Apresento mais um causo do meu livro “EU AMO FUSCA II – Uma coletânea de causos de felizes proprietários de Fusca”. Este causo tem como cenário o Mercado Municipal de Pouso Alegre (MG) que aparece na foto de abertura em sua versão contemporânea à época em que este causo ocorreu. Além dos personagens humanos, uma Velha Senhora é envolvida na trama, que é deliciosamente relatada pelo amigo Tito Carlini, um “velho” conhecido aqui na coluna.
NO MERCADO MUNICIPAL
Por Tito Carlini
Quando, enfim, consegui uma vaga para estacionar a Kombi perto do Mercado Municipal de Pouso Alegre, naquela manhã de sábado de 1969, a primeira pessoa que vi foi minha tia Hermelinda, com duas enormes sacolas de compras, cheias até à boca, com tudo que era verdura, frutas e legumes. Um peso de fazer dó. E olha que a tia Hermelinda teria de andar pelo menos uns quatro ou cinco quarteirões, morro acima, até sua casa, na rua Dom Lafayette Libânio.
Como não poderia deixar de ser, imediatamente a chamei e disse para me esperar na Kombi, estacionada do lado direito do mercado em frente à antiga Casa de Ferragens Dragão, que eu somente iria comprar um pouco de farinha de milho de monjolo e não demoraria a sair. Tinha deixado a Kombi destrancada e com os vidros abertos, o que naquele tempo, em Pouso Alegre, era perfeitamente normal, não havendo a mínima possibilidade de roubo ou de furto em veículos.
Era uma Kombi Standard azul Celeste ano 1965, motor 1.192-cm³, que fora tirada zero-km e usada no transporte de camaradas e ração para o Porto Sapucaí, onde meu pai tinha umas terras, igual a inúmeras outras Kombis azul Celeste rodando pelas ruas e estradas, já que a Volkswagen havia disponibilizado apenas três outras cores além do branco-bege. E como naquela época praticamente só se via Fusca e Kombi rodando, dá para imaginar a grande quantidade de carros iguais na aparência em circulação.
Era até motivo para piada. Dizia-se: “Metade dos carros nas ruas é Fusca; a outra metade é Kombi”.
Evidentemente, a tia aprovou a ideia de imediato, já que ela teria, sem dúvida, de pagar pelo menos um daqueles meninos engraxates da pracinha em frente ao mercado, que nos intervalos dos sapatos sujos eram carregadores de compras também.
— Oh, que bom que você apareceu, pedi para o Carlinhos vir me buscar e você acredita que o malcriado do seu primo disse que não daria por que já tinha combinado pescaria com o Baret e o Carlos Bina!? É sempre assim, a mãe dele sempre em último lugar. Dá pra você me deixar em casa?
— Mas é lógico que sim, tia, pode me aguardar lá na Kombi, as portas estão destrancadas.
E fui em frente, de banca em banca, atrás da farinha de monjolo especial, encomenda da minha mãe, usada para desengordurar linguiça de carne de porco frita. Farinha realmente especial, cor amarelo-ouro, torrada no ponto e com bijus maiores que os normais, difícil de encontrar em outros lugares.
Quando saí pela porta lateral do mercadão, a que dá para a avenida Duque de Caxias, fiquei momentaneamente em dúvida. Por fração de segundo me perguntei: qual das Kombi era a nossa? Na pressa de entrar no mercado e pegar logo a tal farinha, não prestei muita atenção no lugar exato em que a deixara estacionada e agora havia nada menos que quatro Kombis azul Celeste idênticas, uma atrás da outra. Afinal de contas, até hoje as Kombis adoram feiras e mercados.
Foi só olhar as placas para ter certeza: lá estava a 1-25-19-60, naquele tempo as placas ainda não eram alfanuméricas, e o que era melhor, com a tia Hermelinda dentro, já confortavelmente instalada no banco do meio, ela e as duas enormes sacolas de compras.
