Semana passada, contando aqui sobre o autoentusiasmo do escritor Ian Fleming — o criador do 007 —, transcrevi um trecho de um de seus livros onde ele criticava os carros americanos de então, início da década de 1950. Dizia, basicamente, que eles eram pesadões, moles demais e todos iguais, sem a pegada de máquina na mão e sem a personalidade marcante dos carros europeus. Tudo bem, acho que ele tem razão.
Nessa época era bem assim, tanto que muitos moços americanos da época partiram para os hot rods como meio de suprir essa necessidade de contato com a máquina e delas obter o prazer da pilotada visceral. Dentre esses jovens havia um granjeiro texano, “um tal” de Carroll Shelby, que, posteriormente, após vencer a 24 Horas de Le Mans de 1959 em parceria com Roy Salvadori, com um Aston Martin DBR1, juntou o que havia de melhor nesses dois mundos e fez um carro esportivo inglês com um V-8 americano, o estupefaciente Ford Cobra.
Fez isso, acho eu, depois de tanto sofrer para chegar ao final dessas 24 horas. Seu Aston Martin DBR1 tinha cárter seco, como a maioria dos carros de corrida… Bom, o leitor que sabe o que é cárter seco, por favor me dê um tempinho para explicá-lo ao que pode não saber. Vamos lá: o sistema comum aos carros de rua é o cárter úmido, aquela “bandeja de óleo” que fica debaixo do motor.
Acontece que em curvas fortes e longas esse óleo vai para um só lado e lá fica até que o carro volte à reta, e enquanto ele está jogado para um só lado o pescador de óleo fica descoberto, ou seja, o cano que abastece a bomba de óleo suga ar e não óleo, o que gera falta de lubrificação do motor. Com o cárter seco o óleo fica armazenado num tanque externo e é conduzido diretamente à bomba de óleo. Com isso se pode fazer curvas à vontade que não haverá falta de lubrificação, além do que no caminho para o tanque, por obra de uma segunda bomba do óleo, chamada de bomba de circulação, ele passa por um radiador que o arrefece. E também, por não ter a tal “bandeja” sob o motor, é possível instalá-lo mais baixo para baixar mais o centro de gravidade do carro. Deu para entender, caro leitor?
Bom, então o Aston Martin do Shelby tinha esse tal de cárter seco e o tanque de óleo pegava pelo menos uns 20 litros. Acontece que mais para o final da corrida o 6-cilindros em linha estava queimando um óleo de lascar, estava no bico do corvo, nas últimas, e dizia o Shelby que a cada parada para abastecimento eles tinham que colocar quase tanto óleo quanto gasolina, o que era exagero dele, mas que eles tinham que colocar litros e litros, tinham. E imagino que foi aí que veio o estalo na cabeça do Shelby. Nesses momentos de angústia, de rezar para que o motor aguentasse, ele deve ter sonhado em ter aquele mesmo carro, porém equipado com um bom, potente e robusto V-8 americano.
Ele contatou a inglesa AC, que fabricava um ótimo esportivo, cuja linda e ondulante carroceria de alumínio encobria um bom chassi com suspensão independente tanto na dianteira quanto na traseira. Era muito bom de chão, mas tinha um motor de 6 cilindros em linha meio ultrapassado e fraco, com só uns 120 cv, e a AC topou lhe fornecer o carro sem a mecânica. Depois contatou a GM para que fornecesse o motor, e ela recusou, acho porque já tinha o Corvette, então ele entrou em contato com a Ford, que topou. Então Shelby colocou-lhe um Ford V-8 289 (289 polegadas cúbicas ou 4.739 cm³) e logo de cara seu Cobra estava fazendo o 0 a 100 km/h na casa dos 6 segundos e passando fácil dos 200 km/h. Um canhão. Um robusto canhão.
O Cobra foi um sucesso. Mesmo sendo um modelo de baixíssima produção diante dos padrões americanos, não havia revista especializada que não o colocasse em inúmeras capas e lhe tecesse maravilhosos e empolgados elogios. A Ford gostou dessa propaganda de enorme retorno em termos de custo-benefício, e também percebeu que havia uma grande parcela de jovens americanos que gostava de bons, ágeis e viscerais esportivos, e que eles tinham dinheiro para comprá-los. Ficou evidente.
Em seguida, como consequência dessa constatação, vieram três ações da marca para rejuvenescer a sua imagem: o Mustang, o GT40 e a parceria com a Cosworth.
O Mustang até que foi fácil. Com o jeito prático e eficiente que caracteriza o americano, bastou vestir um modelo familiar produzido em larga escala — o pequeno Falcon, pequeno para os seus padrões — com uma carroceria jovem, moderna e linda. E o Mustang foi um estouro de vendas. Em seguida, aos poucos, foram-no desenvolvendo, já que a GM logo lançou o Camaro para combatê-lo — briga que ainda não acabou —, oferecendo motores mais fortes e, inclusive, se associando ao Carroll Shelby para a produção do famoso Mustang GT350, que arrasou nas pistas americanas. Dentro dos Estados Unidos, com isso, a Ford já caíra no gosto dos jovens. Faltava a Europa. No resto do mundo não havia tanto interesse.
Já o GT40 foi a sua entrada no Mundial de Carros Esporte. A Ford comprou de Eric Broadley, dono da Lola, dois Lola Mk6, colocou-lhes motores Ford e os desenvolveu na própria Inglaterra. Não deu muito certo. Só começaram a acertar quando trouxeram os carros ao granjeiro texano e ele meteu-lhes logo motores de 7 litros. Assim deu certo. Daí para frente os GT40 venceram Le Mans por quatro vezes (1966, 1967, 1968 e 1969), sendo que os dois primeiros anos sob a batuta de Shelby e usando motores de 7 litros, e os dois seguintes sob a batuta de John Wyer, usando motores de 4,9 litros.
Bom, até aí a Ford já fizera seu nome na América e na Europa. Faltava a Fórmula 1 para arrematar. Daí, com a intermediação do jornalista inglês Walter Hayes, estabeleceu uma parceria com a Cosworth, uma nova fabricante inglesa de motores de corrida, e assim nasceu o Ford Cosworth DFV, a sigla significando Double Overhead Camshafts, Four Valve (Duplo Comando de Válvulas no Cabeçote, Quatro Válvulas), já que era o desenvolvimento, a duplicação em “V de um motor de 4 cilindros que eles já tinham. Esse DFV tinha 3 litros de cilindrada e de cara saiu entregando 400 cv a 9.000 rpm. Imbatível, ainda mais que ele foi direto para as mãos de Jim Clark e Graham Hill nos seus Lotus 49 de F-1, um carro anos-luz à frente da concorrência e que venceram logo na estreia — carro e motor — o Grande Prêmio da Holanda de 1967.
Bom, esse era o jeito antigo e americano de rejuvenescer a imagem de uma marca de automóveis. Já faz um tempo que aqui no Brasil parece que alguns fabricantes investem numa tal de Stock Car; colocam umas bolhas plásticas parecidas com seus respectivos sedãs de rua em cima de um chassi tubular e usam V-8 GM importados que são sorteados entre eles. Uma coisa meio estranha. Sei lá se cola. Sei lá se rejuvenesce a imagem.
E a foto da abertura da matéria, com aquele carro maluco escrito 999 no radiador? Ela é só para lembrar que a Ford Motor Company foi fundada em 16 de junho de 1903, semana seguinte a esse carro, o 999, pilotado por Barney Oldfield, ter vencido uma importante corrida. Com esse sucesso Henry Ford conseguiu investidores. Ele sabia das coisas ou não?
AK