Richard Parry-Jones famosamente dizia que alguns poucos metros eram suficientes para se avaliar um carro. Embora entenda perfeitamente o que ele quis dizer com isso, e concorde que na maioria dos casos já se sinta se o carro vai ser bom ou não nos primeiros metros rodados, tenho para mim que em alguns casos precisamos de muito tempo para que possamos nos adaptar a ele e, aí sim, formar uma opinião sólida.
São carros que, usando uma expressão mais comum na língua de Shakespeare do que na de Camões, são gostos adquiridos (acquired taste, em inglês). O termo é muito usado em culinária: todo mundo gosta de pudim de leite porque doce é um sabor fácil de se gostar. Já qualquer coisa que esteja mais para o lado do amargo, como jiló e cerveja, requerem vontade de se experimentar diversas vezes para que o sabor diferente finalmente fique familiar, e passemos a gostar dele. Mesma coisa com o cigarro.
Quanto mais diferente do normal, mais longa é esta adaptação, claro. E quanto menos vezes você dirige carros diferentes, mais tempo você precisa para se adaptar ao novo. Um exemplo fácil são os Citroëns clássicos. DS, 2CV, SM, GS, todos os carros da marca de antes da incorporação pela Peugeot tão diferentes do normal que praticamente era necessário se reaprender a dirigir. Um SM, por exemplo, dizem, é quase impossível de se dirigir bem sem muita prática: o câmbio é de fácil engate e o motor Maserati V-6 completamente bem-comportado, apesar de nervoso e girador quando provocado, mas o resto do carro requer um bom tempo de aclimatação. O freio é um botão de borracha no chão parecido com um cogumelo, e responde não ao movimento como estamos acostumados, mas sim a mera pressão. A direção, ultrarrápida e com esforço inversamente indexado à velocidade, é sempre estranhíssima ao primeiro contato. Os que se acostumam com ele dizem que depois de compreendido não há nada igual; pouco movimento nos comandos criam uma sensação de que basta se pensar em algo que ela acontece. Algo mágico, quase telepático, mas que só pode ser experimentado para gente que se dedica a entender o carro durante um longo tempo.
Hoje em dia pouca gente está disposta a entender o diferente, paradoxalmente numa época em que o politicamente correto nos manda respeitá-lo, em certos casos por força de lei até. Os carros, portanto, ficam cada vez mais iguais, o público em geral procurando o que a manada gosta, sem questionar, como uma ovelhinha na fila da tosquia. Acostumado com carros de comportamento parecido, o público tem dificuldade de aceitar o novo e diferente.
A Citroën continua um bom exemplo. Recentemente minha esposa me pediu um carro maior, visto que as crianças cresceram para tamanho adulto, e o Polo apertava um pouco as perninhas dos coitadinhos (o fato de que ela viajava em cinco no banco traseiro do Fusca até os 18 anos, sumariamente esquecido). Meu cunhado ao mesmo tempo colocou a venda a C4 Picasso 2012 de sua família, e aproveitei a oportunidade para resolver o assunto rapidamente. Tirar os filmes dos vidros e acertar alguns barulhos de suspensão foram o suficiente para chamá-lo de nosso.
Confesso que, acostumado com carros dinamicamente mais ágeis e espertos, de cara não gostei do carro. É o primeiro carro automático que compro para nossa casa, e de cara achei lerdo, balofo, desagradável. Lerdo e beberrão. O interior é cheio de coisa diferente, do volante com cubo fixo a comandos de ar totalmente independentes em 4 zonas. Mas não achei que nada daquilo trazia vantagem alguma, era apenas diferente para parecer diferente. Melancia na cabeça, figurativamente. Um carro simples mecanicamente, o dinheiro todo gastado no interior para parecer moderno e digital.
Mas minha esposa adorou o farto espaço interno, o conforto dos bancos grandes e bem-feitos, e o câmbio automático. Percebeu o consumo mais alto, mas adorou o carro. E como era esta a intenção, agradá-la, tudo ficou bem.
