Domingo passado contei três historietas e neste serão duas, mas que encerram uma importante lição. E duas que têm um denominador comum: falar alemão. A frase da foto acima significa justamente “Você fala alemão?”
1. O idiota
Vou voltar no tempo, para os anos sessenta, mais precisamente 1968, bem para o final do ano. Foi quando, com 21 anos, entrei para a Volkswagen do Brasil passando por todos os testes e exigências para o cargo, das quais a mais importante era ser fluente em alemão. Fui contratado para o cargo de recepcionista, era assim que se chamava a função que hoje nas concessionárias tem o nome de consultor técnico, o atendente da Assistência Técnica.
A Ala Zero da fábrica, conhecida por seu formato peculiar, era onde eu iria trabalhar. Lá estava localizada uma oficina, chamada Oficina de Assistência Técnica (O.A.T), considerada naquele tempo uma oficina-modelo.
Além dos carros da frota que ali eram revisados, também atendíamos carros de funcionários do nível gerencial para cima e quando havia tempo disponível, funcionários mensalistas. Mas uma das atividades mais importantes da O.A.T. era atender veículos com problemas técnicos não solucionados pelas concessionárias. Com a experiência de um reparo de difícil solução resolvido, eram emitidos Boletins Técnicos para todas as concessionárias, e se alguma tivesse algum problema parecido já saberia como resolvê-lo.
Éramos três recepcionistas, um especializado em funilaria e pintura, e os outros dois atendiam principalmente os funcionários da fábrica, em nível gerencial ou mensalista, como já comentado. Eu fui destacado para atender aqueles que não falavam bem o português, ou seja, os alemães. O interessante desta história vem logo aí, aguarde.
Em dezembro daquele mesmo ano estavam programadas as férias coletivas, comum naquela época. A fábrica inteira parava, menos, é claro, o pessoal da manutenção que tinha somente aqueles dias para fazer todos os reparos e manutenção das máquinas que a partir de janeiro voltariam a trabalhar na produção dos Fuscas, Kombis e início dos VW 4-portas, o Sedã 1600 que acabaria sendo mais conhecido popularmente como “Zé do Caixão”.
Como eu tinha sido recém-admitido não tinha direito a férias, e para continuar trabalhando fui deslocado para o setor da administração geral da fábrica.
O primeiro serviço que me deram foi trabalhar no correio interno. Recebíamos toda correspondência dirigida à Volkswagen do Brasil e a separávamos de acordo com o registro do departamento para qual era dirigida, o número da caixa postal interna (CPI) que normalmente vinha escrita no envelope. As correspondências eram colocadas em escaninhos (tipo caixa postal) por ordem numérica das caixas postais internas. Quando não estava escrito nome da pessoa a quem estava dirigida aquela correspondência, o número da caixa postal ou o departamento, éramos autorizados a abri-la, ler o seu conteúdo e então encaminhar ao departamento certo.
A distribuição para os departamentos era feita de bicicleta por estagiários e todos do programa de treinamento para menores, filhos de funcionários, muito bacana. Desta turma chegamos a ter chefes de seção e até gerentes.
Depois de atuar por duas semanas nesta atividade fui indicado para ir buscar as correspondências no Correio Central, ali no Vale do Anhangabaú esquina com Av. São João, onde até hoje funcionam os correios. De Kombi, saía de São Bernardo do Campo e ia até o centro da cidade, estacionava no pátio específico para a retirada das correspondências e voltava para São Bernardo do Campo ainda a tempo de almoçar. Era um trajeto que na época eu fazia em no máximo duas horas, ir até o centro de São Paulo, pegar as correspondências e voltar. Outras pessoas levavam mais tempo, saíam as oito e só voltavam lá pelo meio-dia.
Devido ao bom resultado, eficiência, rapidez e qualidade, fiquei nesta função mais de dez dias. Eu me divertia muito dirigindo a Kombi (era branca e não tinha nada que a identificasse como sendo da Volkswagen. Havia na época Kombis de serviço utilizadas pelos representantes que visitavam as concessionárias, estas sim eram identificadas. Eram azul-escuro com o nome VOLKSWAGEN em branco, que ia da porta dianteira até à parte traseira. De longe se sabia que o pessoal da fábrica VW estava chegando, não dava para disfarçar.
O Departamento para o qual eu estava trabalhando me passou uma nova tarefa, fazer o inventário de móveis e utensílios nas salas da Diretoria de Produção e nas de suas respectivas gerências.
De macacão, entrei de sala em sala e nelas não havia ninguém, todos de férias. Anotava aquilo que me tinha sido orientado a fazer. Cada cadeira, cada mesa cada utensílio pertencente à fabrica tinha que ter obrigatoriamente uma plaquinha com o número de registro de patrimônio nos livros da empresa. Quando OK passava para outro item e quando identificava uma peça sem plaquinha a anotava para as devidas providências. E assim foi, era um trabalho bem chato de fazer, mas reclamar, de jeito nenhum.
Até que entrei em uma sala onde estavam uma senhora alemã e um senhor, que pela conversa me pareciam ser muito “próximos”.
