A matéria de ontem sobre o Fiat Mobi suscitou questões relativas ao comando de câmbio dos Fiat e achei que cabe falar aqui a respeito, mesmo que eu já o tenha feito em outras ocasiões, até mesmo nos comentários. A má fama começou justamente com o primeiro Fiat fabricado no Brasil, o 147, lançado setembro de 1976, portanto há praticamente 40 anos. Mais do que nunca prevalece o ditado “Faça fama e deite-se na cama”.
O transeixo de quatro marchas trazia uma solução que era moda nos anos 1960 e que foi incorporada pela Fiat: o sincronizador tipo Porsche para engate da primeira e segunda marchas. Esse sincronizador, patenteado pela fabricante de Stuttgart, tinha duas características básicas. Uma, o funcionamento perfeito e de grande durabilidade, uma vez que os anéis sincronizadores, tipo dividido e que atuavam por expansão, como as sapatas de um freio a tambor, e eram de aço. Outra, um engate mais duro do que outros sincronizadores com anéis de latão.
De pronto, o câmbio do 147 não agradou, o engate da primeira antes de arrancar era duro. Mas havia outro fator associado a essa dificuldade: a embreagem não desacoplava bem. Se isso não acontecia, o engate de primeira com o carro parado era ainda mais duro.
Mas havia outro problema, desta vez associado à embreagem: como ela não desacoplava bem, a ré, que não era sincronizada (poucos carro a têm, até hoje), arranhava quase sempre ao ser engatada.
Pronto, desgraça completa. Primeira dura e ré que arranhava.
A embreagem tinha defeito, algum erro de projeto que a impedisse de desacoplar como deveria quando se apertasse o pedal de embreagem? Não tinha.
Sem que possa ser chamado de erro de projeto, o fato é que o curso do pedal de embreagem foi calculado na exata, não tinha margem alguma. Então, qual o problema? Os tapetes de borracha que são mania mundial, porém exacerbada aqui.
Com os tais tapetes, em regra muito grossos, faltava curso no pedal para que a placa de pressão do platô de embreagem liberasse totalmente o disco. Não havia, assim, desacoplamento completo. Consequência, primeira dura e ré que arranhava.
Nos primórdios da Fiat no Brasil vim trabalhar na Diretoria Comercial (1978), que era em São Paulo e não em Betim. Vim para o controle operacional da rede de concessionárias e, claro, conheci muitas pessoas da área técnica, que volta e meia estavam por aqui.
Ciente das reclamações “do câmbio”, principalmente pela Quatro Rodas, logo vi onde estava a causa. Eu tinha contato com o pessoal da garantia da Fiat e o que se trocava de engrenagens de ré (intermediária e luva sincrônica de 1ª e 2ª, cuja coroa fazia parte da ré) destruídas de tanto arranharem, não estava escrito.
A fábrica conhecia o problema, mas não a solução — eu a sugeriria —, que era alterar a alavancagem do pedal de embreagem levando em conta a maior espessura de tapete conhecida, mesmo que isso implicasse em ligeiro aumento de carga do pedal. Afinal, uma embreagem de motor 1050 não é tão parruda.
Antes de continuar, o comando de câmbio era um simples varão (veja foto de abertura), sem braço de reação, ia direto ao seletor do câmbio. Era perfeito no sentido de que a passagem de segunda para terceira, por exemplo, era um movimento reto em frente, não era preciso procurar o canal de 3ª-4ª.
Muito bem, um belo dia chega um carro da engenharia com modificação no comando de câmbio, um verdadeiro multibraço que se destinava a desmultiplicar o esforço de engatar a primeira. A complexidade era monstruosa, fora que o curso de seleção de canal era enorme.
Mas o fato é que não havia mais dureza de engate, o sistema foi aprovado, aplaudido, e entrou em produção.
Porém, como eu era funcionário e tinha acesso às informações de produto, eu soube que o sincronizador Porsche havia sido substituído por BorgWarner tradicional, de anel de sincronizador de latão. Fiquei pasmo, lembro-me como se fosse hoje: foi feita modificação no comando de câmbio totalmente desnecessária. Coisas de fábrica, o pessoal de Chassi não conversou com o de Transmissão.
Eu havia recentemente recebido um 147 de frota novo que já tinha as duas modificações e o comando de câmbio era uma verdadeira nhaca.
Não conversei. Fui a uma concessionária de gente conhecida (Jolly, do Piero Gancia) e arranjei um varão. Instalado, a carga de engate (com sincronizador BorgWarner) era baixa, completamente diferente da com sincronizador Porsche, e eu tinha de volta a precisa seleção de marchas (a tal da 3ª reto em frente).
Em 1981 comprei um 147 novo para a casa, eu estava casado de novo e minha mulher estava recém-habilitada. Nunca reclamou, nunca sentiu qualquer dificuldade em passar marcas no 147. A embreagem desse 147 desacoplava, pois eu, como presidente da “Liga Nacional Contra o Tapete”, não os tinha no meu carro pessoal e tampouco no de serviço.
Sobre o sincronizador Porsche, a própria os utilizou a partir de 1953 no 356, quando abandonou os câmbios Volkswagen, e continuou no 911 lançado em 1963 no Salão de Frankfurt. Mas as reclamações de engate duro eram tantas que em 1975, concomitante com o lançamento do 911 Turbo, a Porsche abandonou sua criação em favor do sincronizador BorgWarner.
Sei que o leitor pode estar duvidando da veracidade da história dos tapetes, até entendo, parece devaneio mesmo. Um dia, lendo o manual de um carro americano importado, lá estava: “Atenção: o uso de tapetes adicionais pode impedir o curso completo do pedal de freio no evento de falha hidráulica em um dos circuitos, prejudicando a frenagem do veículo.”
Aliás, isso de tapete rende outra história, qualquer dia eu conto, deu-se no meu tempo de GM. E tem outra de comando de câmbio, com VW.
BS