Você se lembra dos causos que contei? Todos foram reais, muito divertidos ou cômicos, mas nenhum tragicômico. Ao contrário desse que vou lhe contar hoje, que se passou no início dos anos 70.
Eu já tinha dois anos de Volkswagen do Brasil e acabava de ser promovido a uma nova função, Representante de Assistência Técnica. O que isto significava? Para mim, um salto fantástico dentro da empresa, e para o lado pessoal outro tipo de desafio, uma vez que a atividade seria desenvolvida em uma região bem distante de São Paulo, onde era a minha casa. Nessa época eu morava com meus pais.
Esta distância era algo muito parecido com a vida de garçom nos restaurantes. Quanto mais novo o garçom, mais distante da cozinha era onde ficavam as mesas de sua responsabilidade de atendimento, e à medida que o tempo ia passando e o trabalho mais conhecido, para mais próximo da cozinha eram deslocados, como um prêmio.
No ambiente fabril algo parecido ocorria e ocorre até hoje. Representante novo para região distante e mais sofrida, representantes com mais experiência eram trazidos para as capitais, ou seja, distâncias menores, concessionárias maiores, enfim, uma vida um pouco mais fácil.
Mas o que fazia um representante de Assistência Técnica de uma Volkswagen do Brasil? A resposta não é tão fácil assim, mas vou tentar resumi-la.
Visitar as Concessionárias da sua região através de um pré-agendamento e verificar o funcionamento de uma série de itens como: atendimento ao cliente, funcionamento da recepção, acompanhar serviços realizados pela oficina, programar treinamento para os mecânicos e checar a existência de ferramental e equipamentos conforme normas e padrões preconizados pela fábrica. É por isso que essa função era conhecida na indústria como “inspetor’, mas agora havia mudado para “representante”.
A minha região de atuação abrangia o Paraná e Santa Catarina e somavam-se aproximadamente 30 concessionárias a serem visitadas. A minha sede era São Bernardo do Campo, de onde eu saía em viagem e só retornava uns 30/40 dias depois, o que significava ter visitado metade das minhas concessionárias.
Entre uma visita e outra também fazia o atendimento a clientes que estavam com algum problema e tinham escrito para a fábrica reclamando de algo.
Fui ao encontro de um destes clientes insatisfeitos que residia na cidade de Medianeira, no estado do Paraná, a caminho de Foz do Iguaçu próximo a Cascavel, só para você se localizar onde eu estava, importante para entender melhor este meu relato. Na ocasião meu carro de serviço era um Fusca, aquele com motor 1300 e era um desbravador, mas não imaginava o que passaria comigo ao volante.
Visita ao cliente agendada, eu não poderia falhar, afinal este era um dos meus primeiros atendimentos e tinha que demonstrar ao cliente e ao meu chefe sentado em sua cadeira em São Bernardo do Campo que eu tinha jeito para a coisa.
Saí da rodovia principal (BR-277 que seguia na direção de Foz do Iguaçu) e fui em direção a Medianeira, distante aproximadamente 25 km dela, mas um detalhe importante é que chovia muito e a estrada era de terra — e que terra! Para chegar à cidade tive que colocar correntes nas rodas traseiras para evitar que o corajoso Fusca atolasse (correntes eram compradas na região por onde se andava e depois o valor era reembolsado pela fábrica – era obrigatório para cada viajante da região ter este acessório salva-vidas).
Depois de levar oito horas para percorrer estes 25 quilômetros fui para um hotel na cidade, uma vez que já era tarde e o cliente só seria atendido na manhã do dia seguinte, conforme agendado. O hotel era na rodoviária da cidade, dá para imaginar quantas estrelas ele tinha? Por sorte tinha vaga, do contrário teria que dormir no carro. Talvez tivesse sido melhor não ter vaga…
Manhã seguinte, com dores no corpo todo em consequência de uma cama “superconfortável”, dirigi-me ao endereço dado pelo cliente em sua carta. Sabe quem era ele? Sua Exciª. o Delegado da cidade, e o endereço era a Delegacia de Polícia.
