Hoje vou contar uma experiência pela qual eu jamais gostaria de ter passado, verdadeiramente assustadora.
Sexta-feira, 18 de dezembro de 1970, último dia de trabalho antes do início das férias coletivas da fábrica da Volkswagen do Brasil em São Bernardo do Campo, onde eu trabalhava. À época eu era recepcionista na chamada Ala Zero. onde além de carros da frota também se cuidava de carros de funcionários devidamente agendados e se reparavam carros que vinham do campo, das concessionárias, com algum problema de mais difícil solução, uma espécie de “última instância mecânica”.
Eram poucos minutos passados das oito da manhã quando da minha mesa vi uma enorme nuvem de fumaça negra no alto do morro, mas que não dava a certeza de ser dentro das dependências da fábrica. Não demorou muito para vir à notícia de que havia irrompido um incêndio na recém-inaugurada Ala 13 onde funcionavam importantes atividades produtivas como a pintura, então a mais moderna da América Latina, já utilizando o processo da eletroforese.
Não era incomum ver fumaça naquela região, nos terrenos vizinhos muitas vezes se queimava lixo e até pneus velhos, mas o que se via naquele momento não tinha nada a ver e tampouco se podia imaginar o que estava por acontecer.
A notícia sobre o fogo se espalhou na mesma velocidade dele, fomos proibidos de abandonar os locais de trabalho para não prejudicar o trabalho dos bombeiros e cada um ficou em seu setor de aguardando novas notícias.
O movimento de bombeiros era incrível, caminhões e mais caminhões adentravam pela portaria da via Anchieta, ao mesmo tempo em que começavam a chegar ambulâncias e equipes médicas.
A notícia era estarrecedora. A Ala 13 estava em chamas e isto significava um enorme risco para a segurança de todos, porque lá era também o depósito de tapeçaria, pneus, tinta, thinner e outros produtos altamente inflamáveis.
Em um determinado momento, fui chamado ao escritório do meu diretor, o sr. Ruediger Von Reininghaus, responsável por toda a Assistência Técnica da Volkswagen do Brasil, e dele recebi a seguinte ordem: “Daquelas 10 Kombi Ambulâncias do programa do Funrural que se encontram na oficina aguardando a revisão de entrega, pegue cinco delas, escolha cinco excelentes motoristas, vá até o local do incêndio e coloque-as à disposição dos bombeiros e médicos que estão trabalhando no local.”
Imediatamente escolhi os “pilotos” para as cinco ambulâncias, passamos no posto de gasolina interno para abastecê-las (carro zero, você sabe, tanque também zero) e subimos para a Ala 13.
Que horror o que vi! Parecia ambiente de guerra, embora graças a Deus eu nunca tivesse estado em uma. Só nos filmes.
Bombeiros vindos de todas as regiões — São Bernardo, São Caetano, Diadema, São Paulo e Cubatão — faziam o possível e o impossível para controlar o fogo. A destruição era total, paredes iam caindo (algumas tinham 30 metros de altura). Helicópteros da FAB jogavam gelo seco para tentar controlar o incêndio e/ou afastá-lo das áreas onde se encontravam depósitos de produtos químicos que poderiam explodir a qualquer momento. O pânico e o terror tomava conta das pessoas que tentavam, mas inutilmente, ajudar. Funcionários procurando por seus colegas, sirenes tocando, gente correndo, mangueiras pelo chão e água jogada à distância para dentro da ala.
Até o presidente da Volkswagen do Brasil, Rudolf Leiding, estava lá acompanhando os trabalhos dos bombeiros. Quando voltava para seu escritório, seu motorista, também muito assustado com tudo que estava vendo, ao dar ré em seu Audi 80 branco não viu que atrás dele havia uma Kombi ambulância estrategicamente colocada para atender eventuais necessidades — a que eu estava dirigindo!
Um detalhe muito importante. Lei é lei e mesmo na emergência ela tem que ser observada e seguida. As cinco ambulâncias que eu havia pegado na oficina não estavam emplacadas, portanto não poderiam transitar na via pública. O que fizemos? Cheguei a transportar alguns feridos, mas sem gravidade, do local do incêndio até a portaria e lá eram transferidos para outras ambulâncias de hospitais de localidades próximas atendendo o sinistro.
Nunca se viu uma tamanha solidariedade. Indústrias como a Karmann-Ghia, Scania, Mercedes-Benz, Chrysler e Ford enviaram, além de ambulâncias, seus médicos para auxiliarem no primeiro atendimento aos feridos.
Por volta da uma da tarde eu estava lá e desabou a última parede que ainda restava em pé e, note que era um prédio de três andares.
O fogo estava controlado, mas ainda havia muito por queimar. Absolutamente nada se salvou — paredes, equipamentos, pontes, ferramentas e a moderna cabine de pintura eram apenas ferros retorcidos. E falando em retorcidos, via-se lá de fora uma série de Kombis na cor laranja que tinham acabado de sair da linha de produção, estavam nas correntes transportadoras. Agora tudo aquilo tinha virado sucata.
Baixas, sim, tivemos oficialmente uma vida humana perdida, um funcionário dos bombeiros da Karmann-Ghia não resistiu aos ferimentos e faleceu no hospital. E um segundo caso mais grave, porém sem lhe custar a vida, o de um funcionário que teve um pé decepado. Este fui eu quem o levou até à portaria.
O incêndio começou por volta das 8 da manhã da sexta-feira, como eu disse, e à tarde ainda havia fogo. No dia seguinte, sábado, continuava a arder sob os olhares atentos de equipes do corpo de bombeiros. Nada mais havia a ser feito. Uma área de 30.000 m² ficou totalmente destruída.
Uma lição de vida, aprendi muito com esta triste experiência.
No domingo chegava ao Brasil, vinda da Alemanha, uma equipe composta de diretores, engenheiros, gerentes administrativos e representantes dos principais fornecedores de equipamentos para iniciarem os projetos/estudos para reconstrução da área perdida. A produção seria de qualquer maneira interrompida pelo prazo normal das férias coletivas que se iniciariam justamente naquela trágica sexta-feira.
Seriam esta agilidade de ações e pensamentos reflexo das experiências de guerra que aquelas pessoas tinham? Afinal, a Segunda Guerra Mundial na Europa havia terminado há apenas 25 anos.
Reuniões específicas com fornecedores também foram organizadas para que todos pudessem se preparar para meses muito difíceis à frente.
Sobre as causas do incêndio, há três teorias, mas nenhuma conclusão chegou de fato ao meu conhecimento:
– Faísca produzida pelo equipamento (furadeira) de um funcionário da manutenção
– Faísca produzida por uma máquina de solda utilizada por um funcionário da manutenção
– Curto-circuito na instalação elétrica, esta a menor das possibilidades.
O reinício da produção parcial em São Bernardo do Campo foi comemorada em março de 1971 e, mais uma vez, a colaboração das empresas “concorrentes” foi decisiva.
Um exemplo prático: a Scania pintava a carroceria bruta dos Fuscas e depois as outras alas da VW completavam a sua montagem.
Houve prejudicados, claro, mas não fosse a rápida reação para a reconstrução da fábrica o cenário seria totalmente diferente e uma coisa é certa: na hora do perigo, na hora da necessidade real, do sufoco, somos todos brasileiros. E irmãos.
Mais uma experiência inesquecível, desta vez terrível.
RB