Mas em seguida passei um tempo com um SUV grande, de teste. Não vou dizer qual porque o que se seguiu, acredito, valeria para qualquer SUV similar. De repente, o que era lerdo e letárgico pareceu bem mais ágil e rápido. O câmbio, de apenas 4 marchas (contra 6 do SUV), tem calibração primorosa, resistindo à tentação dos calibradores com mais marchas a disposição de comandar troca de marcha a todo minúsculo movimento do acelerador. O espaço interno do Picasso era bem maior apesar do tamanho externo similar. Incrivelmente, comparado ao SUV novinho, o velho Picasso parecia até rápido e econômico! Milagre!
O C4 Picasso até parece sorrir, livre dos “sacos de lixo” nos vidros (Foto: autor)
Até o motor de 2 litros me parece fortinho agora, se descontarmos a tradicional patinação dos automáticos, resultado da multiplicação do torque no início do movimento do veículo. Tudo é relativo mesmo, definitivamente. Comparado à minha baixa, potente e minúscula perua BMW Série 3 de 1996, o Picasso parece um elefante asmático ao se mexer. Mas comparado a carros de seu tamanho, a coisa muda completamente. O conceito de van (em português. furgão) de passageiros, tão apregoado pelos franceses, continua realmente muito melhor que essa onda atual de suves. Mais espaçosa por usar pneus menores e desenho externo mais favorável ao bom aproveitamento do espaço interno, são uma escolha bem mais lógica e agradável que os SUVs.
Mas lógica nunca vende carro; o povo hoje, sabe-se lá por que, prefere coisa pior mas com aparência de jipe. O conceito de van quase morreu, o C4 Picasso atual, uma geração à frente do nosso e dotado do fantástico motor 1,6-L THP, vende quase nada frente aos SUVs de shopping center modernos. Vai entender…
Mas será que é só o fato de ser uma van que o impede de vender mais? A fama de carro frágil e caro para se consertar que a marca francesa tem aqui é, na opinião deste cliente constante de Citroëns usadinhos, infundada. O problema real, que a marca devia enfrentar de verdade, é que nunca se tem estoque de peça de reposição na concessionária, a espera por elas são lendariamente longas, e muitas vezes quando chegam são a peça errada, ou vem a notícia que a peça não existe mais para reposição. Resolvam esse problema, que enfrentei algumas vezes, e a fama muda. Pode confiar, PSA.
Mas não há como negar que a moda é o suve e que ninguém quer mais van: a única outra no mercado, a Chevrolet Spin, vende quantidades pífias frente aos Jeeps e Hondas que hoje são objeto de desejo da classe média-alta. Como consequência, tenham certeza que esses suves de madame continuarão a proliferar. E cada vez serão mais parecidos uns aos outros, até que comecem a ficar cansativos e alguma outra moda tome seu lugar.
Mas logo em seguida tive outra experiência que me mostrou como carros costumavam ser diferentes uns dos outros, e como referência é tudo. Ao visitar um amigo, acabei por conhecer e dar uma volta no seu mais novo carro antigo: um Porsche 911 1975.
Se minha perua parecia um kart baixíssimo e pequenininho perto do Picasso, rapidamente ela se tornou o movedor de pessoas gigante e molóide perto do 911 antigo. Incrível! Como a gente costumava ser mais inteligente nas nossas escolhas de carro! Imagine se fossem as mesmas com toda a tecnologia atual.
O 911 antigo, arrefecido a ar, para quem não sabe é uma coisa muito diferente de um carro moderno, e mesmo da minha perua BMW, esta já um carro semiantigo com seus 21 anos de idade. É minúsculo, e baixo de uma forma que a maioria da população hoje não imagina ser possível. Meu bumbum estava literalmente a milímetros do chão. E nem por isso era impossível transpor valetas, quebra-molas e buracos comuns na cidade de São Paulo. O carro leva com conforto dois adultos e duas crianças pequenas, apesar de ser ridiculamente pequeno para os padrões atuais.
