Ao contrário do que muita gente pensa, carro não se vende como um meio de transporte. Sim, o usamos como tal, mas não é o motivo porque empatamos uma quantidade imensa de dinheiro neles. Quando compramos um carro, compramos independência. Escolha. Liberdade.
Liberdade. Tem gente que compra carro e o mantém na garagem quase todo o tempo, pois pode fazer as outras coisas a pé. Usa para passear no fim de semana, ou para ir a um compromisso mensal distante. Não há eficiência nenhuma nisso, mas, e daí? Para esta pessoa, não é necessidade, podia muito bem viver sem carro. Mas ter um carro na garagem, pronto para qualquer emergência, pronto para realizar qualquer vontade repentina, é o que interessa para ele. A prontidão para servi-lo quando bem desejar.
Muita gente acha que não vive sem carro por motivos práticos e lógicos. Eu tenho certeza que todos podemos viver sem carro, mas ao mesmo tempo, acredito que ninguém deva viver sem ele. Isto porque o carro particular aumenta o nosso raio de alcance, nos deixa livres para fazer um milhão de coisas impossíveis sem ele, e amplia sobremaneira aquilo que é mais importante para o espírito humano: a Liberdade.
Por isso a dificuldade de vender a ideia do carro elétrico: temos carros em nossas garagens não para nos levar ao trabalho e de volta, esta chatíssima realidade diária que pode ser aturada de mil maneiras diferentes. Não, temos carros para sair do trabalho às 5 da tarde e ir para Miracema do Norte, aquele lugar longe pacas, atrás de um novo amor. Para receber a notícia que seu pai foi internado no hospital a 500km de distância, e chegar a tempo ainda de se despedir dele. Não importa que isso aconteça duas vezes numa vida inteira: não é fazer algo, é poder fazer algo. Ter a liberdade de, se assim desejar ou precisar, entrar no carro e apenas ir onde se quer ir.
Por isso, por esta incrível qualidade, pessoas continuam a se apaixonar perdidamente por esta máquina, algo sem alma ou emoção que não deveria estimular tais sentimentos. E como paixão literalmente não tem limites, tem gente que mergulha profundamente nela.
Eu conheci durante a minha vida gente que tem muitos carros na garagem, mas nem por isso deixei de ficar bobo com uma estatística que li recentemente: A base de clientes da Bugatti moderna, a lista de pessoas que encomendaram Bugatti Veyron novos, pagando muitos milhões de dinheiros pelo privilégio, representam uma parte da população mundial que tem, em média, 42 carros.
Obviamente ninguém precisa de 42 carros. Mas, em mais uma prova de que necessidade tem pouco a ver com esta compra, existe muita gente que simplesmente não pode evitar. Para mim pessoalmente, um cara que tem dificuldade de manter dois carros, um número deste tamanho é inimaginável, e imagino que estas pessoas tem uma equipe de profissionais contratada para cuidar da garagem em tempo integral. Mas mesmo assim, mesmo não cuidando deles pessoalmente, a quantidade de trabalho, dinheiro e área necessária para cuidar de tanto carro não pode ser subestimada.
Tem gente que acha isso um exagero, um despropósito. Tem gente que sonha em poder fazer tal coisa um dia. Na verdade, ninguém sabe o que faria se de repente ficasse bilionário, é uma daquelas coisas que tem que ser real para ser completamente entendida. E é claro, não existe resposta correta, pois cada um faz o que bem entender com seu dinheiro. Mas a gente pode imaginar, e apesar de desejar um milhão de carros diferentes, particularmente imagino um máximo de 10 carros como ideal. Um tamanho que, penso, consigo gerenciar sozinho.
Mas qual seria o mínimo? Em que ponto deve se refrear os desejos consumistas, o ponto exato em que a consistência do angu é perfeita, não faltando nada nem sobrando algo? Onde está o segredo para que se tenha carros o suficiente para não se desejar mais nada, mas que também o número de carros seja tão grande que a garagem passe a ser um fardo de trabalho e preocupações sem fim? Quantos carros são necessários para isso? Qual é o mínimo possível?
Não tema, bravo leitor ou leitora, porque o tio MAO tem a fórmula para isso. E ela, por incrível que pareça, é totalmente pragmática. É centrada não em carros específicos, mas sim em FUNÇÕES que os carros têm que fazer. Colocando um pouco de lógica, é possível desfrutar de prazer automobilístico variado, mas de uma forma mais gerenciável do que uma garagem com 100 carros.
