Não é de hoje, mas veículos Volkswagen, em especial arrefecidos a ar, participaram e continuam participando de aventuras incríveis de norte a sul, do sul ao norte, de leste a oeste e vice-versa. Eu tenho acompanhado várias delas, e até tenho podido ajudar algumas, graças à internet e aos contatos agilizados através dela. Em algumas destas aventuras veículos brasileiros foram os protagonistas das aventuras, mas um exemplo disto ficará para uma outra oportunidade.
Nesta matéria vamos contar uma aventura a bordo de um Fusca 1952, verde – apelidado de “Ervilha” — e portanto split window, de vidro traseiro dividido, que lutou bravamente para vencer, com louvor, o desafio de ir do ponto mais ao norte do Alasca, Prudhoe Bay, até Ushuaia, na Argentina, onde há um cartaz que diz: “Fim do Mundo”, considerado o ponto acessível por estrada mais ao sul das Américas, e que é banhado pelo Canal de Beagle.
Ao lado, o mapa da Rodovia Panamericana e no seu destaque está o único trecho inacabado entre as cidades de Yaviza e Turbo. Esta quebra de continuidade da Rodovia Panamericana ocorre no Panamá, na região do “Tapón del Darien” onde as condições geográficas impediram a continuidade da construção rápida desta rota estratégica, construída a toque de caixa pelos americanos durante a Segunda Guerra Mundial para se ter um acesso rápido por rodovia a regiões onde os alemães estavam se infiltrando e angariando simpatizantes. A decisão foi de recorrer a ferryboats para evitar um terrível trecho de matas tropicais e pântanos onde a construção da estrada levaria vários anos e, com isto, perderia a função estratégica envolvida no caso. O ponto mais ao sul desta rodovia é a cidade de Quellón no Chile, portanto a Rodovia Panamericana não chega a Ushuaia. O caminho feito pelos “Fusconautas” até lá foi feito por outras estradas do Chile e Argentina.
A rota seguida pelos “Fusconautas” em terra firme foi sair do Porto de Tacoma, Seattle, ambos no estado de Washington dos EUA, subir para o Alasca, Deadhorse em Prudhoe Bay, começando aí a descida rumo à Ushuaia. Novamente nos EUA, estados de Washington, Oregon, Califórnia, passando para o México, entrando na América Central, Belize, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, passando para a América do Sul, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile, sul da Argentina em Ushuaia — ponto mais ao sul da rota — e a subida até Buenos Aires para embarcar o “Ervilha” de volta à Alemanha.
É certo que existe a história de um Fusca que andou ainda mais ao sul, só que em outro continente, o Antártico. Mas isto já é uma outra história.
“Assim devagar começa a formigar. Por mim a aventura poderia começar já”, diz Torsten Mathias Schmitz ao ser entrevistado em 22 de março de 2008 pelo jornal Elmshorner Nachrichten de Elmshorn. Embora o jovem, na época com 29 anos, da cidade de Horst tenha retornado em dezembro de 2007 de uma viagem de um ano pela Austrália, a emoção pela nova aventura já se fazia presente. Assim, foi muito fácil ter ficado fascinado pela ideia de seu amigo Dirk Lutz Werner Dahmer de viajar pela Panamericana.
“Há muito tempo tenho sonhado como viajar por esta estrada. E agora isto será feito”, disse Dirk Dahmer naquela oportunidade. Para poder realizar o sonho de sua vida, o fotógrafo de 36 anos de idade demitiu-se do bom trabalho que tinha numa agência de propaganda de Elmshorn.
A bordo de um Fusca, que tinha 56 anos de idade na época, eles se preparam para enfrentar a Rodovia Panamericana. Na bagagem eles levam um notebook, celular, câmeras fotográficas e algumas peças de reserva para este valente veículo antigo.
Torsten Schmitz, porém, era um mecânico freelancer especializado em carrocerias e mecânica de veículos, portanto estava livre para a aventura.
O percurso demandaria um ano, segundo estimativas iniciais. Mas eles não quiseram se fixar num prazo definido quando iniciaram a aventura.
