Negócios não são um toma lá, dá cá. Isto é coisa de supermercado, onde não conquista o cliente exceto por proximidade. Negócios têm rito, ritmo, cerimonial próprios e sofrem grande influência étnica. Russos e alemães são duros de negociação, sem firulas, excessivamente objetivos. Árabes não se submetem a prazos — talvez por isto todos eles cheguem uma hora após o compromisso marcado, como hipotético horário de inverno —, não deixam coisa irreal, como o imensurável, insosso e inodoro tempo ser definidor. Têm conversa longa, às vezes em tema nada a ver com o objeto do negócio, muitos sorrisos, muitos elogios e, sempre presente, discurso da falta de meios. Palácio de árabe é apresentado como choupana. E estão sempre de caixa baixa. Nunca, em hipótese alguma, para reduzir o valor, desmerecem o bem à venda. Ao contrário, se autodesvalorizam dizendo não estar à altura de alcançar o objeto do entendimento, cuja compra apenas ocorrerá se o vendedor for generoso, justificando ser esta a fama e de ter construído sua fortuna sobre tal qualidade. Negócios são interação entre pessoas, exercício de argumentação, firulas, troca de experiências, aprendizado, hábil esgrimir de propostas e negaceios, ampliação do rol de conhecidos.
No meu caso, demorei perceber o verdadeiro bailado o ato de comprar ou vender exercitado pelos meus tios e pelo meu irmão, com concentrado DNA fenício, verdadeira dança para agradar o oponente comprador ou vendedor. Ao final, seguindo a filosofia árabe, terão feito bom negócio, gerando à outra parte a clara impressão de ter sido vitoriosa — e voltará para novos negócios. Como observei e sintetizo, em negócio com árabes, se você se sentiu vencedor é porque, no máximo, empatou.
Bailado
O cenário: entusiasmo e comedimento. Estava em meio à construção residencial de área e custos muito superiores às minhas necessidades e capacidade de faturamento, mas era o sonho/desafio, surdo e mudo às dificuldades, mostrando-se instigação prazerosa quando vira realidade.
Pena o fato de a realidade, em tempos idos e tristes da economia desgovernada, confirmava que os lençóis maranhenses protegem a natureza da República do Maranhão, mas não do estado brasileiro. Assim, no varejo da vida estava num impasse: não podia parar a obra pois não tinha resíduo bancário para honrar as verbas trabalhistas para a tropa empregada, e havia a imposição de gerar recursos semanais para o pagamento, em tempo no qual minha clientela de advogado, embora poderosa, sentia o drama do desvario econômico, e na melhor das hipóteses negociava honorários e seu pagamento. Era um desafio diário.
Shaitan — o demônio em árabe —, resolveu dar uma ajuda e, em descansada manhã do domingo brasiliense, levei os jornais para lê-los à beira da piscina — um olho nos meninos, outro nos textos. Neste vai-e-volta cheguei ao caderno de classificados do saudoso Jornal do Brasil, e na rubrica Outras Marcas, onde se listavam os então poucos importados, dei de cara com anúncio logo ao início da seção: Alfa Romeo 2000, GTV, 1974, ar-condicionado, rodas Cromodora em liga leve, estofamento de couro, baixa quilometragem, ótimo estado. Fiz um círculo ao anúncio, dobrei o JB, passei a outro jornal, repreendi o Drax, dobermann sem noção de hierarquia, comendo minhas amoras diretamente no pé, esqueci o anúncio. O interesse era a síntese das minhas desnecessidades, uma agressão ao bom senso.
Na sexta-feira seguinte teria encontro com cliente no Rio de Janeiro e, à véspera, preparando a pasta com papéis, dei de cara com o classificado do JB, e o anúncio em explícito oferecimento. Coisas do Shaitan, concluí, passando filminho pela memória: invejável desenho de um recém-formado Giorgetto Giugiaro; construção pela Bertone; invejável comportamento dinâmico. Sem entusiasmo ocioso, uma obra de arte em três dimensões — e com a vantagem de andar bem e prazerosamente.
Pelo sim, pelo não, e sem atinar com o bom senso, resolvi chamar. Afinal, se não tivesse vendido o carro, seria uma declaração de desinteresse do mercado, apesar do preço aparentemente justo. Na prática teria margem inicial para pedir desconto. Liguei, passei por duas secretárias antes de chegar ao dono, consultor jurídico de uma estatal, sujeito aprazível, como soem ser os advogados quando querem ser aprazíveis. Apresentamo-nos e, pelo sobrenome dele seria descendente de judeu marroquino. Tocou-me um alarme: judeu é raça merecedora do maior respeito para negócios ante sua sólida ligação com dinheiros; e marroquino. Quantas gerações regateando sobre larga margem de lucro nos mercados, os souks, vendendo de tudo, incluindo tapetes, temperos, joias. Isto vai ser um exercício, pensei. Já perdido o freio da razão, esquecido do drama semanal para reunir recursos para pagar os compromissos da obra. Estava provocado atavicamente, mais interessado na discussão do preço. Imaginando “meu desafiante” com idêntico porém antagônico pensar, fazer negócios com um pretensioso descendente de árabe ligando da distante Capital Federal.