A ideia aqui é entender as várias formas de aproveitar um automóvel. Uma vez que se entende isso, se conhece tudo de legal que se pode fazer com diferentes carros, pode-se então saber onde se quer chegar. Tendo como objetivo as funções da garagem, pode-se adaptá-la a sua realidade. Se você pode ter apenas um carro, escolha as funções mais importantes e tente escolher um carro que possa fazer bem o maior número delas. Se pode ter 100, a escolha é bem mais fácil, mas ainda vale a pena pensar nelas, saber o que pretende com cada carro que você compra.
São basicamente seis. Claro que existem mais usos, mas não são importantes. Usos profissionais como patrulha, ambulância não são o foco aqui. Fuga de assalto e símbolo de posição social-financeira são usos escusos, não permitidos às pessoas de bem. Sobram os seguintes:
1) Transporte individual
Este é o seu carro de uso diário. O que você usa a maioria do tempo para o trabalho básico do automóvel: transporte pessoal, individual. Para ir à padaria, ao supermercado, ao trabalho.
Este é o mais importante uso, o mais básico, o principal quando se tem apenas um carro. E é o mais fácil dos usos também, pois qualquer carro pode fazê-lo. Se é licenciado para uso nas ruas, pode fazer esta função. Mas é claro que existem carros mais adaptados a ele; um Lamborghini Countach pode ser usado no dia a dia sem problemas, mas não é o uso em que se deriva mais prazer, onde o carro e você estariam mais felizes…
O carro individual pode ser qualquer um, e até uma motocicleta se for o caso, mas se você pode ter um só para isso, o conforto, a economia de combustível e a praticidade são as qualidades principais para uma escolha de sucesso. Particularmente acredito em polivalência para esta função: quanto mais coisas este carro fizer bem, melhor. Um carro que possa ser seu único, se for necessário. Afinal de contas, é onde você passará a maior parte do tempo, e, portanto, deve fazê-lo feliz o máximo de vezes possível. A mais importante das escolhas.
Qualquer hatchback faz muito bem este trabalho. Assim como peruas. Se tiverem desempenho decente, melhor ainda. Uma perua Audi RS 6 é talvez o ápice, se manter incógnita sua condição financeira não fosse a melhor maneira de se livrar de assaltos no Brasil. Suves, por mais que entusiastas torçam o nariz, também são polivalentes ao extremo, o que explica um pouco seu sucesso. Minha escolha particular é uma perua BMW usada: ela pode fazer 5 das 6 funções aqui descritas, com ênfase nos números 1 e 6. A escolha é particular claro, mas é essencial aqui um detalhe: um carro de uso diário para cada uma das pessoas habilitadas da sua casa é o ideal a ser perseguido, antes de todos os outros.
Mas sem colocar polivalência no jogo, é um uso tão simples e fácil que poderia ser feito até por um carro totalmente elétrico, se de vez em quando não precisássemos rodar 500 km no fim de um dia por algum motivo qualquer, o que o desqualifica imediatamente como viável. As pessoas que advogam o uso do elétrico querem colocá-lo nesta função, mas criando uma subdivisão, “transporte individual a distâncias curtas”, o que desafia qualquer lógica, e nega a básica função de prontidão que torna o automóvel algo tão desejável.
2) Transporte de Carga
Pode não parecer, mas poder carregar cargas variadas, apesar de ser um uso esporádico para quem não é um profissional do ramo, é extremamente agradável. De novo, não é uso constante que valida esta função; é o fato de se poder fazê-lo, se assim quiser ou precisar. Isso faz toda a diferença.
Uma picape ou um furgão de carga são coisas extremamente úteis para gente com uma vida saudável. De bicicletas e caiaques a sofás e sacos de cimento, as possibilidades e as facilidades que um veículo desse tipo proporciona são inúmeras.
Eu gosto muito e sonho com Peugeot Partner (que adoro dirigir) e Chevrolet S10 cabine-simples, esta última uma picape com uma caçamba gigante e a incrível capacidade de carregar 1.350 kg. Mas adoraria uma C-10 dos anos 70, o que atenderia o uso número 4 desta lista também.
Picapes com cabine dupla podem também ser usadas em múltiplas funções desta lista. Em menor escala, peruas e hatchbacks também, com a facilidade que tem de se tornarem pequenas vans se rebatendo os bancos traseiros.
3) Transporte de pessoas
Pode-se usar um Countach no dia a dia, ou também um picape cabine-simples. Mas se tornam carros inúteis quando se precisa viajar com a família, com amigos, ou alguma combinação interessante dos dois.
Uma das coisas mais legais do automóvel é que, quando mais de uma pessoa está dentro dele, a conversa flui como em nenhum outro lugar. Presos ali por algum tempo, família e amigos colocam em dia o que anda acontecendo com todos, piadas são contadas, brigas se desenvolvem, a vida simplesmente acontece. Não dá para escapar de um carro em movimento.