Esta viagem foi um grande desafio não somente para os dois aventureiros das cidades alemãs de Horst e Elmshorn. Para sua viagem eles não escolheram nenhum veículo tipo “fora de estrada” moderno. O carro escolhido foi um Fusca fabricado em 1952, com um motor de 30 cv (um pouco mais moderno do que o original, de 25 cv, mas ainda da década de 50) e contando com aproximadamente 99.000 quilômetros no hodômetro. Abaixo duas fotos do “Erbse” — ervilha em alemão, apelido do Fusca devido à cor do carro — antes de ser preparado para a grande viagem:
Em março de 2008 Dirk comentou: “Dirigi este Fusca nestes últimos sete anos, durante os quais ele nunca me deixou na mão. Na realidade ele ainda não teve que percorrer um tour tão longo, não estivemos a mais de 1.000 quilômetros longe de Elmshorn”.
O carro não foi reformado para enfrentar esta aventura. Os probleminhas que existiam, como vazamentos no motor, continuavam lá, e acabaram dando um pouco de trabalho durante a viagem. Alguns itens do “Ervilha” receberam melhorias com vistas às possíveis dificuldades no percurso e reforços para poder enfrentar o desafio. Aí vão alguns exemplos:
Para o caso de ser necessário dormir no carro foram instalados reclinadores para os bancos dianteiros, transformando o seu interior em duas camas, que não eram lá muito confortáveis:
Foram adaptados cintos de segurança de três pontos, para aumentar a segurança passiva:
Prevendo os longos trechos de estradas de terra e lama, foi instalado um lavador de para-brisa com bomba elétrica:
Para melhorar a acessibilidade aos comandos dos equipamentos elétricos auxiliares foi adicionado um painelzinho de comando instalado abaixo do painel do carro, bem no centro dele:
Foram instalados potentes faróis de longo alcance, um oferecimento da Hella:
Os faróis do carro receberam uma proteção contra pedras que foi feita em casa e que acabou ficando muito boa:
Dirk Dahmer esclareceu que, para poder alimentar as baterias do celular e do notebook, a tensão do carro foi alterada de 6 V para 12 V. Com isto, estes aparelhos puderam ser recarregados a partir do acendedor de cigarros que foi instalado. O sistema elétrico do “Ervilha” foi transformado pelo Torsten:
Outro item importante foi melhorar a proteção do cárter do motor. Um protetor que usava os parafusos disponíveis no motor foi adaptado:
Instalação de uma rede porta-objetos interno no teto do carro. Numa viagem tão longa num carro deste tamanho, certamente falta espaço para guardar coisas:
A parte interna das portas recebeu um acabamento reforçado que incluiu um grande porta-objetos de alumínio:
Outro item de segurança foi a troca do para-brisa temperado por outro laminado, já prevendo a possibilidade de alguma pedrada atingi-lo:
O bagageiro de teto, peça importante na acomodação da bagagem e do reservatório de combustível de reserva, foi reforçado e recebeu a identificação da aventura nas laterais:
Além destas melhorias, foram acrescentados um espelho retrovisor do lado direito e alguns adesivos relativos à aventura.
O início da viagem foi no fim de maio de 2008. O Fusca foi embarcado no dia 2 de maio, no porto alemão de Bremerhaven, num navio tipo Ro-Ro (roll in, roll off) com destino ao porto de Tacoma — perto de Seattle —, Estado de Washington, Estados Unidos.
Como o câmbio do carro não era sincronizado, surgiu a preocupação com os manobristas da transportadora, que certamente não estariam acostumados a lidar com este tipo de câmbio. O Dirk escreveu um pequeno “manual” de uso deste tipo de câmbio e o pendurou no retrovisor. A posição do botão de arranque também foi indicada com cartazinho, pois o seguro morreu de velho… Até o esquema das marchas foi indicado perto da base da alavanca de câmbio.
Finalizando os preparativos de embarque, foi colado um cartaz com os dados do frete na janela do motorista.
A viagem de navio levou quatro semanas e a rota passou pelo Canal do Panamá. Os dois “Fusconautas” voaram no fim de maio para Seattle para recepcionar o carro. Alguns dias depois eles partiram para a aventura.