Chegando, apresentei-me ao assistente do Delegado (por pouco não o chamei de capanga). Ele, sem gentileza nenhuma, me disse:
— Senta aí e espera que o Doutor ainda não chegou.
Eram 10 horas da manhã de um dia frio e ainda chuvoso.
Não vi por onde o Delegado entrou, mas repentinamente aquele assistente (o legítimo capanga) me fez entrar em uma antessala e depois acesso à sala do Delegado. Dá para você imaginar o que eu estava sentindo naquele momento?
O delegado sentado à mesa e as duas cadeiras de cortesia que seriam utilizadas por visitantes estavam ocupadas por, creio, outros capangas. O medo tomou conta de mim e o coração acelerou, e o atendimento sequer tinha-se iniciado.
Sentei em uma terceira cadeira, longe de ser tão confortável como aquelas duas ocupadas pelos “amigos” do Doutor Delegado e perguntei:
— Em que posso ajudá-lo, Dr.?
A resposta veio de imediato:
— O motor do meu Fusca fundiu e este é um problema da fábrica, que porcaria vocês produziram, este carro não tem nem dois anos” etc., etc. — e tome “elogios” ao produto. A garantia era de um ano.
Pedi para ver o carro, era o mínimo que eu podia fazer. Pedi também o Manual do Proprietário para ver o quadro de revisões feitas e onde. Mas, revisões, que ideia! Naquele fim do mundo ninguém fazia revisões, mas também não clamavam garantia, isto é verdade.
Acompanhado pelos assistentes do Dr. Delegado, fui ao pátio da delegacia e lá estava o coitado do Fusca, colocado naquelas rampas de concreto comuns no interior onde se vê o carro por baixo, em que pode ser lavado e também ter o óleo trocado. Examinei atentamente o carro, com barro até o teto — e o motor travado.
Até imaginei como seria o meu relatório para a fábrica. Seria…
Problema: motor fundido por falta de óleo
Causa: falta de óleo devido a ruptura da carcaça do motor, perda da tampa do cárter.
Reparo: troca do motor completo, original sem condição de reparo.
Responsabilidade: toda do cliente, problema provocado por uso indevido (uma pedra foi a responsável por todo este dano e que provocou o vazamento).
Muito bem, e agora? Coragem, moço, disse a mim mesmo, vou negar o atendimento e dar as inúmeras razões para fazê-lo.
Quando entrei na sala do Dr. Delegado, ele estava sentado em sua majestosa cadeira, à sua frente a minha cadeira livre e as outras duas cadeiras ocupadas pelos seus assistentes (capangas, confirmado meu diagnóstico)
E veio a pergunta lógica do Dr. que não poderia ser outra, aliás eu já esperava.
— E então, menino qual é a sua palavra?
— Dr., o Sr. sabe que o problema do seu carro não é de origem de fábrica — tentei explicar, quando fui interrompido com um vozeirão do capanga:
— Isto o Dr. já sabe, ele quer saber e aí, como é que fica?
Imediatamente informei que levando em consideração a importância de ter um Dr. Delegado dirigindo um VW na região e a sua urgente necessidade de ter o carro em condições normais de uso, eu autorizaria a Concessionária de Cascavel, a mais próxima, a efetuar trocar o motor por um zerinho, novinho em folha, deixando desta forma o carro em ordem, e tudo isto em caráter de cortesia, sem qualquer despesa para o Dr. Delegado.
Os assistentes disseram que a decisão de dar este atendimento especial seria muito reconhecida por todos da cidade e que jamais o Dr. Delegado trocaria de marca (eu sinceramente lamentei…).
De volta a São Bernardo do Campo, o difícil, mas não impossível, foi convencer meu chefe de que eu tinha passado por risco de vida e que por esta razão tinha tomado a decisão que tomei.
— Foi uma QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA! — disse-lhe.
Domingo que vem tem mais.
RB