E as diferenças não param aí, claro: motor traseiro seis-cilindros contrapostos arrefecido do a ar, pedais pivotados no assoalho, freio sem servo ou qualquer assistência, direção também puramente e deliciosamente desprovida de qualquer sistema que a torne artificialmente mais leve. O painel ridiculamente “raso” se comparado a carros modernos, e colunas fininhas permitindo ótima visibilidade para fora.
E é fácil entender a mítica que envolve esses carros mesmo andando pouco com ele: o motor forte, torcudo em baixa mas capaz de rapidamente subir a giros estratosféricos (neste carro, o 2,7 original foi substituído por um 3,0 de 1982) com um grito delicioso, e toda linearidade do mundo. Direção rápida, precisa, com peso tranquilo, totalmente linear, sem assistência alguma. Toda tração do mundo com aquele peso todo lá atrás, e um comportamento geral que, embora demande respeito pelo peso todo na traseira, é divino, controlável, divertido, gostoso. Que carro!
Hoje em dia qualquer hatch esportivo tem potência similar a de um 911 1975. Mas são coisas muito, mas muito diferentes mesmo.
Mas antes de que o leitor ache que só há esperança de diversão em carro antigo hoje em dia, falta contar sobre mais um passeio curto em um carro moderno que faria qualquer um rever estes conceitos: o Peugeot 208 GT.
Desci de outro desses suves modernos para andar de 208 na Romeiros recentemente. Novamente, a referência é chocante: altura bem mais baixa, carro bem menor e mais ágil. Somente depois de pegar minha perua novamente, no fim do passeio, foi que pude ver que o pequeno Peugeot é alto também, se comparado à perua. Referência é tudo.
Mas o que queria contar para vocês é que, já nos primeiros metros, feito Parry-Jones, já se sabe que o carrinho será memorável. Andei pouco com ele, mas os comandos leves, a potência e linearidade do motor turbo, e o câmbio manual com acionamento leve e preciso, fazem um carrinho divertidíssimo. De cara, em poucos minutos, e comparado a qualquer coisa. Até perdoo o esquisito quadro de instrumentos visível por cima do volante. Carros realmente legais são assim.
O Bob me levou dirigindo a um trecho da estrada onde foi possível ele andar, em suas palavras “em ritmo de rali”. Tenho a reportar que quem acha que septuagenário não sabe mais dirigir está esfericamente enganado. Que carro, meus amigos, e que piloto.
Muita gente acha o 208 GT caro, principalmente se comparado a outro franco-brasileiro bravo: o Sandero R.S.. Tendo andado nos dois digo que são muito diferentes. O 208 com certeza vale o que custa a mais em acabamento e construção mais refinada, e em motor mais potente. É uma opção interessante para quem gosta de MINI, mas não suporta o exagero estilístico retrô do inglesinho. E quer economizar algum.
Mas qual é a conclusão de toda essa ruminação verborrágica de hoje? Acho que me perdi um pouco, mas o que queria dizer é que não adianta falar em carros de forma absoluta, de bom ou ruim, sem comparação. Referência pode mudar tudo, já dizia aquele velhinho doido com teorias sãs sobre relatividade.E que apesar de ser possível ver carros fantásticos nos primeiros metros rodados, tempo atrás do volante é necessário para que se entenda de verdade um carro. O que parecia ruim pode se mostrar apenas diferente, e quem sabe até melhor no fim. E algo que já era legal nos primeiros metros pode facilmente se tornar sublime.
Se alguém se voluntariar a provar esta teoria, é só arrumar para mim um 911 arrefecido a ar. Pouca coisa, não mais de 10 aninhos rodando com ele devem ser mais que suficientes para provar tudo bem provadinho, conclusivamente. Podem ficar tranquilos!
MAO