Parte 1 – SUFOCO NA NEVE
Amanhecia e estávamos de carro em meio à neve. A estrada estava coberta de neve e não havia rastros deixados. O céu estava acinzentado e a neblina era densa, soturna, e as poucas coisas que se via apareciam aos poucos, como que lentamente emergindo de detrás de um véu esbranquiçado. O solo, branco de neve, se amalgamava à densa névoa. Parecia um sonho meio confuso, quase que um branco só. O humilde ronco do Fiat Siena não ia longe. Tudo em volta era plano feito uma mesa, o que trazia a vantagem de saber que ao menos a estrada era reta, e eu dirigia baseado em marcos da beira da via e também na lomba da estrada, que era mais alta que essa planura.
O leito da estrada fora elevado em relação à planura tirando terra de suas laterais. O problema é que assim se formaram largas e fundas valas que ladeavam toda a via, e essas valas, com coisa de um metro e meio de profundidade, estavam cheias de água gelada. Se o carro escorregasse para elas estaríamos lascados; o motor do Siena morreria e minha família e eu viraríamos picolé, já que viva alma, honesta ou desonesta, passava por ali.
Estávamos indo de San Martin de Los Andes para Bariloche, uma viagem de 250 quilômetros, para pegar o avião de volta ao Brasil, e saíramos cedinho, ainda noite fechada, para chegar a tempo ao aeroporto. Antes de pegar esse trecho plano e nevado a preocupação foi com a possibilidade de pegarmos geada negra — o black ice — sobre o asfalto. Geada negra, como eles lá a chamam, é quando nas madrugadas uma lâmina d’água se congela sobre o asfalto, e aí, meu amigo, aí é o mesmo que entrar de carro num ringue de patinação. Fui, claro, bem devagar e atento aos reflexos que ela faz. Não peguei nenhuma geada negra, felizmente.
Aí veio esse tal trecho plano e nevado e neblinado, que, apesar de nos livrar da possibilidade de geada negra, não era nada tranquilizador, portanto eu estava um tanto tenso, pois o Siena não tinha nada mais que pneus de neve na dianteira, e de qualquer modo não se mostrava com um nível constante de aderência. O chão estava liso. Ora liso e ora muito liso. Eu não queria assustar “a minha mulherada” — minha esposa e três filhas —, que iam tranquilas, cochilando e quentinhas com o ar quente da calefação, então eu fingia despreocupação, mas acabei tendo que parar o carro, abrir a porta e cavoucar a neve até sentir o asfalto nos dedos. Parecia haver limo sobre o asfalto. Estava liso, mesmo.
Segui em frente com ainda mais cuidado. Não é mole engolir seco por coisa de uma hora inteira. Chegamos bem, sem problemas. Elas nem perceberam a situação delicada pela qual passamos.
Ao devolver o Siena à locadora lhe agradeci com um tapinha no seu capô. Volta e meia me vejo fazendo isso, agradecendo ao carro pelo bom serviço prestado. Tem gente que não entende isso.
Parte 2 – RACHA COM A VACA
O bugue Glaspac era e é branco. O motor era um 1500 com carburação simples, um Solex 32. Dois carburadores não davam certo no bugue porque as rodas traseiras jogavam neles tudo quanto é pó ou lama de onde passavam, então era melhor ter um carburador só, no centro do motor, livre dessa jogação de coisas, e esse Solex usava um bom filtro original banhado a óleo. O motor 1500 dava conta fácil esse leve bugue.
Certa tarde minhas filhas, ainda pequenas, saíram comigo de bugue para vermos as roças. Uma ao meu lado e as outras duas atrás, agarradas ao “santantônio”, e com elas lá atrás ia o Toby, o vira-lata que não desgrudava delas. E lá íamos nós.
A estradinha cortava um pasto e bem no meio dele estava uma vaca brava de raça Guzerá. Não me lembro do nome da vaca, mas na certa minhas filhas lembram, porque tinham um medo paralisante dela. A danada da chifruda era brava que só ela, mas eu não a queria vender porque ela era muito boa. Linda, a danada. Pelo fino, boa de leite, boa de úbere, sempre gorda e saudável, e todo ano ela nos brindava com excelente cria.
