia o que estava ocorrendo.
Na minha casa dos anos 1970, ainda sem idade suficiente para compreender o que ocorria e o que aqueles xingamentos significavam e para quem se dirigiam, ficou na memória que quando a coisa está preta, sai no dia seguinte nos jornais receita de bolo de laranja com cobertura de chocolate. Ou poemas de Camões no meio da página.
Ao ler o comunicado da Anfavea de segunda-feira última, nos tempos em que censuras prévias impostas ficaram na história brasileira e ao presidente da entidade cabe hoje a dura missão de transparentemente transmitir os números do mês e revisão de prognósticos e, ainda, de forma simultânea tentar frear com sua mensagem o pessimismo que esses dados podem significar, não sei quanto ao nosso leitor, mas para mim soou como se estivesse na minha tela um certo déjà vu.
Compreensível até, o efeito psicológico de mais números negativos, se multiplicados na grande imprensa, podem significar ainda mais retração, o que ninguém quer, nem o ministro da tesoura.
Assim, pode-se identificar na apresentação e números e notar que a Anfavea já conta com vendas diárias iguais às de setembro daqui até o final do ano. E elas caíram 3,5% em relação a agosto, ou de 9.528 para 9.183, isso mesmo, menos de 9.200 emplacamentos diários de automóveis e comerciais leves. De outubro a dezembro teremos 62 dias úteis, nesse ritmo espera-se mais 569.346 unidades vendidas, totalizando 2.450.000 em 2015, contra as 3.333.397 do ano anterior. Um belo tombo de 26,5%. Lembre-se que há três meses falávamos em menos 21 ou 22%. Caminhões era –44% e caminha para fechar o ano na metade das vendas de 2014.
Aos fabricantes, mais um ligeiro ajuste para baixo em relação ao plano último e a torcida para que a novela política e institucional que vem se arrastando há meses e tirando compradores das lojas com a quebra no índice de confiança, não venha trazer mais azedume no segmento automobilístico.
Novo líder de vendas
Setembro, mês em que se comercializaram apenas 192.610 automóveis e comerciais leves, um número que já não estávamos acostumados, quase 90 mil a menos que no mesmo mês do ano passado. A queda real é maior se comparamos com nossos melhores anos, quando o setor batia recordes. Em 2013 chegamos a ultrapassar a marca de 330 mil unidades num mês, e o segundo semestre costumeiramente mais robusto que o primeiro tampouco se repetirá em 2015. Eram tempos também do IPI subsidiado, agora vemos que há investigações em curso sobre a MP 471 que buscam confirmar se por intermédio de lobbies e consultorias havia propinas camufladas para conseguir do governo a concessão desse benefício estendido por quatro anos. Realmente me pergunto se 2015 não seria para lembrar de alguma coisa boa e esquecer os números.
O Chevrolet Onix foi novamente o líder do mercado nacional, emplacou 10.212 unidades em setembro e, a se manterem os ritmos dos últimos dois meses entre ele e o Palio, e se nenhum dos fabricantes recorrer àquela velha prática de emplacamentos mandrakes dos últimos dias de dezembro, conhecidos como rapel, podemos ter um novo campeão de vendas em 2015.
O coreano HB20 subiu uma posição neste mês, ultrapassando o compacto da Fiat.
No entanto, a vida segue duríssima para os três grandes, Fiat, GM e VW. Se nos primeiros dois meses do ano a participação somada deles em automóveis e comerciais leves atingia 54,6%, em setembro, o acumulado ficou em 48,6%, perderam 6 pontos percentuais e que tendem a ser 10 num mercado que se retrairá em 880 mil unidades até o final do ano.
O lançamento do Renault Duster Oroch vem para esquentar a briga pelo bolo dos comerciais leves. A Renault se inaugura nesse segmento e espera-se que morda a participação das compactas Strada e Saveiro, cabines-duplas mirins, e das médias Chevrolet, Ford, Mitsubishi e Toyota, com seu preço situando-se entre elas.
Não por menos, a Fiat confirmou o seu modelo Toro bem no dia do lançamento da Oroch, o que parece uma tentativa de segurar alguns potenciais compradores para o ano que vem, quando poderão optar entre as duas ou provar uma diesel 4×4 compacta, cerca de 20 mil reais mais em conta que os líderes do segmento hoje.
E evidente não será para briga heavy-duty, nem a preferido dos agriboys do meio-oeste, mas seguramente uma proposta interessante àqueles que as usam mais no asfalto e estradas de terra boas.
O Jeep Renegade encostou suas vendas definitivamente no queridinho do mercado, o HR-V, emplacando meras 71 unidades a menos em setembro, com um plano ainda em curso de abrir mais pontos de venda (hoje ainda longe dos Honda) e incrementos de produção.
Notamos também das tabelas de vendas que o mercado de veículos de 70~85 mil reais segue aquecido, com três representantes entre os 10 mais vendidos, Corolla, HR-V e Renegade, que somaram 17.198 unidades, e na faixa de preços 90.000~150.000 reais, os crossovers e picapes médias, também, somando outras 14.000. Isto significa que a crise de poucas vendas se concentra mais nos modelos de até 50 ou 60 mil reais.
Quanto às receitas de bolo que me marcaram a infância, notícias ruins proibidas e jornais, espero no mês que vem não tenha de comentar com vocês que o legítimo Tiramissú (doce típico italiano) leva queijo mascarponne na receita, mas havia quem o vendesse em alguns restaurantes nos Jardins com queijo Catupiry misturado com outros lácteos. Quem havia provado dos dois, lembrava que o nacional era parecido e que provavelmente a diferença se creditava aos ventos mediterrâneos e ao jeito de fazer.
Até novembro!
MAS