No mundo plurifacetado dos admiradores de automóveis, uma das faces mais interessantes é a dos colecionadores, com certeza os mais autênticos apreciadores de tal artefato, posto assumir missão importante, a de preservá-los para gerações futuras.
Nesta parte há um prisma de maior relevo, onde se incluem os preservadores de marcas com poucas unidades — e de dificílimo resgate de literatura, veículos e suas partes. Outros, do mesmo segmento, aplicam-se a outra subseção igualmente simpática, a das Marcas Órfãs, assim descritas as não integrantes das Três Grandes, GM, Ford e Chrysler, então comandantes de máquina econômica, financeira e institucional de compactar e picar as então concorrentes — hoje, décadas após, dessas sobrou apenas a Jeep.
Em compartimento a mesclar tudo, das dificuldades com produtos, literatura, componentes, assim como da pressão de concorrentes ou tragédias administrativas em sua administração, estão os colecionadores de Alfa Romeo. São, diriam os ingleses com ginástica verbal de mercador fenício, peculiares.
Alfisti, como se tratam os proprietários de Alfa Romeo, todos sabem, são seres superiores, Zen, à margem e acima da realidade. Gostam de carro complicado, da marca atualmente sem representação no Brasil, após movimentado vir e ir — nosso foi o único país onde houve produção integral e modelo específico e particular de Alfa Romeo, os 2300, mas isto não agregou valor à marca nem ao mercado.
Com tal lastro histórico, tais aficionados têm comportamento próprio, a começar pelo movimento gregário, também visto como esforço de sobrevivência, significando abandonar qualquer traço ou pretensão de isolamento, sempre buscando outros pares, padecedores como ele, para a promoção de convescotes festivos.
Tais eventos são, na realidade, elegante desculpa social para encontros, onde, além de perquirirem mutuamente quando a marca voltará ao Brasil, se perdem em devoção pelo sempre prometido — e ainda não cumprido — Sebastianismo, como faziam os lusitanos à espera da volta do jovem rei Dom Sebastião, de corpo desaparecido na batalha de Alcacer-Quibir, possivelmente receptório de algum alfanje árabe.
Dedicam-se tais sodalícios a trocar informações sobre a existência de magos capazes de solver problemas de manutenção, tipo pastilha de válvula de Passat serve para regular Alfa 2300? ou solução de problemas de reposição — cilindro de embreagem de trator Valmet funciona no Alfa 2300? farol de Monza 1987 encaixa no espaço dos 164? Centralina de Fiat Marea substitui a do Alfa 155? Alfa 155 é Alfa ou Fiat Brava?, coisas deste nível, ou vertente paralela, a tão constante quanto irracional e inexplicável aquisição de peças compulsiva, partes e acessórios, conjuntos volumosos, como motores, cabeçotes, eventualmente novos, ou normalmente usados, sempre necessitando conserto para eventual uso em data futura, incerta e não sabida.
Tal comportamento juntador os faz mais facilmente localizáveis que aplicativo de celular. Quer saber quem tem um Alfa no prédio? O dono do maior armário na garagem.
Porquê
Essa introdução se faz necessária para o entendimento por não-alfistas, da insólita — e verdadeira — história da qual fui testemunha noite destas, após um destes colóquios eno-alfista. Á ocasião na qual pequeno e fiel grupo já havia liquidado garrafas de Malbec em coerente homenagem de origem, durante combinação para possível viagem à argentina Córdoba, objetivando para conferir variada produção vinícola loca (alguns exemplos disso na foto de abertura, que podia parecer não ter nada a ver com a história, mas agora ficou claro que tem). Claro, motivo apresentado superficialmente como principal era apenas acessório, o visitar pequeno museu de automóveis próximo à fralda dos Andes.
Garrafas consumidas, papo corrente, fluido, ambiente homogeneizado de camaradagem, adentra conhecido associado do microgrupo, conhecido pela falante alegria e pelo total descompromisso com horário. Mais atrasado que árabe em reunião e encontro, deles trouxe a habilidade, o jeito, e poderoso para choques materializado em garrafa Magnum de boas origem e safra — e a custo zero. Ante tal argumento sensibilizante, a conversa sem direção, leme ou vela se desdobrou, fez idas e vindas, e durou até o esgotamento do bem-elaborado suco de uvas e das consequentes garrafas d’água para reduzir a concentração do álcool. Ao final do aditivo etílico, a conversa de múltiplos participantes, sem praticidade na definição da viagem, paga a conta, bar fechado, o papo final na calçada. A cidade ainda permite estas veleidades hoje raras neste país cada dia mais esquisito.
Logo, o derradeiro partícipe, destes pós-adolescentes capazes de exaurir o uso toda a capacidade de trapizongas de comunicação e conectividade, expõe em seu telefone um anúncio de coisa inusitada: motor 1300 de Alfa GT Junior. O assunto deflagrou impensada esticada quase ao surgir de novo dia:
Difícil ser, alegou um dos presentes, justificando terem entrado no país, tanto pelo importador Gancia, quanto pelo Corpo Diplomático, na década de ’70, apenas quatro unidades dessa versão do festejado automóvel. E completou, como parte do conhecimento intrínseco aos dedicados à marca, uns fofoqueiros históricos: todas estão cuidadas e operacionais.
Outro, dos primeiros a chegar, cuidadoso, detalhista, olhou a foto com interesse, indagou o preço — R$ 10 mil, perguntou e respondeu com educação definidora: se ninguém quiser, eu compro.
E explicou: há dez anos, num país lindeiro, dei cara com um conjunto motor-caixa de um automóvel destes e comprei.
Mas você não tem Alfa Militrica — afirmou o dono da citação numérica exibindo bem acatada bifurcação colecionista: além de automóveis, gírias antigas. Também, certa e bem-vinda intimidade com marca.
É, não tenho, confirmou o autor da proposta de compra, mas tinha dois GTV sem motor, e é mais fácil montar um 1750 com motor 1300 do que ficar sem completar o carro. Lógica insofismável, mas misturada impensável a antigomobilistas sérios.
E montou? indagaram em coro e curiosidade comum os demais, devidamente instigados pelas enzimas alcoólicas.
Não, porque nos anos consumidos para o conjunto 1,3 me chegar às mãos, comprei mais dois, um .600 e outro 1750.
E o tal 1300?
Deixei com o fulano para levar ao Encontro em Lindóia e vender lá.
E p’ra que você quer este outro 1300 anunciado? a pergunta com lógica cartesiana conseguiu varar a nuvem etílica, e pairou sobre o grupo no meio da noite.
Porque está aqui na cidade; o preço é adequado; e se estiver bom será ótimo negócio, pois o meu está parado há mais de 10 anos e precisará de serviço, resumiu, acertadamente,o interessado.
E perguntou ao dono do tema e do telefone com o anúncio, num rompante que se imaginou, iria ligar imediatamente, ao início da madrugada, para o anunciante: qual é o telefone do vendedor? pegando o celular para anotar.
Fez isto, e logo riu alto, sonoramente, acima do mero entusiasmo etílico: este é o telefone do cara a quem pedi para vender. E concluiu obviamente: quase compro o motor que estou vendendo!
Alfisti são gente especial. Você imagina esta história acontecendo com outra marca?
RN
Nota: O autor, testemunha desta história eno-alfista, tem carros da marca há ininterruptos 46 anos, mas é considerado um sujeito normal.