Apresentei-me e disse que precisaria da sua licença para começar a fazer o levantamento dos materiais da sua sala, meu trabalho. Ela me disse que tudo aquilo já tinha sido feito no ano passado e eu respondi que sim, mas tinha que ser feito todo ano para controle interno.
Então , em alemão, ela disse ao seu “colega”: Esse menino é um idiota, tudo que lhe mandam fazer ele faz e não pergunta por que e muito menos contesta, é um verdadeiro idiota.
Depois de umas duas horas naquela sala, terminei meu trabalho. Eles tomaram café, conversaram e nada, nem um copo d’água me foi oferecido, afinal idiotas não precisam tomar água.
Agora vem a minha desforra. Com mão na maçaneta para ir embora, disse em alemão aos dois: Até logo, obrigado pela atenção e bom fim de semana. Naquela época não havia a expressão “com cara de bunda”, mas foi como as deles ficaram.
De volta das férias, a fábrica a todo vapor, eu estava na minha posição de recepcionista para atender aos funcionários estrangeiros e numa pequena fila quatro ou cinco pessoas aguardavam o seu momento de serem atendidas.
Quem estava lá na última posição? Exatamente ela, aquela que havia me chamado de idiota. Atendi ao primeiro, ao segundo, e quando a fila andou e ela me viu, tomou uma atitude para minha surpresa, mudou de fila e foi atendida pelo meu colega que não falava alemão. Por não entender o que ela queria, pediu-me minha ajuda e fui até a mesa do vizinho para atendê-la, da melhor forma possível, aquela senhora e seu “amigo” que haviam me desrespeitado.
Coincidência ou não, nunca mais vi aquela senhora frequentar a O.A.T, mas o carro dela sim, trazido por funcionários do seu departamento.
Será que era vergonha pelo que tinha feito?
Antes de passar à segunda historieta, uma curiosidade “do fundo do baú” que tem relação apenas com a Ala Zero, não com as duas de hoje. O fato se passou em 1990 por ocasião do lançamento do Santana Executivo, que além do motor 2-litros (1.984 cm³) surgido dois anos antes, inaugurava a era da injeção eletrônica nos sedãs de luxo. Como tínhamos na O.A.T. — era meu domínio como gerente de Assistência Técnica/Produto — vários Santana Executivo em retrabalho, tive a ideia de fazer uma brincadeira-arte: formar uma figura com eles.
Fizemos a arrumação dos carros no pátio da Ala Zero, mas seria essencial uma foto aérea, ou a brincadeira-arte não teria sentido. Pedi autorização à minha diretoria para usar o helicóptero da fábrica, um Bell 206 Jet Ranger, para poder fazer a foto que eu imaginava. Autorização concedida, fui ao heliponto que ficava a pouco mais de 100 metros da Ala Zero e o piloto da casa, Cláudio Finatti, me levou para eu fazer a foto num “longo” voo de cinco minutos:
2. A mulher disputada
Estava de namorada nova, isto em 1972 na cidade do Rio de Janeiro, onde fiquei dez anos. Para impressioná-la em nossa primeira saída, convidei-a para jantar no restaurante do Hotel Nacional Rio, último andar, moda à época, muito bonito e recém-inaugurado. Para que não conhece, fica na praia de São Conrado, uma torre negra envidraçada de 34 andares em formato cilíndrico que infelizmente fecharia em 1996 (foi adquirido por um grande grupo hoteleiro francês e reinaugurado em dezembro último como Gran Meliá Nacional Rio).
O hotel era muito bem frequentado, as companhias aéreas o utilizavam para pernoite de suas tripulações, o que lhe dava um status ainda maior além fato de ser um hotel cinco-estrelas.
Depois do jantar fomos ao terraço para nos conhecemos melhor, namoramos um pouco e resolvemos ir para casa — cada um para a sua, logicamente.
Chamamos o elevador e talvez no 18º andar entraram dois tripulantes, um pela insígnia do uniforme era comandante e o outro também assim identificado era o primeiro oficial, e os dois acompanhando uma linda, mas muito linda comissária. Lembro-me bem, foi neste momento quando olhava para a comissária que tomei o meu primeiro beliscão, de uma namorada muito ciumenta e com sorriso na cara.
Apertaram a botoeira que indicou que alguém iria descer no 12º andar, onde eu e minha namorada, hoje casados há 43 anos, achamos que todos fossem descer.
Qual foi nossa surpresa, ou melhor, só minha, porque minha namorada não entendia o alemão, quando começou uma discussão entre os dois pilotos e a comissária.
O papo, segurando a porta era: Ontem você dormiu com ele e hoje você vai ficar comigo, OK? E a discussão parecia ir longe, quando eu, em alemão, disse: Vamos decidir logo quem vai e quem fica? Nós precisamos descer e queremos ir embora.
Sem falarem mais absolutamente nada, os três deixaram o elevador numa velocidade espantosa, devem ter continuado a discussão lá no 12º andar. E nós fomos embora.
O que fica de lição destas duas pequenas histórias: esteja-se onde estiver, não interessa se no Brasil ou no exterior, respeito é bom e deve ser preservado. Sempre haverá alguém que poderá lhe estar observando ou ouvindo. Esta é a mais absoluta verdade.
RB