Na minha vida profissional, raramente vivenciei erros cometidos pelas áreas técnicas. A grande maioria deles ocorreu por motivos de custos e/ou por ignorância e preferências pessoais do grupo diretivo. Os palpiteiros influentes, os burocratas de plantão, também colaboraram e muito para alavancar os erros.
Na realidade o detalhamento técnico é somente um dos itens de um projeto. Os custos de engenharia, manufatura, logística e distribuição têm papel importante nas tomadas decisórias. Como parte do processo, também fica a dúvida entre fabricar componentes internamente ou por terceiros.
E por mais que se faça, trabalhando em time, existem tantas variáveis envolvidas que acabam dificultando enormemente o processo. Uma ferramenta poderosa que evita erros é a que analisa os modos de falha, com a aplicação das lições aprendidas. As casas automobilísticas japonesas são especialistas neste aspecto. Conhecer profundamente o que deu errado e corrigindo nos modelos seguintes é realmente uma boa medida de melhoria continua de projeto e de qualidade.
Um fato conflitante é quando o alto escalão da empresa escolhe um determinado caminho por preferência puramente pessoal, a chamada “decisão de cima para baixo”, sem contestações.
Falando em problemas gerados pelo grupo técnico, no qual me incluo, tenho um relato para mim inesquecível e que me serve de lição até os dias de hoje: o projeto da Belina 4×4.
Já iniciamos errado vendendo um “peixe podre” de veículo 4×4 sem interdiferencial, ou diferencial central, como é mais conhecido, causando esforços extremos no cardã e no diferencial do eixo traseiro, por diferença de rotação não compensada entre as rodas dianteiras e traseiras. Acreditávamos que somente uma nota no manual do proprietário seria suficiente para evitar problemas: “Em 4×4 engatado, rodar somente em piso com baixa aderência até 60 km/h”. E o consumidor mesmo rodando em pisos com pouca aderência, passava por buracos e ondulações da pista, que também forçava o sistema. E dito e feito, desgastes prematuros e fortes ruídos de funcionamento, geraram inúmeras reclamações de campo. Erramos também no layout e tolerâncias dos cursos de suspensão com relação aos cursos do entalhado de cardã e mais problemas, com quebra/desgaste do entalhado, às vezes escapando da luva e deixando o veiculo sem a tração traseira. Na realidade deveríamos ter rodado mais protótipos em durabilidade, forçando as várias situações em que o consumidor iria se defrontar no uso do veículo.
A Belina 4×4 poderia ter sido um sucesso se tivéssemos tomado mais cuidado com o projeto. Muito bem construída, era bonita, tinha bom espaço interno e um interior elegante e funcional, com a alavanca de engate da tração 4×4 bem posicionada e fácil de operar. Um dos detalhes bem pensados foi à adoção do sistema de roda-livre no eixo traseiro, que evitava o arrasto do diferencial e cardã nas desacelerações. Eu, como parte do time de desenvolvimento, fiquei melindrado com a minha atuação, não conseguindo dormir de vergonha pelo projeto malfeito. Até hoje fico constrangido ao relembrar os fatos.
Falando de projetos malfeitos pela área técnica, me lembro de outro que incomodou bastante a engenharia e a mim pessoalmente. Foi o desenvolvimento do pneu Goodyear G800 para o Corcel.
O G800 era durável, tinha um desenho muito bonito e uma aderência excelente em piso seco, tanto em asfalto quanto em terra. O calcanhar de Aquiles era o seu desempenho em piso molhado. Bastava uma chuvinha que a aderência caía demais, favorecendo a aquaplanagem. Na realidade ficamos tão entusiasmados com as outras boas características do pneu que não fizemos toda a lição de casa. Ficou a lição aprendida que desenvolvimento de pneus deve ser feito em conjunto com o fabricante em pistas especiais, incluindo o piso molhado com controle da espessura do filme de água, explorando todas as situações que o consumidor vai se deparar. Na realidade, um tipo de pneu pode se sair bem em um determinado veículo e mal em outro. A carga vertical no pneu e as pressões de enchimento adotadas podem alterar significativamente o seu comportamento.
No Brasil, a Bridgestone-Firestone, a Pirelli e a Goodyear possuem campos de provas, muito bem aparelhados para os testes de pneus, incluindo aspersores de água com controles da espessura do filme.
Outro problema técnico que me recordo. no qual fui envolvido, foi durante a Autolatina, quando começamos a utilizar o motor Volkswagen AP nos veículos Ford, Escort, Del Rey e Pampa.
Em rodagem no Campo de Provas de Tatuí, notamos um alto consumo de óleo lubrificante dos motores AP de maneira geral. Chegavam a consumir mais de 1 litro de óleo durante os testes de durabilidade.
Então descobrimos que o motivo do alto consumo de óleo era devido aos retentores das válvulas no cabeçote que desgastavam prematuramente e deixavam passar óleo para a câmara de combustão. Na verdade, a Volkswagen já conhecia o problema, mas se “escondia” no fato de haver há anos nos manuais de toda a linha a informação de consumo de óleo de até 1 litro por 1.000 km ser normal. Na Europa, os retentores similares eram feitos de material mais nobre, porém, custavam aproximadamente três vezes o nacional. Finalmente a Volkswagen acabou adotando a versão europeia , resolvendo o problema.
Outro problema técnico que me recordo foi no lançamento do VW Passat no Brasil, quando a Ford comprou um para avaliação e comparação e ficamos decepcionados. O sistema de engate/seleção das marchas não condizia com a modernidade do veículo, sendo impreciso e com ocorrências de desengate espontâneo das marchas. Na Europa, o sistema era mais sofisticado com mais graus de liberdade e amortecimento, bem diferente do sistema brasileiro. Com tantas reclamações de campo, a Volkswagen acabou adotando o sistema europeu , muito mais caro, porém muito mais eficiente, resolvendo definitivamente o problema. E não somente isso, transformou a imagem do Passat como o melhor veículo brasileiro em facilidade e precisão de engate e seleção das marchas. Veja o leitor como uma decisão técnica errada pode acabar com a imagem do veículo e vice-versa.
O icônico VW Passat, lançado em 1974, embora o da foto seja modelo 1975, igual em tudo menos na nas saídas de ar de cabine, feita pela fresta das portas e não mais pelas colunas traseiras do 1974 (Foto divulgação)
O que passou, passou, como se diz, porém não devemos nos esquecer nunca os nossos erros, servindo como lições aprendidas, para o bem da indústria automobilística e, principalmente, do consumidor.
Como de costume, termino esta matéria com uma homenagem
Desta vez vai ao engenheiro Luc de Ferran, um dos melhores executivos que já conheci, talvez o melhor.
O Luc valorizava a engenharia da Ford Brasil, estabelecendo sempre um diálogo eficiente com os profissionais para a melhor solução técnica, sem esquecer os outros detalhes como custos, complexidade do projeto e outros. Aposentado, vive na Bahia, em Camaçari, mas continua prestando serviço de consultoria não só para a Ford, como também para toda a indústria. Aliás, foi dele a ideia de aproveitar a plataforma Fiesta para construir o EcoSport, suve compacto que reinou absoluto por nove anos até que surgisse o Renault Duster.
CM