Trabalhar na indústria automobilística é um sonho de qualquer estudante, seja ele de engenharia, de manufatura, de marketing, desenvolvimento do produto etc. Também os profissionais técnicos das linhas produtivas sonham com a oportunidade de trabalhar nas automobilísticas.
Salários normalmente acima da média do mercado, bons planos de saúde, seguro de vida em grupo, veículos com desconto para funcionários e familiares, participação no lucro da empresa, viagens proporcionando todo o conforto em hotéis de no mínimo quatro estrelas e classe executiva em viagens aéreas internacionais. E sem falar do time gerencial, com veículos designados com todas as despesas pagas, o melhor plano de saúde, plano odontológico, bônus de final de ano etc.
Na realidade, quem está fora quer entrar e quem esta dentro dificilmente pensa em sair. E entra em questão o bom relacionamento interpessoal e a capacidade de “engolir sapos” para se manter vivo no time. Eu sempre brinco que o importante é sair bem na foto, mesmo que seja somente um dedinho que possa identificá-lo.
Quando eu era um jovem engenheiro (engenheiro jovem) nas décadas de 1970 e 1980 era muito difícil, para não dizer quase impossível, trilhar uma carreira rápida passando de recém-formado aos níveis gerenciais. Era tudo muito difícil em termos de equipamentos e facilidades e os profissionais gastavam seu tempo na parte técnica, colocando literalmente a mão na massa, se dedicando, estudando e se aperfeiçoando diariamente através de seus próprios meios, com muita força de vontade.
Exemplificando, para passar de engenheiro júnior a engenheiro sênior, eram no mínimo cinco anos de luta e para passar ao nível de supervisão eram outros cinco anos. Hoje em dia o recém-formado pode chegar ao nível de supervisão em quatro anos.
A explicação é que como a parte técnica esperada é praticamente desenvolvida através de conhecimentos adquiridos/compartilhados, bulas, regras, procedimentos e dados estatísticos, é muito mais fácil para o profissional se afastar um pouco da parte técnica para se dedicar também à parte administrativa, inclusive se comunicando bem em inglês e outros idiomas, requeridos no processo contínuo de globalização das indústrias.
Hoje em dia, são comuns as tomadas de decisão políticas que às vezes não fazem muito sentido técnico, porém agradam internamente a companhia. Por exemplo, reduções de custos, opiniões tendenciosas a respeito dos atributos, comparativamente com a competição etc.
De uma coisa ninguém escapa: o veículo deve funcionar bem, ser seguro e agradar o consumidor, independentemente dos processos corporativos. E nesta direção, ainda bem que existe um grupo puramente grupo técnico que verifica o balanceamento dos atributos, recomendando ações necessárias para agradar o consumidor e evitar problemas futuros de campo, recalls, por exemplo. Este grupo está intimamente ligado ao desenvolvimento do produto e em minha opinião deveria ser muito mais prestigiado do que realmente o é. Com muita frequência as decisões técnicas se chocam com os interesses políticos, gerando mal estar dentro do time e dificultando os trabalhos.
Eu sempre valorizei os trabalhos técnicos que são os que realmente agregam valor ao produto, o resto é conversa fiada. Projeto inteligente é aquele que engloba o bom, o bonito e o barato, como já me externei algumas vezes em minhas matérias do AE.
Eu diria sem medo de errar que a Volkswagen é que mais valoriza a parte técnica no seu time de desenvolvimento e a General Motors e a Ford são as que mais valorizam os processos administrativos, burocráticos talvez.
A GM é a mais conservadora com seus produtos, que se não são excelentes, também não são ruins. “O ótimo é o inimigo do bom” fala o jargão dentro da empresa. Para que gastar mais se no nível que está o consumidor aceita e valoriza o produto? Creio que a GM é a empresa que mais se aproxima de um ótimo balanço de custo-benefício para os seus veículos.
A Ford é muito parecida com a GM, porém às vezes valorizando mais os custos operacionais do que o projeto em si.
E nesta direção, muitas decisões erradas foram influenciadas por burocratas ao longo dos anos.
Falando da GM, não posso deixar de lembrar o seu primeiro carro mundial, o Monza, lançado em 1982 no Brasil. O excelente projeto J tinha tudo para iniciar bem, porém deu uma derrapada, com uma carroceria hatchback de três portas, versão que nunca existiu na Europa, na contramão dos sedãs em alta no mercado mundial, câmbio de apenas quatro marchas (o Corcel II, de 1977, logo teve 5-marchas), motor 1,6-L a gasolina fraquinho (72 cv) em termos de desempenho e uma suspensão dura e barulhenta , inclusive com a exagerada altura do veículo em relação ao solo, resultado de “adaptação” para as condições brasileiras.