Kombi, o mais conhecido carregador de pessoas (Foto: divulgação VW)Por isso precisamos de algo com mais de dois lugares, e esta é uma diferença crucial do carro e da motocicleta. Cinco lugares é o mínimo para esta função ser bem-feita, mas aqui, quanto mais gente, melhor. Particularmente tenho um lugar fixo na minha hipotética garagem milionária para uma simples Kombi, um dos carros mais legais que conheço, e que carrega nove almas. Mas um Mercedes-Benz Sprinter (e seus similares) é talvez a melhor e mais lógica opção aqui, para uso dedicado.
Quando não se pode ter algo dedicado a esta função, bancos escamoteáveis no porta-malas são uma ótima opção; exemplos como o Fiat Freemont e a Chevrolet Spin podem levar sete pessoas ou carga, mas não os dois juntos, claro.
4) Nostalgia
Não há como escapar desta realidade: o que marcou nossa juventude é o que somos, para o resto da vida. O que devia ser o ensaio da vida adulta é, na verdade, o cerne de todos nós.
E não existe forma melhor de lembrar daquele moleque adolescente que achava que sabia tudo, do que andar todo dia, ou mesmo de vez em quando, em algo que ele gostaria de andar.
Esta é a menos lógica das funções do automóvel, e, portanto, a mais importante. Para calar a voz desse moleque me angustiando diariamente, eu precisaria mesmo é de um Opala 1974, com câmbio de três marchas na coluna. Tem gente que precisa de mais de 100 carros para fazer o mesmo. E todos estão certos.
Tem gente que compra uma reedição moderna do antigo amor, algo que mantém a Porsche viva até hoje. Para outros, somente o amor original resolve. Mas todo mundo merece poder dar um presente para aquele garoto idiota de 17 anos, cujas vontades ainda nos obrigamos a atender, mesmo tanto tempo depois dele se tornar adulto.
5) Transporte fora de estrada
Se um dia o apocalipse chegar, com hordas de zumbis comendo os cérebros de todos e com o fim da civilização próximo, um Countach não vai ser útil para nada. Nesse caso você precisa é de algo que possa te levar a lugares além de onde a estrada acaba, empurrar obstáculos, e as vezes, é claro, atropelar alguns mortos-vivos. Atravessar obstáculos é mais importante do que andar rápido.
Mais um uso não essencial, mas extremamente útil. Raramente necessitamos de veículos fora-de estrada, mas ter a possibilidade de atravessar rios e transpor morros enlameados é sem dúvida nenhuma desejável e delicioso. Afinal de contas, o mundo é grande, vasto, e o automóvel foi criado para que possamos explorá-lo; e o melhor meio de fazer isso é num veículo que não esteja limitado ao asfalto.
Não faltam opções aqui, não só de Jeeps e Land Rovers, mas também, quem diria, de Porsche e Jaguar. Uma picape com tração 4×4 e motor diesel é a opção mais popular hoje, mas um Jeep Wrangler “Bernardão” moderno, V-6 a gasolina, é o que gostaria de ter para minha família.
Mas as opções são grandes aqui: gaiolas fora de estrada com tração 4×2, como o incrível Ariel Nomad, picapes para andar rápido em deserto como a Ford Raptor, jipes dedicados como o Hummer H1, coisas especiais feitas sob encomenda como os Land Cruiser FJ da Icon.
Cada vez mais o homem anseia por liberdade, num mundo cada vez mais cheio de regras e vigilância. Não é nada estranho que, ao escolher um carro, cada vez mais gente imagine em usá-lo para fugir da dessa civilização. O sucesso do SUV não vem à toa.
6) Transporte a alta velocidade e/ou competição
E finalmente, o que realmente interessa para 99% dos entusiastas: velocidade. Não existe maneira de se ter uma garagem completa sem algo rápido. Velocidade é o melhor, o mais incrível e delicioso dos muitos superpoderes que o automóvel nos confere.
O Lamborghini Countach que falamos aqui é uma escolha emblemática, bem como todo Ferrari, e alguns Porsches. Mas mesmo um humilde Celta de competição, preparado para correr em pista, é uma opção viável, relativamente barata e possível.
E um sem fim de outras coisas entre esses dois extremos. Não importa o que você escolha, pelo menos um de seus carros deve ser algo rápido. Mesmo que você nunca use esta velocidade, tê-la a sua disposição é o que interessa.
Escolha. Talvez seja isso, mais que a liberdade, que tanto irrita os legisladores a respeito do automóvel. Esse povo aí escolhendo como quer andar, por onde quer andar, a que velocidade quer andar… É incontrolável!
Algo cada vez menos aceitável, infelizmente.
MAO
P.S. : E o leitor, como preencheria sua garagem olhando esses seis usos? Fiquem a vontade para colocarem suas preferências nos comentários.