Difícil decidir se o exemplo de manutenção de um carrinho bastante rodado é muito bom ou uma porcaria. A viatura em questão é meu Daihatsu Charade Sedan 1,5, 1995, que entrou por acaso na minha vida. Chegou de troco na venda de uma VW Paratí, uns oito anos atrás. Veio com uns “70.000 km”, o que era mentira, já que havia uma etiqueta de óleo indicando 115 mil km como próxima troca. Ou seja, algum incompetente com iniciativa — o pior dessa classe — voltou o velocímetro uns 40 mil km e esqueceu a etiqueta na porta.
Só como referência, vamos assumir os 70 mil km, já que agora ele está com 135 mil km (na realidade uns 175 mil km). Ou seja, já rodou uns 65 mil km em minhas mãos. Ou, mãos diversas: de familiares, amigos e até inimigos.
Já contei a história da recuperação dele, já que o “Toyota de pobre” (a Daihatsu é uma marca da Toyota) chegou bem ruinzinho e foi bastante restaurado antes de começar a rodar. Sua manutenção serve de exemplo para qualquer carro que está indo para os 200 mil km, com a agravante que as peças de um Daihatsu são complicadas de achar no Brasil. Mas, com peças difíceis ou não, o desgaste e manutenção são muito semelhantes na maioria dos carros. Se for um nacional, tem peça na “esquina”. Se for uma “raridade” precisa um pouco mais de garimpo ou imaginação técnica. Mas, já vi muito carro nacional ficar parado semanas esperando um componente.
Bom avisar que o apelido familiar do japa Charade é Coitado, aliás “Cuitado”. Todo mundo usa e ele só anda. Ninguém abre o capô para ver se o motor 1,5 de quatro cilindros (chique, todo em alumínio, 16 válvulas, comando na cabeça…) ainda está lá.
De vez em quando, alguém me entrega a chave dizendo que ele está “falhando”. “Em subida e curvas?”, pergunto. Como a resposta é quase sempre positiva, lá vou eu para o posto em marcha-lenta, pois deve ter menos de um litro de gasolina no tanque. Em curvas e subidas, a gasolina vai para as laterais do tanque e a bomba chupa… ar. Claro que o Cuitado falha.
Pois bem, vamos ver o que de mais grave aconteceu nos últimos 65.000 km, além de trocas de componentes óbvios de desgaste como pneus, velas, palhetas de limpador de para-brisa, bateria, filtros (de gasolina e óleo, já que o filtro de ar é K&N americano, esportivo e lavável, comprado nos EUA. É o mesmo do Toyota Carina, seu primo também japonês).
Grandes vantagens do Cuitado: tem a qualidade de um Toyota, é muito econômico (mais de 12 km/litro de gasolina com o pé embaixo na estrada), completo (ar-condicionado, direção com assistência hidráulica, e “trio elétrico” — vidros, espelhos e travas com motorzinho elétrico) e procura praticamente zero por ladrões e políticos (com o perdão do pleonasmo).
Ocorrências & novelas
Radiador- deu vazamento umas duas vezes e foi soldado, remendado. O técnico já foi avisando: “tá ruim a coisa, se vazar mais uma vez, não tem conserto. Tem muita corrosão”.
Esta corrosão vem do cloro da agua “de torneira”, e o jeito de evitar, além de usar aditivo de qualidade, é colocar apenas água destilada ou desmineralizada. O que é difícil de acontecer em um carro já bastante rodado com agua clorada.
Estou de madrugada na rodovia Castello Branco a uns 120 km/h (ou um pouquinho mais) e, puuummmm! O ponteiro da temperatura vai lá para cima e começa a sair vapor pelas laterais do capô do motor. Ponto-morto para resfriar um pouco o motor e tentar chegar mais perto de um posto. Quando o Cuitado perdeu o embalo, vou para o acostamento e ele roda uns 5 km até o posto, em quinta ou quarta marcha e motor quase em marcha lenta, a uns 30 km/h.