O Monza somente decolou em 1984 com seu modelo sedã com motor 1.8-L a gasolina e principalmente na versão a álcool, que era realmente forte, câmbio de cinco marchas e a recalibração da suspensão, inclusive diminuindo a altura do veículo com relação ao solo. Para se ter uma ideia, após as implementações, motor, câmbio e suspensões, o Monza foi campeão absoluto de vendas durante três anos seguidos, entre 1984 e 1986.
E fica a pergunta, porque não fazer certo na primeira vez? A GM tinha a vantagem de ter a fábrica de motores no Brasil e poderia ter logo no início do projeto preferido o potente 1.8-L e o câmbio de cinco marchas, também disponível.
A Ford, com seu primeiro carro mundial brasileiro, o Escort, também não fez direito a sua lição de casa, em minha opinião.
Veículo europeu moderno e com suas linhas inusitadas de “dois volumes e meio”, poderia ter seguido o seu projeto original para o Brasil, com o moderno motor CVH e suspensões mais firmes. Acabou lançando o Escort com o antigo motor CHT e suspensões recalibradas em maciez.
Na realidade o motor CHT nasceu do motor Renault Sierra que foi amplamente utilizado na Europa nos modelos R8 1,0-L, R10 1,1-L e R12 1,3-L e no Brasil no Ford Corcel , nas versões 1,3-L, 1,4-L e 1,6-L.
O motor CHT com 1.555 cm³ foi uma evolução do motor Renault Sierra 1,6-L, com novas câmaras de combustão e novo comando de válvulas. Já estava em seu limite de cilindrada não sendo mais possível, aumentá-la, por exemplo, para 1,7-L ou 1,8-L.
Era um motor econômico, porem, seu calcanhar de Aquiles era o seu cabeçote, com pouca parede entre os cilindros, deixando-o crítico em termos de queima de junta e vazamentos em geral pelos dutos de água e óleo. As camisas removíveis equilibradas em calços entre elas e o blco também dificultava o processo de vedação do cabeçote.
A maciez de suspensões teve efeito inversamente proporcional na estabilidade do veículo, com variações enormes de geometria principalmente na suspensão traseira. O Escort europeu era muito melhor em estabilidade direcional que seu irmão brasileiro.
Foi uma enorme oportunidade que a Ford perdeu em deixar de construir no Brasil uma fabrica dos motores CVH que poderiam chegar até 2,0-L de cilindrada, suprindo com folgas as exigências dos próximos lançamentos da marca.
sou de opinião que a insistência em adotar o motor CHT foi também um dos motivos que gerou a fusão Ford/VW, a Autolatina. Sem motores adequados e com uma linha de produtos antiga, exceto o Escort, a Ford não tinha mais condições de se manter na forte concorrência do mercado brasileiro, sem pesado investimento em curto prazo.
Em 1985/1986 a Ford já tinha um motor CHT a álcool, totalmente desenvolvido com injeção eletrônica multiponto, inclusive com um protótipo funcional instalado em um Escort XR3. Oportunidade de ouro para a Ford sair na frente e por decisão de algum burocrata conservador o projeto não foi aprovado.
Lembra-se do que disse mais acima? “A Ford é muito parecida com a GM, porém às vezes valorizando mais os custos operacionais do que o projeto em si.”.
E a Ford continuou equivocada quando abandonou as rodas trevo, uma das mais bonitas rodas já desenhadas, em minha opinião, pelas rodas turbo que não tinham simetria entre os lados direito e esquerdo. Parecia que as rodas estavam girando ao contrário no lado esquerdo.
Falando dos japoneses, creio que a Toyota e a Honda sejam hoje em dia as empresas que tem mais tecnologia e qualidade desenvolvida em seus produtos. Com a filosofia de melhoria contínua, aprendendo com o que não deu certo e rapidamente corrigindo o erro, as duas empresas são um exemplo para o mercado. E mesmo assim acontecem problemas sérios, como, por exemplo, o caso do tapete do Toyota Corolla que enroscava no pedal do acelerador, com risco à segurança.
Por estes motivos que tenho que valorizar o time de “check & balance” que com grande experiência adquirida,verifica ponto a ponto o que pode dar errado no veículo. É o pessoal que faz a diferença dentro da indústria. Infelizmente, este time tem sido reduzido com o aumento relevante dos administradores e burocratas, às vezes “burrocratas”.
Como sempre faço, termino a matéria com uma homenagem e desta vez vai para Wolfgang Sauer, presidente da VW do Brasil de 1973 a 1989.
Alemão naturalizado brasileiro e já falecido, Sauer, valorizou como ninguém o time técnico dentro da empresa, conseguindo que a marca continuasse com a fama de produzir veículos robustos e confiáveis. Foi o grande responsável pela internacionalização da VW do Brasil.
CM