Caro leitor ou leitora,
Ontem (16/6) o Jason Vogel, durante anos o editor do caderno de Veículos Carroetc, do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, fez publicar no Maharpress uma homenagem ao querido Mahar, que como você sabe nos deixou no dia 9 último. Achei a mensagem do Jason tão tocante que logo pensei em compartilhá-la com você. Pedi autorização à gestora do Maharpress, Carla Brolezzi, grande amiga do Mahar e que sempre o ajudou nos momentos difíceis, como nas várias internações nesses últimos anos, para reproduzi-la na íntegra no AE, prontamente concedida.
E ao Jason, os parabéns do AE pela iniciativa.
Bob Sharp
Editor-chefe
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José Rezende-Mahar (1951-2016)
O JORNALISTA QUE DESCREVIA PORCAS E PARAFUSOS EM TEXTOS CHEIOS DE EMOÇÃO
por Jason Vogel
Devoto de Nossa Senhora da Combustão Interna, ele nunca se conformou em transcrever releases ou se ater aos números da ficha técnica. José Rezende-Mahar punha emoção em qualquer tema que envolvesse porcas e parafusos. Loquaz e bem-humorado, o jornalista automotivo dirigiu de tudo, até o Rolls-Royce presidencial, e conquistou muitos fãs com seus textos publicados em revistas como “Vela & Motor”, “Motor 3”, “Ele Ela” e “Manchete”. Por mais de dez anos, ele colaborou com o CarroEtc, escrevendo, fotografando ou, simplesmente, com papos intermináveis ao telefone (em geral, na hora do fechamento).
“Os textos dele eram uma bagunça, palavras despejadas caudalosamente. Lá ia o repórter novato desembaraçar linha por linha, incluir o como, o quando, o onde, o por quê. Do original, sobrava uma frase. A frase que eu jamais seria e serei capaz de escrever, como “A Ferrari tão preciosa que estava condenada a viver numa garagem, qual uma borboleta presa por alfinete a uma caixa de veludo.” lembra o jornalista e discípulo Marcelo Moura.
Na quinta-feira, o hedonista e desregrado Mahar foi acelerar em outras estradas. Ficam seus escritos, dos quais selecionamos amostras do que foi publicado n’O GLOBO:
Alfa Romeo 147 (26/06/2002)
“Não faz muito sentido gastar US$ 35 mil num carro do tamanho de um Astra. E daí? Pela lógica econômica, todos andariam de trem. (…) Ela é amiga em todos os momentos. Não balança, permanece sob controle e nunca ameaça quem a domina. Só para os casos finais de masoquismo poderia ser feita alguma crítica a esse comportamento, por aqueles que precisam sofrer para curtir um carro.”
Celta (10/07/2002)
“Quando o Celta chegou ao mercado, há dois anos, seu acabamento de cela de convento desagradava aos olhos. O tão aguardado lançamento da General Motors era, na verdade, uma variação franciscana do velho Corsa.”
Polo 1.0 16v (7/08/2002)
“O motorzinho cresce frenético, como se não houvesse amanhã, chegando a astronômicas 7.400 rpm. (…) A Volks deve ter feito um acordo com a Loctite: os pneus parecem ter cola-tudo na banda de rodagem.”
Audi S3 (21/08/2002)
“Quem acha que tração nas quatro rodas é coisa de jipe, prepare-se: vamos ter momentos de intimidade beirando o erótico com um dos mais fortes automóveis que CarroEtc já analisou. É o S3, versão vitaminada do Audi A3. O “S” deve vir de super, de sensual, de superior, sei lá. (…) Parece inacreditável que o motor do S3, capaz de rugir como um leão enfurecido, seja primo em primeiro grau do nosso VW 1,8 litro, que até hoje move o Santana. O cabeçote é totalmente outro, com dois comandos e cinco válvulas por cilindro, além de um gordo turbocompressor, digno de um Scania. (…) É só ligar e ouvir o “Vruum”, assim meio baixo, contido mas revoltoso. Isto é um sinal de que o buraco ali é mais embaixo, e que os usuários fracos de emoções devem procurar outra praia. (…) Vem a sensação de ser piloto de um Spitfire na 2ª Guerra. A alavanca de marchas transforma-se num manche com um botão que faz desaparecerem os lerdos caminhões que ocupam a estrada. Num crescendo de som e aceleração, outros carros somem da mira, perdão, da frente, e o S3 conduz ao Nirvana automotivo.”
Stilo Abarth (18/12/2002)
“Ao se ligar o motor 2.4, os cinco cilindros zumbem como um vespeiro agitado. As marchas se encadeiam rápidas e o zumbido torna-se um grito que vai aumentando de tom, fazendo verdadeiras árias de loucura. (…) O difícil é andar com aquele motor insidioso convidando a indecências rodoviárias.”
Norton 500 de Che Guevara (5/05/2004)
“Os freios eram, na melhor das hipóteses, aproximativos — mais retardadores do que freios de verdade. (…) E a eletricidade era um pesadelo. Joseph Lucas, o fabricante das partes elétricas, não ficou conhecido como The Prince of Darkness sem motivo. (…) Sem freios, sem luz, sem suspensão, sem confiança de chegar… É isso que mostra que o importante é ir, não só alcançar o destino. Esses caras eram heróis de um tempo que passou.”
Fiesta 1.0 (6/10/2004)
“O motorista pisava no acelerador e só ouvia gargalhadas. (…) Agora, o carrinho reage com uma energia mais condizente com outros modelos “mil” e não deixa o motorista com ódio ao precisar de potência. (…) Pode não ser o sonho de quem ama dirigir, mas, ao menos, deixou de ser um pesadelo.”
Siena a Diesel (5/01/2005)
“Pela manhã, a máquina acorda ruidosamente. Há batidas e reclamações como se o mundo estivesse vindo abaixo. (…) Momento de grande prazer, só o do reabastecimento.”
Chrysler 300C Touring (29/03/2006)
“Apesar de ser baseada na plataforma dos Mercedes Classe E, o 300C tem aparência bem americana. Talvez com um pouco de rímel e purpurina demais. (…) É como uma perua texana que pratica boxe tailandês.”
O centenário do Ford T (1/10/2008)
“Há cem anos, 90% da humanidade nunca tinha se afastado mais de 30 km de casa. Com o barato Ford Modelo T, homens comuns puderam comprar um carro e ver o outro lado da montanha.”
Toni Bianco (20/10/2010)
“Se trabalhasse em mármore, Toni Bianco teria o porte de um Michelangelo.”
Ferrari 612 Scaglietti (2/02/2011)
“Acelera com uma trilha sonora que é o caos e a glória ao mesmo tempo. Uma música inacreditável de uma máquina briosa e veloz. (…) Uma 612 em mãos erradas leva a atos antissociais. Dentro do túnel, as pessoas ficam apavoradas com o urro da besta-fera saindo pelo escapamento especial. (…) É uma exaltação ao automóvel em uma forma que pode estar desaparecendo. Em alguns anos, o politicamente correto forçará esses supercarros ao limbo, em nome de um mundo alegadamente mais limpo. E menos emocionante. (…) É como diz o provérbio, “Donne e motori, gioie e dolori”. (…) Um carro para amar a estrada, para rodar mil quilômetros sem parar, em busca do pôr do sol.”
JV