O senão é que a danada era brava de babar. Só respeitava o Carlão, o capataz. Bom, ao menos se vê que ela tinha juízo, já que não conheço quem, ou o quê, em sã consciência, enfrente o Carlão; que é só um homem, mas é um touro de forte. Paciente que só ele. Carinhoso e paciente ao extremo com as criações, mais ainda que eu, porém que bicho nenhum — seja bicho bicho ou bicho-homem —, abuse maldosamente além da conta, porque senão vem um tapão de mão aberta que se escuta de longe. Se o recebedor do tapa for bicho-homem é na cara — e não adianta tentar se proteger botando o braço na frente, porque vai braço e tudo junto —, o que dá nocaute instantâneo; se for bicho-bicho é nas costas, o que faz o bicho arqueá-la, dar uma fechada d’olhos de dor e soltar um “uurgh” de dar dó. E assim nenhum desses dois bichos repete o erro de fazer maldade.
Mas o Carlão não estava no bugue e a vaca brava estava bem no meio da estradinha sofismando umas coisas lá na cabeça dela. Vai saber no que ela pensava. Boa coisa não era. Então em primeira marcha dei uma desviada metendo duas rodas para fora da estradinha e passei por trás da vaca, não muito depressa para evitar irritá-la e nem muito devagar que parecesse provocação. Até aí, tudo bem, mas a diaba da vaca acho que viu/farejou o Toby e deu lá uma chacoalhada naqueles chifres pontiagudos e partiu correndo atrás da gente. E foi aquela gritaria de meninas e latida de cachorro, o que atiçou ainda mais a vaca, que acelerou o seu galope doido.
Me pintou um medo daquela vaca doida pular para dentro do bugue. E pau no bugue, acelerador no talo, estica a 1ª, mete 2ª rapidinho, acelera tudo — a meninada gritando porque as outras estavam gritando, estilo meio medo, meio folia —, e assim foi a prova de arrancada mais emocionante de que já participei. Ganhamos. Depois meti um motor mais forte no bugue, um 2.100-cm³ de uns 160 cv, e ele chegou a fazer o 0 a 100 km/h na casa dos 6 segundos. Quero ver vaca que faça isso.
Bugue sem capota é o melhor veículo para olhar a roça com a criançada. Criança adora bugue. É só convidar que elas pulam para dentro. Elas passeiam enquanto a gente trabalha. Cachorro também gosta.
Parte 3 – ATIREI O PAU NO GATO
Amanhece. A imagem é pega de lá do alto do céu. Ela mira o lado leste do horizonte, o do sol nascente. Reina o silêncio. É um amanhecer calmo, sem nuvens e sem vento. O amarelado próximo ao sol sutilmente se esvanece no azul que domina a abóbada celeste. A imagem se volta para baixo e assim capta um campo verde e plano de uma grande plantação de soja. A imagem baixa um pouco mais e foca uma pequena e vazia estrada de asfalto que corta esse campo. E baixa mais, e com isso já dá para ouvir o assoprar do escapamento de um solitário Fusca marrom, que segue devagar, calmo como o ambiente que o cerca. Baixando mais um pouco já dá para ouvir uma algazarra que vem de dentro do Fusca marrom. É a música infantil “Atirei o pau no gato”.
Lá dentro cantavam gritando: “Atirei o pau no ga-to-to, mas o ga-to-to, não morreu-rreu-rreu. Dona Chi-ca-ca, ‘dmirou-se-se, do berrô, do berrô que o gato deu…. MIÁ-ÁUUUU!”. Quem gritasse mais alto esse Mi-ÁÁUUUU!, ganhava. Não ganhava nada; só ganhava. E assim, minhas três filhas, então pequenas, cursando o começo do primário, e eu, na hora de gritar o MI-ÁÁUUU dávamos tudo o que tínhamos, nos esgoelando ao máximo. O interior do Fusca é como o interior de uma bola. Uma inigualável caixa acústica.
Era assim de manhã, nessa balbúrdia, quando era a minha vez de levá-las à escola, que ficava dentro da fazenda da Academia da Força Aérea, em Pirassununga (SP).
Um Fusca bastava. Ele não era grande coisa. Tinha já uns dez anos nas costas, daí que não custava grande coisa. Mas como seria sem ele?
Tem gente que se dá o luxo de falar mal do automóvel, mas se esquece do tanto que ele ajudou, ajuda e ajudará o homem, principalmente como algo extremamente útil para a sua família. Um homem que é só até pode prescindir de um carro, mas se ele tiver família fará de tudo para tê-lo. E enquanto houver famílias, o automóvel nunca há de acabar, seja ele movido a gasolina, a hidrogênio, híbrido, elétrico puro ou outra força motriz. Tanto faz.
AK