De vez em quando somos assaltados, no bom sentido, por velhas recordações. E quando você recorda, elas não são velhas, pois estão vivas na sua memória. E dois dos primeiros carros que fizeram parte da minha infância vieram bater ponto na minha cabeça recentemente: um modesto Prefect 1950, que era um Ford inglês popular, e um majestoso Mercury conversível 1946 ou 47, cor de vinho com capota creme.
Meu pai era bancário em uma época de expansão das redes pelo País, os anos 1950. Sua missão: pesquisar cidades para abrir novas agências. A família toda mudava e meu pai trabalhava achando cidades, prédios, implantando a nova agência com direito a inauguração com bandinha e tudo. E lá ia a gente de novo para outras terras. “Vida de cigano”, reclamava minha mãe.
Uma das primeiras mudanças foi deixar a capital de São Paulo para ir para (na época) fria Curitiba e seus pinheiros paranaenses. Eu devia ter uns 7 anos de idade.
“Tio” Carlos, ou simplesmente Carlito, era um dos novos amigos paranaenses que freqüentava nossa casa no bairro do Batel. Ele tinha um bendito Ford Prefect, inglês, que todo mundo chamava de Prefesete, já que o nome do carrinho era complicado. Em pleno “império americano” com enormes carrões Made in USA fazendo inveja pelas ruas curitibanas, lá vinha o Tio Carlitos com seu Prefect “esbanjando” desempenho: motorzinho dianteiro quatro-cilindros de 1.172 cm³ com válvulas laterais de potência desconhecida (devia ter uns 30 cavalinhos suados), tração traseira, que tinha a estonteante velocidade máxima de 98 km/h. O 0 a 80 km/h (já que não chegava a 100 km/h) podia ser medido com um calendário: 22,8 segundos.
Mas Tio Carlito vinha feliz com seu carrinho diferente. Eu achava estranho aquele inglesinho muito alto, bitolas estreitas e com uns pneuzinhos (diagonais, claro) muito finos. Não confiava muito no carrinho popular da Terra da Rainha. Nas poucas vezes que andei como passageiro, achei muito chacoalhante, principalmente pela falta de habilidade de Carlito ao volante. Minha impressão era que aquilo ia capotar na primeira esquina.
Não deu outra. Um belo dia, Tio Carlito aparece em nossa casa com a mão esquerda enfaixada: “Capotei o Prefesete e perdi um dedo”.
Como assim?
Ele entrou muito “rápido” numa esquina à direita, o carro chacoalhou, ele chacoalhou o volante ainda mais, tacou o pé no freio e percebeu que se ferrou. Naquele tempo ninguém sonhava com cinto de segurança, ele se agarrou na haste do quebra-vento. O Prefect capotou lateralmente e as calçadas curitibanas, de blocos de pedra, se encarregaram de tirar o dedo mindinho do Tio Carlito.
Baixinho e falador, Carlito diz que “isto acontece”, que sobraram 19 dedos e mandou arrumar o coitado do Prefect.
Vi o carrinho depois de “arrumado” e, mesmo sendo um garoto (metido, é claro) achei o carro meio fora de esquadro, ondulado…
Mas Carlito era todo orgulho: “Viu, ficou perfeito”. Fiquei quieto para não levar esporro.
Passaram alguns meses e, de novo, Carlito aparece com a mão esquerda enfaixada: “Perdi mais um dedo” (desta vez o anular). Tudo igual. Entrou na curva, balançou, freou, agarrou na haste do quebra-vento, capotou e… lá se foi mais um dedo,
Aí não agüentei: “Tio, vende esta bosta antes que perca a mão inteira”. Fui mandado para o quarto, primeiro por falar palavrão e também por desrespeitar os mais velhos e me meter onde não fui chamado.