Declarei satisfação pelas excelentes condições do anúncio, pedi confirmá-las, disse-me interessado e questionei se poderia contar com alguma flexibilidade. Ok, disse protocolarmente. Pedi a ele para pensar num valor líquido menor, para fechar negócio, lembrando os custos para ir ao Rio e uma diária profissional a ser consumida no dia seguinte à visita ao Alfa. É regra válida e não escrita, tudo pode ter pelo menos 15% de desconto. Quando você consegue tal redução não faz a menor vantagem, apenas alinha o preço com a realidade. Satisfação, reconhecimento à capacidade argumentativa, negocial, começam quando o percentual obtido é maior.
Pleiteava não me lembro quanto, ou em que moeda, mas fez desconto de 10%. Expliquei não fechar o negócio sem ter o prazer de conhecê-lo, tomar um café juntos, ver o carro. Separei as notas da minha reserva para casos extremos — deduzi 10%.
Dia seguinte, após reunião exitosa com o não mencionado cliente carioca, liguei para ajustar horário e local. O GTV correspondia à descrição, sem acidentes, alinhada, manutenção em conhecida oficina especializada. Carro aparentemente cuidado. Pequena volta incluindo o Aterro do Flamengo, dei-me por satisfeito, apesar do motor não se alegrar após as 4.000 rpm, como usual nos Alfa.
Continuei o bailado indicando pequena imprecisão – o estofamento não era em couro, mas em plástico, e ele desculpou-se pelo engano e argumentou, caso eu tivesse apreço pela originalidade, era o revestimento de fábrica; ponderei a necessidade de onerosa lavagem para remover resíduos de salinidade; lamentei morar longe, um ônus a agregar-se ao valor pedido, tanto para vir ver o automóvel quanto para transportá-lo. O preço baixou um pouquinho. Perguntei se fazia em parcelas para atender à minha limitada capacidade de pagamento. Lamentou, mas disse não poder atender. Chegamos a um impasse, sorrisos sem graça, tipo o-negócio-pegou-por-pequeno-detalhe-e-não-vou-comprar. Daí a uns minutos sugeri, ligaria ao meu gerente de banco fazendo um empréstimo a fim de quitar à vista, mas deduzindo o custo dos juros. Curiosamente concordou. O preço descia, perigosamente, insuflando a falta de noção.
Tentei um arremate final, apelando ao que os advogados chamam de Ultima Ratio Regum, latinório fundido no cano dos canhões do rei francês Luiz XIV indicando ser o último argumento do Rei: deduzi mentalmente uns 7% e propus pagar em notas ao vivo e a cores, nada de cheque, ordem de pagamento. Numericamente o valor oferecido era uns 22% abaixo do nível inicial da conversa. Simpático vendedor deu pouco perceptível travada, mas fechou o negócio.
Lição
Comemorava internamente, processando a desnecessária compra como um sucesso e, aí, surpreendentemente, contra o meu perfil, cometi o erro primário, fulcral, basilar num negócio: saquei do bolso interno do paletó o maço de notas contendo a primeira importância falada e separei o correspondente ao total dos descontos, entregando-lhe o valor líquido.
Educado, calmo, mas com desaparecida cordialidade, o vendedor disse honrar a venda, porque era homem de palavra. E ironicamente delicado reduziu-me a nível inferior ao de bunda de sapo sentado, fazendo um apelo como colega para não repetir o ato da subtração com ninguém. E foi curto e peremptório: não combinava com o homem de boa aparência, afável, relógio — Rolex para lembrar a primeira boa causa ganha — e gravata caros — matou, com precisão, ser Hermés —, separar o valor do desconto, à vista do vendedor. Era uma declaração ofensiva da vitória, deselegante, indelicada, anticomercial.
O ânimo pela vitória foi-se e não havia conserto. Cumpriu o prometido, preencheu os documentos e entregou o Alfa numa revenda para a cegonha transportá-lo.
Shaitan é um bom sacana. O carro vingou o vendedor. Após super lavado, polido, substituídos todos os líquidos, regulado em revenda Alfa, não andava como um Alfa. Ocorreu-me pedir ver a folga das válvulas — estava ok —, e medida extrema, insólita, inusual, aferir o perfil da angulação dos excêntricos dos comandos: o erro estava ali, era magra e baixa, aparentemente erro de fábrica, pois não existiam sinais de desgaste.
Nunca o utilizei com alegria, e certo dia um colecionador ofereceu-me trocá-lo por um VW Brasília quase zero km, ex-embaixada. Fi-lo. E em seguida paguei o fim da conta do marceneiro com tal utilitário.
Todas as experiências na vida devem gerar aprendizado. Do caso do Alfa GTV restauram-me duas lições: 1 – não há vitória sem prazer; 2 – se Deus é brasileiro, o Diabo será marroquino!
RN
(Um Alfista)