Foi aí que tive a “brilhante” ideia de pregar um susto na tia. Cheguei de surpresa e com ar assustado:
— Tia, mas o que a senhora está fazendo aí, a nossa Kombi é a de trás!
Ela, que já estava na dúvida se a Kombi era aquela mesma ou a da frente, quando olhou para trás, ficou branca
— Ai, minha Nossa Senhora! Me ajuda aqui…
E antes que eu pudesse lhe explicar que se tratava de uma brincadeira, a tia Hermelinda abriu a porta da Kombi e jogou tudo, com tamanha violência no passeio, que foi um desastre só. Um coco seco rolou ladeira abaixo em direção à praça do Santuário e ainda atropelou um inofensivo cão que tirava uma pestana junto à sarjeta. Somente ouvi o “caim” desesperado do pobre animal, pedindo clemência diante de tamanha selvageria…
Uma dúzia de ovos caipiras atingiu em cheio as paredes brancas do mercado e um ovo, pelo menos, sobrou na perna do guarda municipal, num descontraído bate-papo de esquina, que olhou incrédulo para a tia Hermelinda e disse: “Credo! O povo perdeu o senso de respeito com a autoridade, essa mulher é um perigo para a sociedade. Onde já se viu jogar ovo podre na gente?! Só pode ser protesto!”
A moranga, aquela abóbora redonda da Cinderela que a tia tinha escolhido a dedo para colocar no bobó de camarão, nem preciso dizer que se esborrachou no chão, formando um quibebe escorregadio na calçada, para blasfêmias dos passantes. E com ela couve, alface, agrião, espinafre, chuchu, abobrinha. Só não esparramou no passeio o feijão, este espalhado caprichosamente por todo o compartimento traseiro da Kombi, principalmente debaixo dos bancos, agora grãos indistintos misturados a restos de farelo de vaca.
O gato vadio que fazia ponto pelas proximidades dos açougues no mercado, ao ver a cesta de compras ao seu lado na calçada com dois quilos de filé mignon dentro, deve ter pensado: Essa mulher perdulária não sabe o que é bom. Onde já se viu jogar filé mignon fora dessa maneira! O duro foi separar a briga, já que a tia Hermelinda entrou em luta corporal com o bichano, que pulara para dentro da cesta.
Foi quando passou madame Janeth, aquela conhecida grã-fina de nariz empinado e deixou escapar o irônico comentário: — Nossa, que desumanidade, essa mulher maltratando o pobre gatinho! É só comprar carne no açougue, não precisa tomar dele. Aonde esse mundo vai parar!”
Eu!? Eu fiz o que pude. Tenho certeza que se contasse a verdade naquele momento — se dissesse que era só brincadeirinha — haveria um novo tipo penal a ser inserido nos anais do Direito: “sobrinhocídio qualificado”…
— Nossa, tia! Empurraram nossa Kombi para frente para colocar outra no lugar, eu tinha parado na vaga de trás e agora ela apareceu aqui! Que coisa estranha! A senhora estava certa, vamos botar as compras para dentro novamente.
Tenho quase certeza que a desculpa não colou muito bem, porém uma coisa é certa: a tia Hermê somente vai confirmar suas suspeitas quando ler esse relato, 48 anos depois.
Vou ficar, pelo menos, uns seis meses sem visitar minha querida tia.
AG
Agradeço ao amigo Tito Carlini por sua colaboração. Aqui na coluna destaco o seu delicioso causo “Negócio é negócio“, no qual há uma apresentação e fotos dele e de sua família. Mas ainda tenho mais material dele para apresentar futuramente.
REGISTRO: após da mudança de provedor ocorreu a perda parcial de material fotográfico que foi recolocado nesta matéria no dia 04/02/2017. Este procedimento, feito pelo autor, complementou o trabalho feito pelo Staff do AUTOentusiastas na condução da transferência de muitas centenas de matérias para “seu novo lar”. Com isto esta matéria foi reconduzida à sua condição original, respeitando as condições de arquivo existentes, pequenas diferenças podem ter ocorrido.