Depois de ter concluído a redação e de ter publicado a Parte 1 e Parte 2 da matéria A Grande Festa de 60 Anos do Fusca, fui encontrando algumas coincidências, e agora as coloco para a apreciação do leitor ou leitora. São coisas que aconteceram em torno de uma famosa brochura de propaganda de um esquema popular de vendas do KdF-Wagen, o carro KdF, através de uma poupança semanal.
A capa e a quarta capa desta brochura podem ser vistas na imagem de abertura desta matéria. O título da brochura está escrito em alemão usando o alfabeto gótico, que eu já apresentei na matéria A parte elétrica no projeto do carro KdF .
Esta brochura é um marco na trajetória do Fusca por ser uma peça de propaganda elaborada pelo governo alemão para a divulgação do veículo que deveria mudar a posição da Alemanha no contexto mundial da motorização de sua população. Nesta matéria vamos tratar do mote das coincidências, mas este material certamente merece uma atenção especial em uma matéria futura.
O pessoal da Volkswagen, que em 1995 preparou o evento que comemorou os 60 anos do Fusca, além de ter feito uma homenagem a datas e pessoas que colaboraram no projeto do Fusca, usou a inspiração desta importante brochura.
Como vemos comparando a quarta capa desta brochura com o convite para o evento. Na capa do convite aparece um desenho que, na verdade, é uma versão atualizada do desenho da quarta capa da brochura de divulgação da caderneta de poupança do KdF:
A outra “coincidência” também ligada ao Großglockner, a Ferdinand Porsche e seu filho Ferry e à brochura, liga tudo e mais um pouco. Sem esquecer que o poderoso Robert Ley, o responsável pela Frente de Trabalho Alemã, estava por trás do esquema da brochura. Pai e filho toparam participar da divulgação do KdF e o fizeram usando um dos aspectos muito fortes da trajetória de Ferdinand Porsche, que foram os vitoriosos projetos de carros de corrida.
Ambos participaram da subida de montanha na Estrada Alpina do Großglockner no dia 28 de agosto de 1938, uma prova de 12,5 quilômetros com 92 curvas e 14 cotovelos que atinge a altitude de 2.504 metros, vencendo a diferença de altitude de 1.232 metros. Para se ter uma comparação com o que muitos de nós conhecemos, lembro que o Caminho do Mar, ou Estrada Velha para Santos, tem 13 quilômetros de extensão e vence uma diferença de altitude de 743 metros! Acho que isto demonstra como a subida do Großglockner é desafiadora.
Eu andei muito pela Estrada Velha para Santos e posso dizer que quando era permitido trafegar no sentido São Paulo, muito carro ficava pelo caminho, menos os Fuscas.
Para uma ideia da diferença de severidade entre a Estrada Alpina do Großglockner e a Estrada Velha de Santos, as gradientes são 9,8% e 5,7%, respectivamente.
Um KdF azul participou com piloto e copiloto e sobre isto, segundo o livro “Der Käfer – Der ungewöhliche Weg eines ungewöhlichen Automobils” (O Fusca – O caminho incomum de um automóvel extraordinário) de Arthur Railton, Ferry Porsche escreveu: “Conduzimos o protótipo Volkswagen original e atingimos a velocidade média de 36 km/h. Quando se compara este resultado de um carro pequeno de série, absolutamente não preparado, com a velocidade média de 65 km/h de carros com motores que eram vinte e seis vezes mais potentes, o resultado não representava uma má performance de modo algum. O público rapidamente apreciou isso e nós geramos muito entusiasmo pelos motores de 1 litro. Era exatamente o que tínhamos em mente fazer”.
Aqui surge, novamente, a questão de se foi por coincidência que os resultados desta competição acabaram por fazer parte de um dos infográficos da brochura na seção que trata de características de condução, que aparece na sua página 23. Se bem que os dados de velocidade média divergem daqueles do livro de Arthur Railton — talvez resultado de uma correção segundo a planilha oficial de resultados — mas isso não altera o contexto do que estamos comentando.
Mas, ainda segundo o livro de Arthur Railton, alguma controvérsia teria sido levantada sobre a natureza “absolutamente não preparada” do carro por parte de pessoas conhecedoras do interesse de Porsche em corridas e a sua preparação cuidadosamente detalhada de qualquer carro envolvido em uma competição, não importando o seu tamanho. A participação, em caráter de demonstração, naquela subida de montanha na Estrada Alpina do Großglockner, certamente foi um evento importante, pois a reputação de Porsche nos círculos automobilísticos alemães dependia de como o novo carro se comportaria na longa e sinuosa estrada até o cume da montanha.
O desempenho do carro não foi mau, como Porsche havia mencionado, e os relatórios de imprensa alegraram a Hitler, que era grato por tudo o que Porsche fez. Seus carros de corrida trouxeram para a Alemanha uma reputação internacional, e este pequeno carro parecia bastante adequado para desbancar o “americano” Opel do lugar de carro preferido pelos alemães.