No posto, espero uma meia hora e tiro a tampa do reservatório. Tudo seco. Colocamos água e quando o motor começa a funcionar, aparecem borbulhas no reservatório (indicando pressão interna no sistema) e sai vapor pelo escapamento. Coitou… p’ra não dizer fod…. Além do radiador, torrou a junta de cabeçote que, claro, empenou. Levo um galão com água, não coloco a tampa do reservatório (para não aumentar a pressão e jogar mais agua para dentro dos cilindros) e vou bem devagar por mais uns 40 quilômetros até Tatuí (SP), o que demorou quase duas horas. A cada 5 km coloco mais agua. Se acelerar um pouco mais o motor, muito aquecido, iria fundir.
O Renato, meu mecânico, tira o radiador. Não tem jeito. Por aqui, só usado ou mandar fazer um especial e novo. Não vale a pena comprar um usado, que estaria tão podre quanto o meu. Manda fazer demora e fica caro. Encontro o componente novo no eBay inglês, não é caro, mas o preço do transporte é muito alto. O jeito é adaptar. Pelo catálogo de radiadores, comparamos dimensões e posição das mangueiras. O mais parecido é o Honda Civic “bolinha”, modelo até 1995/96. Um pouco mais alto (uns 20 mm) e, grande vantagem, tem maior profundidade e aletas de refrigeração maiores. Este radiador do Civic bolinha é um salva-vidas de tudo quanto é japinha velho. Pequeno, serve em qualquer espaço no motor, sendo bastante eficiente.
Custou uns R$ 300 e bastou mudar o apoio inferior na travessa e fazer dois suportes superiores. Um tubo em L casou a mangueira inferior, que ficou em ângulo errado. A mangueira superior encaixou direto e até a tampa do Charade serviu no radiador do Civic.
Cabeçote aplainado, junta e retentores de válvulas novas (um jogo parcial de junta japa encontrado no Mercado Livre), óleo trocado e o Cuitado volta a rodar. Ganhou um pouco mais de taxa de compressão (devido ao desbaste do cabeçote) e o motor ficou até mais alegrinho.
Sensor de Posição da Borboleta – Uns 20 mil km atrás o motor começou a ter problemas de aceleração, retardo no início dela e aumento de consumo. Diagnóstico: problemas no sensor de posição de borboleta (TPS, Throttle Position Sensor), que informa à centralina (coisa de italiano da Fiat, diminutivo de centrale, centralzinha) da injeção sobre a posição do acelerador (e da borboleta de entrada de ar no motor). Havia mau contato e troquei a tomada, além de desmontar o bendito sensor e limpar partes móveis. Melhorou. Pero no mucho.
Usando a marca (Denso, japonesa) e o número da peça, procurei no eBay. O mesmo sensor é usado em vários japinhas da Mazda, Toyota… Custou US$30, com frete grátis dentro dos EUA. Como estava indo para o Salão de Detroit, trouxe na mala mesmo. Com sensor novo, o motor “dormiu”. Ficou mais redondo e consumo voltou ao normal.
É interessante esta história de peças exclusivas para um determinado carro. Boa parte das peças são genéricas e o fabricante do carro simplesmente escolhe um componente pronto em um fornecedor. Mas, tem muito “especialista” que acha que peça é só para o carro dele. Claro que existem componentes exclusivos, mas não são todos.
Outro dia, estava comprando uma bateria e entrou um esperto para pedir uma “bateria do Celta”. Se ainda fosse uma “bateria para um Celta”, tudo bem. Afinal, ninguém é obrigado a interpretar a etiqueta e saber que é simplesmente um acumulador de 12 V e 45 A·h, que deve ser usada em pelo menos uns 200 diferentes modelos de carros. Quando o cara pediu, o atendente ainda fez piada:
“Qual a cor do Celta? Para eu não te vender a bateria errada.”
Molas traseiras – Também nos últimos 20 mil km o Cuitado vinha sentando a traseira. Até o Carlos Meccia (também editor do AE, meu vizinho em Tatuí) falou: “Xiii, as molas tão cansando.”
Praga de amigo é fogo. Logo depois os pneus começaram a raspar na parte superior da caixa de rodas, sinal que os batentes também tinham se despedido deste mundo.