Saímos de Curitiba, mudamos para Presidente Prudente (SP) com meu pai sempre abrindo agências bancárias. Depois de algum tempo, chegaram rumores de que Tio Carlito só tinha dois dedos na mão esquerda. Mais uma capotada, mais um dedo. Talvez por isso, jamais capotei um carro na minha vida.
Em Prudente, foi meu “ano de ouro” da infância. Meu pai, que não entendia quase nada de carro e até dirigia meio mal, gostava de trocar de automóvel. Parecia que ele queria andar em todos os carros que existiam na época. E logo que chegamos em Prudente, ele trocou um Dodge 1951 por um belíssimo Mercury (marca de luxo da Ford). Feito em 1946 ou 47 e cheio de cromados, o carro ainda se dava ao luxo de ser conversível. Cor de vinho com capota creme. Eu passava horas na garagem só admirando aquela grade enorme, cromada e cheia de barrinhas verticais. Talvez por isso, até hoje sou apaixonado por conversíveis. Mesmo assim, meu pai levou uma bronca de minha mãe por trocar o Dodjão por um carro mais velho.
Ao contrário, eu estava mais do que orgulhoso. Achava que meu pai tinha o carro mais bonito não só da rua, como da cidade toda. E adorava aquele ronronar do V-8, mesmo que fosse o modesto Flathead (cabeçotes planos, ou tampas, já que também tinha válvulas laterais). Um 3,9-litros que rendia 95 cv, uma enormidade de potência para a época.
Certa vez meu pai deu partida com o carro engatado e percebi que ele se movimentou lentamente para frente. Descobri a Disneylândia em Presidente Prudente quando vi que o carro dava partida mesmo sem a chave. Meu pai ia trabalha a pé e, quando minha mãe saía, abaixada a capota, enchia o Mercury com a molecada da vizinhança. Engatava 1ª no câmbio na coluna de direção e dava partida. O carrão andava uns cinco metros para frente. Mesmo coisa com a ré e voltava para o ponto de partida, dentro da garagem. Claro, com bateria de 6 volts, a brincadeira não era muito longa. E meu pai chegava, percebia a bateria descarregada e mandava trocar. Descarregava de novo, ele brigava com o cara do auto-elétrico, que carregava e testava a bateria, enquanto procurava desesperadamente alguma “fuga de corrente” que, claro, não existia.
Mas, a glória surgia realmente em algumas madrugadas, quando um avião pequeno passava dando rasantes na cidade. O precário aeroporto da cidade, nos anos 1950, era de terra batida e não tinha iluminação. Assim, quando um avião precisava descer de noite, ele acordava todo mundo para ir com os carros iluminar a pista. Eu amava aquelas emergências. Saía da cama, chacoalhava meu pai e a gente só punha sapatos. Íamos de pijama mesmo.
Eram muitos carros, que estacionavam perpendicularmente à pista com os faróis acesos, frente a frente com a pista no meio. Claro, motores ligados, já que as baterias de 6 volts descarregavam até com os motores (e os dínamos) funcionando. Lembro que era importante ter pelo menos dois carros (um de cada lado da pista) no início e no final da pequena reta onde o avião ia pousar. Era para sinalizar o começo e o fim da pista.
Eu enchia meu pai para ficar no começo, só para ver as rodas do trem de pouso tocando o chão poeirento, iluminado pelos faróis dos carros.
Isto aconteceu várias vezes no curto ano que moramos em Prudente e a cena sempre terminava com o piloto abrindo a porta do avião e gesticulando agradecido aos motoristas. Nunca houve um acidente e as aterrissagens eram perfeitas.
Voltávamos para casa e eu não conseguia dormir. Era muita adrenalina e aquela cena se repetindo na minha memória. Se repetia tanto que permanece viva até hoje, quando bate aquela dorzinha chata no peito, pura saudade de meu pai, um cara que sabia abrir agências bancarias e os corações das pessoas. Mesmo depois de tanto tempo que você se foi, continua uma honra ser seu filho.
JS