Deve ser lembrado que o carro de corrida mencionado era o Auto Union P-Wagen Tipo C, cujo motor central-traseiro V-16 de 5 litros era superalimentado por compressor, ao passo que o motor de 985 cm³ do Fusca era de aspiração natural. É mais do que sabido o efeito da altitude sobre a potência dos motores sem superalimentação; imagine-se a 2.504 metros!
Tão logo os primeiros carros surgiram em 1938 muitos deles foram conduzidos para a Estrada Alpina do Großglockner para “teste particulares”, como pode ser visto na foto do livro Volkswagen – Militärfahrzeuge 1938-1948 KdF-Wagen, Kübelwagen und Schwimmwagen im Einsatz de Hans-Georg Mayer-Stein (Volkswagen – Veículos Militares 1938-1948 KdF, Kübelwagen e Schwimmwagen em ação):
A observação cuidadosa desta foto mostra exemplos dos veículos que existiam naquela época e que seriam os carros e motos (um meio de transporte muito popular na época e que cobria a lacuna da falta de carros populares) a serem batidos pelo Fusca. Foi exatamente neste mirante que foi feita uma exposição no contexto das comemorações dos 60 anos do Fusca.
Que fim levou o dinheiro da poupança para a compra de KdF’s pelo povo alemão?
O plano de poupança para a compra de KdF’s foi lançado por Robert Ley em agosto de 1939. Lembrando que ele era responsável pela Frente de Trabalho Alemã (DAF-Deutsche Arbeitsfront), e também pelos custos de desenvolvimento do Fusca e pela construção da fábrica (que naquele momento estava parada, pois os recursos materiais e humanos foram desviados para a construção da linha de defesa na fronteira francesa – Westwall).
Este é um assunto muito controverso, mas aqui vão algumas informações. Um total de 336.668 trabalhadores alemães se inscreveu no plano de poupança instituído em 1939, mas, como a Alemanha perdeu a II Guerra Mundial, nenhum dos poupadores chegou a receber o seu carro, cuja fabricação para uso particular começou somente em 1949.
Havia os que acreditavam que o plano era uma fraude deliberada, projetada para arrecadar dinheiro para preparativos de guerra. Não era. O dinheiro foi mantido em uma conta de custódia no banco da DAF em Berlim que, no final da guerra, caiu nas mãos dos russos e foi confiscado como reparação de guerra. Em todo o caso, os Reichsmarks (marcos imperiais, moeda do III Reich) poupados através destas cadernetas, caso tivessem permanecido disponíveis, teriam alcançado pouco valor nos anos do pós-guerra.
O propósito mais provável deste plano de poupança foi o citado por Hitler na cerimônia de lançamento da pedra fundamental da fábrica em 26 de maio de 1938: esgotar o poder de compra dos trabalhadores alemães para que este não pudesse ser usado para a compra de produtos importados.
Compensação dos poupadores no pós-guerra
Após a guerra, o valor de mais de 280 milhões de Reichsmarks adquiridos por cerca de 340 mil pessoas perdeu seu valor. Alguns poupadores tentaram impor suas reivindicações por meios legais a partir de 1948. Uma vez que a Volkswagen nunca esteve de posse destes fundos, que foram, como já vimos, depositados em uma conta bloqueada do banco da DAF, os processos se encerraram em 1961 sob exclusão do direito de uma reivindicação legal, mas com a oferta da Volkswagen de um desconto para os poupadores da caderneta de poupança do KdF. Era um desconto de até DM 600 (equivalente a € 1.330 hoje) para a compra de um Fusca, que representava quase um sexto do seu preço original. Para aqueles que não quisessem ou não pudessem comprar um carro novo foram pagos até DM 100.
No final de 1970, as reclamações de um total de 120.573 requerentes foram liquidadas: uma compensação em dinheiro foi aceita por 67.164 poupadores no volume total de DM 6.276.175, bem como com o desconto no preço de compra, que foi reivindicado por 63.409 poupadores.
Chego à conclusão que nada disto foi coincidência e que a brochura em questão foi reverenciada por sua importância na festa dos 60 anos do Fusca, fechando o cenário histórico que foi tão cuidadosamente preparado para esta importantíssima festa.
Por outro lado, atendendo aos planos de Robert Ley, Porsche e seu filho Ferry fizeram a parte deles no contexto da preparação de argumentação para a venda das cadernetas de poupança do KdF, inclusive com a participação nesta subida de montanha.
Encerro esta matéria com uma curiosidade que demonstra a pressão que se tinha para obter adesões nesta caderneta de poupança. Enquanto que os poupadores adultos tinham que se comprometer a poupar cinco Reichsmarks por semana — que eram registrados colando selos deste valor na caderneta, Robert Ley logo introduziu uma flexibilização para crianças, que passaram a poder participar, mas com um selo por mês. Assim, passados os 15 anos de poupança, quando eles tivessem terminado de pagar os irreais 990 Reichsmarks, já estariam em idade de conduzir seus “flamantes” KdFs. Já os adultos teriam que pagar por aproximadamente 4 anos, tempo suficiente para a conclusão da fábrica, do ponto de vista de 1939, só que não! A guerra veio a destroçar todo este planejamento.
Este foi mais um capítulo desta incrível saga do Fusca.
AG