No dia 5 de junho de 2008 o “Ervilha” estava liberado no Porto de Tacoma e foi para a casa de amigos em Seattle. Nove dias depois a aventura começou.
O carro foi levado até a casa de amigos em Seattle onde começou o seu meticuloso carregamento. Ainda foi necessário comprar alguns itens, como duas malas militares de alumínio e outros itens menores. A carga do carro foi bastante trabalhosa, já que o que não existe de sobra num Fusca é espaço para carregar muitas tralhas. Algumas fotos deste carregamento:
Terminado este trabalho o carro acabou ficando desesperadoramente sobrecarregado, tanto que seu apelido passou a ser “Ervilha Grávida”
“Nós poupamos para esta viagem, mas o nosso caixa não estava tão recheado assim, e não daria para ficar por um ano pernoitando em hotéis. Conforme as possibilidades que se apresentavam acampamos e até pernoitamos no carro”, esclareceu Torsten Schmitz. Por isso mesmo os dois se alegraram muito por qualquer apoio e patrocínio que receberam durante seu périplo.
Já antes da partida eles receberam ofertas de pernoite no caminho, e foi assim na Colômbia onde eles ficaram alguns dias hospedados por Rodrigo Kurmen Figueroa, presidente do VW Club de Colombia. Fatos semelhantes se repetiram em várias outras cidades.
Dirk Dahmer, que é fã de Fuscas, não tinha medo que o motor do carro pudesse apresentar um problema grave. Mas em todo o caso eles levaram algumas peças de reserva para o Fusca veterano. Em resumo, estas peças compreendiam: bobina de ignição, correia da ventoinha, e cabos para o sistema de freios pois este carro ainda não tinha freio hidráulico! Os freios eram os conhecidos, e temidos, freios a varão, originais do Fusca 1952.
Para manter a sua família e amigos a par dos acontecimentos Dirk Dahmer e Torsten Schmitz iam relatando as suas experiências regularmente em sua página na internet (em alemão).
Para contornar problemas de comunicação durante a viagem, Dirk Dahmer estudou espanhol por um ano e meio. Com isto fica claro que ele tinha uma firme intenção de realizar esta aventura, tendo estudado este idioma antes mesmo de ter a viagem definida. Para ele isto era um pré-requisito.
Embora Torsten Schmitz não seja comprometido, Dirk Dahmer deixou sua companheira, Jasmin, na Alemanha. Conforme Dirk esclareceu, ela deu seu apoio integral a esta empreitada, tendo participado dos preparativos desde o início. Ao ser perguntada sobre o que achava do plano ela prontamente respondeu: “Faça a viagem!”
Como o relato de uma história como esta pode assumir um tamanho considerável, eu preparei, ainda em 2009, um vídeo com fotos do percurso inicial desta aventura, da chegada do “Ervilha” a Tacoma, no estado de Washington, passando pelo Alasca e depois a descida até San Francisco, na Califórnia. Este relato permite uma boa visão de como esta viagem foi realizada pelos intrépidos “Fusconautas”:
A sua passagem pelo México foi registrada no fim de março de 2009 por um canal de televisão local. O vídeo foi refilmado e colocado no YouTube para que pudesse ser apresentado aos leitores:
Aqui termina a Parte 1 desta matéria. Na sequência, na Parte 2, vamos ver como foi a passagem deles pela Colômbia, onde o amigo Rodrigo Kurmen Figueroa os recebeu. Apresentaremos uma entrevista feita com eles por Skype em junho de 2009. Finalizaremos com a chegada a Ushuaia e com a volta deles para a Alemanha.
Em tempo, a foto de abertura desta matéria foi tirada no Equador tendo ao fundo o vulcão Cotopaxi.
AG
Esta matéria atende à uma troca de mensagens com o leitor Eduardo Sérgio, ocorrida nos comentários à matéria “CEPILLOS (FUSCAS) DO ÓDIO AO AMOR”, e depois vamos apresentar matérias com carros brasileiros se aventurando pelo mundo a fora.
As fotos desta matéria são do Dirk e do Torsten, protagonistas desta aventura, a quem agradecemos.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.