Mola é tão chato quanto radiador. Existem novas no exterior (principalmente na Inglaterra, para os Daihatsu), mas o custo de envio “quebra as pernas”.
O Renato retirou as molas e fomos à loja de peças para pesquisar. Colocamos no balcão e o atendente pergunta: “Gol Bola?” “Claro”, respondemos.
Mesmo formato e encaixes, cerca de 20 mm mais comprida (o que compensava a “canseira” das originais) e, o melhor, tinha um elo a mais, indicando maior resistência à carga e pancadas. Com batente e guarda-pó do próprio Gol foi só montar que o Cuitado levantou a traseira orgulhoso. Próximo!!!
Coxins – Painel e volante começam a vibrar e se sentia o motor “passear” dentro do cofre em acelerações: coxim estourado. Aparentemente “estourou” o coxim traseiro, o “de torque”, que evita os movimentos rotacionais do motor em acelerações e desacelerações. A borracha resseca, rasga e o coxim perde sua capacidade de absorver vibrações. Medimos o coxim ainda montado no carro e fui procurar. Pelas medidas, bateu com um coxim usado em uns 10 modelos da PSA, tanto Peugeot como Citroën. Custo da peça “original”: R$ 30. É um saco para trocar, mas deu certo.
A causa do rompimento era outro coxim, o baricentrico (outra dos italianos da Fiat…), que sustenta o motor do lado das polias, que também estava rasgado. Arrebenta um coxim, se não trocar logo, força os outros… Esse foi fácil, pois é o mesmo do Corolla mais antigo, até 2001. Mais R$ 50.
Aproveitamos para trocar uma coifa (guarda-pó) da junta homocinética, igual ao do Uno, e um terminal de direção que sabe-se lá em quais outros carros serve. E também o abafador traseiro que apodreceu. É genérico, tipo “turbão” de 2 polegadas, e custou mais R$ 150.
Spa bônus – Tadinho do Cuitado, estava feinho, pintura sem brilho, para-choques riscados e com trincas, rodas amassadas com a tinta caindo (a droga do “limpa-baú”em lavagens). E ainda vem uma Nóia e bate um Clio na traseira do meu Charade. Desço, olha para a cara dela: olhar vidrado e uma história de que tinha sido “sequestrada” e fugido do cativeiro (no carro dela!!!). O resto da história fazia menos sentido ainda.
De brinde, ganhei mais umas trincas e riscos no para-choque traseiro.
O Cuitado foi para a pintura. Enquanto recuperavam os para-choques (existem dezenas de colas e massas especificas para restaurar partes plásticas) as rodas foram para a Eagle Rodas, em Campinas, que é do Ricardo Caruso, velho amigo e companheiro desde os (bons tempos) da revista Oficina Mecânica (https://www.facebook.com/eaglerodas01/).
Duas rodas (que eu já tinha colocado na traseira) estavam muito alegres, pois saltitavam pelas estradas. Carusão alinhou as rodas, reparou as raspadas na guia da mulherada ao volante e pintou as quatro (são aro 14, linha VW). O Caruso agora está todo fashion em relação às rodas e usou uma tinta prata especial meio gourmet/gay (prata cintilante evanescente outonal, ou frescura do estilo) que, pior, ficaram bem bonitas no Cuitado, que agora rola bem mais macio.
Aliás, já não está tão Cuitado assim. Ficou pronto para furar os 200 mil km rodados. O que vai ser rápido, já que toda semana o velocímetro ganha uns 500 quilômetros.
Nota do escriba: Além do motor de 1.499 cm³, 16V, bem projetado e executado pela Toyota, o Cuitado tem algumas outras razões para ser econômico, como o câmbio longo (120 km/h com o motor virando a 3.100 rpm) e baixo peso. O sedã de 4,10 m de comprimento pesa apenas 845 kg.
De fábrica tem 95 cv (a 6.400 rpm), mas o Cuitado deve ter uns 105~110 cv, graças a pistões maiores, taxa mais elevada (original de 9,5:1, o meu deve ter ido para mais de 10:1) e outras traquitanas.
E tem uma coisa que o Bob Sharp sempre mete bronca quando o carro que ele testa não tem: faixa degradê no para-brisa.
JS