O final do ano é uma época que se convencionou fazermos balanços — de nossas vidas, do que fizemos ao longo do ano, do que ficou faltando, e também do que faremos no ano que começa. E no começo do ano costumamos nos encher de listas de boas intenções — fazer regime, voltar à academia, comprar menos sapatos (OK, só as mulheres), dar menos importância aos comentários dos outros, retomar contato com algumas pessoas que há tempos não vemos… Bom, na verdade eu faço isso sem data marcada, mas o calendário às vezes pressiona um pouco e para este ano gostaria de conversar mais com algumas pessoas com as quais às vezes passo muito tempo sem falar. No geral são pessoas que não vejo há tempos não por algo em especial, mas falta de tempo, atropelo do dia a dia, sei lá. E às vezes bate uma saudade de conversas, telefonemas, encontros… E é bom fazer isso antes que essas pessoas nos deixem.
Recentemente, lembrei com saudade de uma pessoa que eu apreciava muitíssimo: Paulo de Aguiar Goulart, que foi dono da Dacon e uma figura, para dizer pouco. Aliás, uma curiosidade: Dacon significava Distribuidora de Automóveis, Caminhões e Ônibus Nacionais — mas na verdade para o público em geral era sinônimo de carros de passeio diferenciados. Preciso contar como o conheci, pois certamente mostra que era para tudo ter sido assim. Eu era subeditora da Gazeta Mercantil e o então presidente Fernando Collor de Mello acabava de abrir as importações de veículos, logo depois de ter declarado que o que tínhamos no Brasil eram “carroças”. Lá fui eu à Dacon, que era o importador oficial Porsche desde 1967 mas que, com as restrições impostas, não trazia um único carro de fora. Tímida e de não desistir fácil como sou, liguei e fui até lá disposta a arrancar uma entrevista sobre as perspectivas de importação. As outras marcas eu já tinha conseguido, pois eram pessoas mais acessíveis. Mas o Paulo era famoso por não dar entrevistas, apenas a um jornalista do Jornal do Carro que naquela época já não estava na redação mas sim como assessor de imprensa de um fabricante de carros.
Marcos, o genro do Paulo que também trabalhava na Dacon, me atendeu e disse que ia tentar um contato. Não sei por que, mas nos entendemos desde aquele momento. E certamente essa espécie de aprovação prévia dele pesou muito. Por volta das 11 horas da manhã, o próprio Paulo me recebeu. Ele morava no mesmo prédio onde funcionava a Dacon, aquele ícone da arquitetura, redondo, lindo — mas segundo ele, extremamente difícil de decorar pois não havia paredes planas. De banho recém-tomado, camisa para fora da calça, sapato esporte. Me ofereceu Coca-Cola, em vez do protocolar café-e-água. E sentou com os pés na mesa. Logo percebi que era uma pessoa totalmente fora da caixinha. E eu vestidinha padrão jornalista Gazeta Mercantil: blazer, sapato de salto…
A conversa começou casual, com números, dados de mercado, mas logo enveredou para os aspectos mais, digamos, mecânicos. E aí é que brotou uma relação relativamente curta, mas fantástica. Logo saímos do escritório e fomos para a oficina para ver os carros. E lá ele me apresentou o Anísio Campos, o lendário designer de carros, amicíssimo do Paulo desde o início dos anos 60. Os dois se entendiam superbem. Tanto que foi o Anísio quem negociou com a Porsche a representação para a Dacon no lugar do Paulo, que só conheceu os alemães quando eles vieram ao Brasil. O Paulo era apaixonado pela marca Porsche.
Apesar do meu visual corporativo eu gostava de mecânica e a conversa logo enveredou para motores e outros assuntos. Lembro com orgulho que em algum comentário que fiz o Anísio virou para o Paulo e comentou com uma piscada “esta entende do assunto”. Eu não poderia ter ficado mais feliz com essa frase.
Depois de um longo papo voltamos para o escritório e, supremo golpe de sorte, o aparelho de fax apitou. Era um pedido de compra de um Porsche 912 — o primeiro depois de sei lá quanto tempo. O Paulo brincou que eu é que tinha levado a boa sorte e instantaneamente o que começou como uma empatia virou uma amizade que durou até 2001, quando ele morreu. Muito rápido, muito cedo. Continuamos em contato mesmo depois do fechamento da Dacon, em 1996.
Durante esses anos nos vimos e nos falamos menos do que eu gostaria, tanto com ele quanto com o Marcos, genro dele com quem continuei em contato até bem depois disso. Mas até cliente deles virei e comprei um Logus quando foi lançado. E almoçar com o Paulo apenas para jogar conversa fora era algo fantástico. Voltava para a redação supertarde, mas cheia de pautas, informações e feliz da vida.
Muito antes disso, entre 1966 e 1967, a Dacon chegou a competir e teve entre seus quadros nomes do gabarito de Emerson Fittipaldi, José Carlos Pace, Wilsinho Fittipaldi e o próprio Anísio Campos. Eles corriam com um modelo Karmann-Ghia (carroceria, de plástico)-Porsche (motor) com modificações de freio, câmbio e suspensão para adaptar o carro à potência aumentada. Havia os de motor Porsche 1600 Super 90 e os potentes Porsche 2.000-cm³ de quatro comandos. E essa foi outra sacada do Paulo. Ele descobriu que os pontos de encaixe do Karmann-Ghia batiam perfeitamente com os da Porsche e bastava alterar um pouco a suspensão e, pronto, tinha-se um carro de competição. Os modelos da Dacon venceram cinco das dez corridas que disputaram. Já os bipostos eram AC, sigla de Anísio Campos. P. A. G. (Projects d’ Avant Garde) era a inscrição nas carrocerias dos carros especiais da Dacon, mas também eram as iniciais eram do Paulo.
O AC era enquadrado na categoria Esporte Nacional, a Divisão 4 do Regulamento Técnico da Confederação Brasileira de Automobilismo. Os carros tinham obrigatoriamente que ser fabricados no Brasil e a cilindrada máxima do motor era 2.000 cm³.
Anísio desenvolveu 14 carros para a Dacon, totalmente projetados e lançados junto com o Paulo. Os mais conhecidos foram o Mini-Dacon, Nick e o Chubby.
Já na época em que nos conhecemos, o Paulo se dizia decepcionado com o Brasil e com as autoridades. Dizia que era um desperdício trabalhar neste país, com tanta corrupção e tanto imposto mal empregado. E isso faz mais de 20 anos.
Não ostentava, muito pelo contrário. Gostava de viver e de comer bem, mas sem fazer isso pelo dinheiro. Era notívago e frequentava o restaurante do Maksoud, por exemplo, e nos encontrávamos em lugares bons, mas sem estrelas Michelin. E era um exemplo de cortesia e cavalheirismo.
Evidentemente gostava de carros e era engenheiro mecânico de formação — diziam que nunca foi buscar o diploma, mas confesso que jamais perguntei isso — mas depois que sofreu um sequestro relâmpago andava num simples Ford Ka. O carro era espartano, mas o motor, é claro, era preparado.
Mudando de assunto: por mais que tenha pedido ao Papai Noel, ele não atendeu meus pedidos e as lombadas, muitas disfarçadas de travessia de pedestres elevadas (essa é boa!) continuam. Terei de me comportar melhor em 2016.
NG