Se o fornecedor do componente é exclusivo, tanto a fábrica como o consumidor podem ser vítimas.
Fevereiro de 2002, véspera de carnaval. Na época, as quatro grandes fábricas de automóveis ainda dominavam o mercado brasileiro pois as “newcomers” ainda começavam a pintar no pedaço. Quem deu o alerta foi a Fiat: dois carros sendo testados em sua pista de Betim bateram por falta de freio em ambos. O fornecedor do componente defeituoso era a multinacional Continental Teves. Os engenheiros da Continental foram chamados às pressas em pleno recesso de carnaval para analisar o problema. Concluíram que o defeito — formação de bolhas a partir da superfície dos pistões das pinças (foto de abertura) por problema de material — não estaria apenas nos carros da Fiat, mas também nas outras três grandes: Ford, GM e Volkswagen recebiam o mesmo componente. E o pior: ela era fornecedora exclusiva das quatro, exceto da VW que comprava também de uma outra. O que significava a necessidade de um imediato recall de todas as dezenas de milhares de carros, quase toda a produção nacional nas últimas semanas dos automóveis equipados com aquele componente.
Fui durante 20 anos engenheiro da Metal Leve, fábrica brasileira de peças para motores (pistões e bronzinas) entre as maiores do mundo. Na época (décadas de 70 e 80) ela era uma das únicas do Brasil a fornecer com exclusividade para toda a indústria automobilística, contrariando uma política das fábricas de dividir o fornecimento entre no mínimo duas delas. Exceção por um simples motivo: não existia outra no Brasil de seu porte nem com seus padrões de qualidade que pudesse ser qualificada como fornecedora da indústria. Pelo contrário, a Metal Leve tinha fábrica também nos EUA e disputava o mercado mundial com outras grandes do setor. Fornecia pistões para motores aeronáuticos nos EUA e para a Mercedes-Benz na Alemanha. O receio de concentrar todo o fornecimento numa única empresa era justificável: e se ela interrompesse sua produção por algum problema financeiro, incêndio ou greve dos funcionários? Ou resolvesse endurecer o jogo na negociação de preços? Se ela interrompesse o fornecimento por qualquer motivo, estaria também interrompida a produção da indústria automobilística…
A evolução e modernização do setor, a globalização e a abertura dos portos alteraram a política de compras das fábricas de automóveis, que passaram a concentrar o fornecimento de componentes numa única empresa, alegando que o maior volume de produção reduziria custos. Além disso, ampliaram o conceito de fornecimento e terceirizaram até a própria montagem, ao classificarem algumas delas como “sistemistas”: as que não entregam apenas o componente que produzem, mas agregam os de outras fornecedoras montando todo um subconjunto. A fábrica de instrumentos, por exemplo, monta todo o painel. A de pneus já os fornece montados nas rodas.
Mas, na esteira desta política vieram também vários problemas. Recentemente, um recall de airbags atingiu mais de oitenta milhões de carros no mundo, todos com defeito no disparador da bolsa inflável produzido pela japonesa Takata, a maior do mundo neste segmento. Envolveu marcas asiáticas, europeias e americanas.
A toda poderosa Volkswagen está parada no Brasil pois se desentendeu com uma gigante do setor de autopeças, a Prevent. E só não parou também na Alemanha pois a legislação lá é mais rigorosa que a brasileira e impediu a “greve” da empresa.
A política de concentrar todo o fornecimento de um componente numa empresa pode ter suas vantagens, mas criou distorções na indústria e também para o consumidor final. Pois são tão pesados os investimentos para produzir determinados componentes, como o airbag, que até o mercado de reposição fica nas mãos de poucas e gigantescas multinacionais. Que, sem a necessária e saudável concorrência no mercado, deitam e rolam…
BF