Essa história começou com meu chefe dizendo que eu teria que ir buscar um carro em outra cidade no dia seguinte. Eu trabalhava em uma loja de carros usados, e era comum comprar e vender carros em toda a região. Meu trabalho, entre outras funções, era de buscar ou levar os carros. O carro em questão, um Fusca 1969 que estava em Frederico Westphalen, RS, distante cerca de 115 quilômetros de Chapecó, SC, onde ainda morava. Achei estranho, pois não era o tipo de carro que a loja vendia. Então perguntei, se era mesmo um Fusca 69 que eu teria que buscar. A resposta foi sim, e seguida de mais informações sobre o carro. Meu chefe disse que as notícias eram de estar em perfeito estado, tudo original. “Vai lá, olha e me liga.”
Dia seguinte, bem cedo, eu já estava dentro de um ônibus a caminho de Frederico.
Lá chegando fui até a loja vendedora do Fusca, e ver se realmente tudo era verdade.
Ao entrar na loja me identifiquei e logo fui atendido. O dono disse, “descansa um pouco aí, tô atendendo um cliente e já te libero o carro.” Pouco tempo depois me levou ao fundo da loja e lá estava o Fusca tal qual tinha saído de fábrica ou quase. O vendedor foi logo dizendo, “tá 100%, este carro é uma relíquia, enquanto eu ia correndo os olhos e tentando disfarçar minha expressão de surpresa. O carro estava mesmo ótimo, não para ir direto a um museu, mas incrivelmente bem cuidado.
As explicações seguiam, tudo revisado, freios, suspensão, caixa de direção, embreagem, pneus novos e por fim, ele abre o capo do motor e diz, “zero bala”, primeira retífica, toda feita na revenda VW, não tem 100 km. Estava lá o velho, mas agora renovado 1300.
Amigo autoentusiasta, o Fusca 69 verde-escuro com seus cromados perfeitos me deixou de queixo caído. O único sinal de algo não original era o escapamento, que em vez de ter dois tubos finos, tinha dois tubos de maior diâmetro, mas ambos também cromados. Seu ronco era mais encorpado, quase esportivo. Era a cereja do bolo.
Liguei para o chefe e disse que tudo estava como o informado, e a resposta não poderia ser outra, “venha com ele.” Um café e mais uma conversa e eu estava com os documentos e chaves do 69.
As recomendações na saída foram de abastecer e colocar o 1300 para comer asfalto, o vendedor, disse, “vai ser bom para o motor novo pegar estrada, fica bom a vida toda”
Chave na ignição e pegou de primeira, funcionamento suave, dava sinal de um motor bem regulado. Parada para abastecer e pela frente somente a estrada. Como faço com todo carro que dirijo pela primeira vez, vou me certificando de tudo. Nesse caso com atenção redobrada. O checklist começou com altura do pedal de embreagem e seu acoplamento, e seguiu por verificação de engate de marchas e condição dos sincronizadores, folga da direção, freios em relação à pressão no pedal e sua resposta, bem como se não ocorriam desvios de trajetória em freadas mais fortes.
O carro estava justinho, afinado como um violino. Nada a reclamar, e em uma condução normal, eu segui por uns 20 quilômetros. Depois, o modo “sport” foi ligado em meu cérebro e o 1300 iria dali em diante conhecer apenas duas posições do acelerador, fechado ou totalmente aberto. Preciso dizer que nunca fui um motorista esmerilhador, do tipo de acaba com o carro. Aprendi a guiar rápido dentro do limite de cada carro. Rápido e suave, esse é o segredo do desempenho.
Acho que aquele Fusca incorporou o espírito de um Porsche 356 Carrera e juntos formamos um só corpo, ligados por uma energia que buscava se mover o mais rápido.
Como se pode ver pela imagem, a estrada entre Frederico e Chapecó é bem sinuosa, com subidas e descidas, uma delícia para um autoentusiasta. Na época a condição da estrada era ótima e com menos movimento de veículos. Dia de céu limpo e temperatura agradável pareciam contribuir para uma tocada esportiva.
Quando estava passando pela cidade de Águas de Chapecó, SC, avistei um rapaz pedindo carona. Cheguei a passar por ele, mas resolvi voltar e dá-la. Outros tempos, tudo era mais tranquilo. Abri a porta e disse, “estou indo para Chapecó, entra aí.”
O rapaz era do interior, morava com os pais numa propriedade agrícola, mal sabia ele que os próximos quilômetros de estrada seriam os mais emocionantes até então da sua vida. Na verdade acho que ele nunca vai esquecer.
Ele entrou com cuidado, gesto de pessoas educadas, colocou sua mochila no colo, e nisso eu vi pelo retrovisor um Corcel II vindo. Falei, fecha a porta e antes mesmo de tê-lo feito eu quase quebrei seu pescoço com a arrancada estilo drag race. Primeira marcha, segunda e terceira no limite e consegui entrar na frente do Corcel usando a zona de aceleração depois do trevo. Eu não queria ninguém à minha frente atrapalhando o 1300 Carrera.
