Retomando a apresentação de causos registrados em meu Livro II: “EU AMO FUSCA II – Uma coletânea de causos de felizes proprietários de Fusca”, vamos reproduzir aqui o emocionante e muito bem escrito causo da Gláucia Romualda Rodrigues com o Fusca 1970, o “Possante”.
É MENINA!
Por Gláucia Romualda Rodrigues
Puxando pela memória, o ano de nosso Fusca deveria ser 1970, a cor vermelho-vinho, lindo, motor turbinado, só para correr mais um pouquinho, chassi rebaixado, rodas de magnésio, rádio e toca-fitas “Roadstar” e carinhosamente chamado de “Possante”.
E era mesmo! Viagem marcada, bagagem só no porta-malas. Nada no teto. Para não perder a estabilidade nas curvas. E o destino? Buritizeiro — era só atravessar a ponte sobre Rio São Francisco, em Pirapora, rodar mais uns trinta quilômetros. Estrada de terra. De terra? É.… De terra!!! De pedras…. De buracos… Sertão de Minas Gerais. Veredas.
Um rancho cinematográfico. Desses que víamos em filmes de faroeste. Ao amanhecer, surpresa total. Uma paisagem absolutamente maravilhosa! Depois de afastar todos os perigos do ambiente, vi nosso Possante bem às margens de um lindo e caudaloso rio de águas claras, com seus olhos de luz virados para os meus, avisando que lá habitavam: Pintados, Curimatãs, Traíras e até Dourados. Enormes… se fosse dia de sorte.
Ao desviar os olhos para a margem direita, deparo com um casebre de paredes de pau e barro, porta só até a metade do vão, janelas de bambu, e telhado de sapé.
Bem perto do Rio, amarrada com uma corda num toco de madeira, uma canoa, onde assentada estava Otacília, com uma varinha de pescar, e um puçá, cheio de peixes, alimento diário de seus seis filhos e mais o sétimo naquela barriga de nove meses.
Sim, era ela a sertaneja, o Possante do sertão. Fazer o quê, o Zé da Pinda tinha ido mais longe, embrenhando mata adentro, sei lá para quê? Buscar algumas providências a mais para a boa hora da chegada do sétimo.
No meio do dia resolvi invadir a intimidade daquelas pessoas de pele marcada e corações macios. Ô de casa? Posso entrar? As crianças encostadas na parede, Zé da Pinda na beirada do fogão, fervendo as folhas trazidas da mata, eucalipto, e outras mais. Dona Nini, tecendo um fio enorme de algodão puro, também da mata.
Era para amarrar o umbigo. No fundo da choupana agarrada em uma tora de madeira que sustentava uma parede, mãos para cima, deparei com os olhos de Otacília, fazendo força e gemendo de dor. Dor de parto, claro.
Ofereci ajuda para levá-la até Pirapora. Lá tinha mais recursos. Seis partos e nunca tinha precisado de ajuda! Danado esse menino! Difícil de nascer assim, nunca vi!
Voltei para o Rancho, desejando uma boa hora, e se precisasse eu levaria. No “Possante”, claro.
Na caída da noite, bem na hora do Anjo, fui chamada. Eu no volante, Zé no banco de trás, com um saco branco cheio de apetrechos, e Otacília ao lado direito de Zé, e no lugar do banco do passageiro estiquei um colchão pequeno para maior conforto da futura mamãe.
Meus companheiros tinham ido aproveitar, rio abaixo ou acima, o melhor momento da pescaria. Meio temerosa fui dirigindo estrada a fora, lembrando das rodas de magnésio, do chassi rebaixado, juntamente com os buracos, as pedras, o cheiro de sangue nos bancos, as broncas do marido, do luxo que era aquele 1300 para nós, principalmente para ele, o marido, e embalada pelo som de gemidos e de frases angustiadas de corre… corre… para… para… para… corre… corre…
PARA!!! E um ronco de água, parecendo que o caudaloso São Francisco havia invadido o Possante, logo após, um choro aflito de alguém chegando ao mundo.
Linda menina! Zé abre o tal saco branco e de lá tira uma tesoura, os fios de algodão que Dona Nini havia tecido, pede para eu amarrar o cordão umbilical e ele muito experiente corta. Carinhosamente beija aquela mulher que lhe dera o sétimo filho e diz para ela ficar bem, pois ele estava muito feliz de ser mais uma menina.
Era mesmo o que eles queriam! Conforme conversa de outro dia atrás! Colocou a criança no meu colo enquanto ajeitava Otacília para a viagem de volta. Pegou novamente o saco branco e de lá tirou uns três ou quatro foguetes, que orgulhoso soltou para avisar aos amigos e a quem interessasse que chegou Gabriela.
Meu olhar acompanhou as luzes dos fogos naquela imensa escuridão do sertão e confundindo com as estrelas encheram-se de lágrimas. De emoção. De alegria. De cumplicidade. O sertanejo é mesmo um forte. Um Possante!
Estes causos registram momentos que talvez alguns de nossos leitores e leitoras tenham vivenciado, visto, ou souberam que ocorreu com amigos próximos. Sei de muita gente cuja mãe foi de Fusca para a maternidade e depois voltou para casa num Fusca com o recém-nascido no colo, a caminho de se transformar num Fuscamaníaco. E, olhem só, há gente que passou por esta experiência e que, anos depois, levou sua esposa para ter seus filhos no mesmo Fusca, como foi o caso do amigo Luís Augusto Dias Malta, cujo causo “Irmão mais velho” foi registrado aqui em nossa coluna “Falando de Fusca e Afins”.
Todos estes causos são muito valiosos para a manutenção da história do relacionamento entre “Homens e Fuscas” e eu reitero aqui o convite para que você, caso tiver um para contar, nos envie o seu causo para a nossa análise e eventual publicação aqui na coluna e, quem sabe, depois em mais um livro de causos.
AG