O motorista do Corcel certamente percebeu e resolveu colocar o Mustang, para correr. Sim amigos, eu passei a olhar para aquele Corcel como se ele fosse um Mustang. Eu não me intimidei ao ver o emblema da Ford bem de perto no retrovisor. Era hora do 1300 Carrera e eu mostrar serviço. O meu caroneiro desse momento em diante agarrou a alça mais conhecida como PQP e não soltou mais, petrificado, deixou a mochila cair entre as pernas que forçavam a parede de fogo; não piscava, apenas respirava.
A estrada sinuosa de mão única estava a meu favor e eu sabia muito bem disso. O 1300 Carrera com seus freios a tambor, pneus linguiça e a suspensão traseira sempre querendo rebolar, eram os limitadores do desempenho. Tive que explorar ao máximo o freio-motor através de reduções de marchas. Uma coisa que aprendi em relação ao Fusca e derivados com motor arrefecido a ar é que temos que usar sempre que possível o freio-motor, para poupar os freios e baixar a temperatura do motor. Com freio-motor, borboleta do carburador fechada, o vácuo na admissão aumenta muito, baixando a temperatura tanto do coletor, quanto das válvulas de admissão, câmara de combustão e de maneira geral a temperatura do motor. Eu nunca tive problemas com superaquecimento em motor VW ar quando usado de forma esportiva. Nunca derreti um motor.
Mas voltando à estrada, o Corcel a cada pequena reta mostrava a cara, e vinha com fome, mas tinha que recuar pois a próxima curva impedia um motorista consciente de ultrapassar e colocar todos em risco. Em algumas curvas e descidas eu abria, acho que era um pouco de medo do motorista do Corcel de eu ir para o mato e ele vir junto. Existem algumas retas maiores nessa estrada, se bem que para um Fusca 1300, todas as retas parecem infinitas, e numa delas eu não teria mais como resistir e a ultrapassagem era apenas questão de tempo.
E assim aconteceu, numa reta o Corcel pegou pela primeira vez ar fresco, pois até aquele momento estava recebendo ar quente e aromático do 1300 Carrera. Aquela ultrapassagem parece ter levado uma hora, o tempo parou e metro por metro o Corcel foi avançando e eu com o canto do olho, vendo o motorista empunhando fortemente o volante, praticamente hipnotizado com olhar fixo na reta a sua frente, certamente pensando vai dar, vai dar, vai dar. E deu, sem maiores risco para ambos ou terceiros.
Mas não nos entregamos, como um só corpo meu coração batia sob o controle do comando de válvulas e o sangue corria pelas minhas veias com a aditivação da adrenalina, da mesma forma que a gasolina inflamava na câmara de combustão e transformava tudo aquilo em energia pura.
Apavorei o Corcel até chegarmos próximo a Chapecó, onde existem duas retas longas, na época sem lombadas. Essas retas fizeram o Corcel abrir muito, mas continuei a pleno no acelerador.
A reta mais longa tem mais de cinco quilômetros, e nela em quarta marcha cheia, eu e o 1300 Carrera estávamos em êxtase, como se estivemos na longa reta de Mulsanne em Le Mans. Novamente o tempo parou.
Não tinha mais o que fazer em relação ao nosso adversário, e meu caroneiro que desde o momento que entrou não tinha falando sequer mais uma palavra, falou em voz meio trêmula que ele ficaria um pouco a frente. Ao descer creio que aquele rapaz deve ter agradecido a Deus por colocar novamente seus pés no chão.
Era hora de baixar a adrenalina e a temperatura do motor. Voltei ao modo normal ao mesmo tempo que o 1300 se despedia do Carrera. Chegamos na loja, como saímos, íntegros, sem um risco, sem um vazamento de óleo, coração batendo suave, respiração mansa e uma marcha-lenta incrivelmente estável. Desliguei o motor, foi o momento do homem se desconectar da máquina.
Logo apareceu meu chefe, com um sorriso enorme no rosto ao ver sua nova aquisição. Exclamou, “como veio rápido!” E choveu perguntas, “anda bem? Tá justinho, tá tudo certinho mesmo? Eu respondi, “perfeito, perfeito.”
Companheiro de aventura descansando, fui para casa com uma felicidade inexplicável.
No dia seguinte chegou um senhor, olhou o Fusca e bateu o martelo. Novamente chave na ignição e motor funcionando perfeitamente, como um relógio suíço.
Saiu de fininho como quem se despede sem querer chamar atenção.
Um conjunto foi desfeito.
Nunca mais fomos 1300 Carrera.
Jacson Maffessoni
São José dos Pinhais – PR