Faz um bom tempo, anos, que o Bob falou aqui no AE de um livro sobre o Fusca, “Beetle – A Most Unlikely Story” (Fusca – uma história bem improvável), escrita por Arthur Railton, que foi chefe de Relações Corporativas da Volkswagen of America. Disse que dos livros que ele conhece sobre o assunto, é disparado o melhor. Primeiro pelo autor, jornalista, que foi durante anos editor de Veículos da afamada revista americana Popular Mechanics, que foi editada aqui no Brasil pela Efecê Editora (Autoesporte, Casa & Jardim) como Mecânica Popular.
Segundo, pela atividade de Arthur Railton na filial americana da Volkswagen, o que lhe possibilitou ir fundo nos assuntos e na história da fabricante, com livre acesso ao seu arquivo histórico. O livro é de 1985 e foi traduzido para o alemão. O foco deste livro é o texto, se bem que ele também tem algumas ilustrações concentradas em blocos de páginas com imagens.
Arthur Railton, canadense, faleceu em 2011 aos 95 anos. Seu livro é muito rico em informação e ainda pode ser encontrado na Amazon. Vale a pena ler. Ele também escreveu outros livros sobre uma diversidade de assuntos, bem como trabalhou em jornais.
O livro foi-lhe oferecido por Philipp Schmidt, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento (isto é, Engenharia) da VW do Brasil quando o Bob trabalhou lá de 1984 a 1988. Hoje Philipp Schmidt aproveita sua aposentadoria com sua esposa na residência do casal em Heilbron, Alemanha. Há poucos dias completou 87 anos.
Para quem não se lembra, o Gol foi criado durante sua gestão, ele é o “pai” do Gol.
Por sorte, ganhei do Bob a versão em alemão (Der Käfer – Der ungewöhnliche Weg eines ungewöhnlichen Automobils – O Besouro – O caminho incomum de um carro incomum) que ele havia recebido da viúva de Mathias Petrich, que foi durante anos gerente de imprensa da VW do Brasil, inclusive no tempo do Bob lá, e eram muito amigos.
De comum-acordo com a direção do AE, quero compartilhar algumas partes do livro com o leitor ou leitora, pois tenho certeza de que serão muito apreciadas.
Começo apresentando a introdução pelo autor, que dá um vasto panorama do que Arthur Railton abordou.
Nota: Apesar de ser tradução do alemão, o optei por manter o nome Beetle em vez de Käfer por ser um nome mais conhecido.
Boa leitura!
Der Käfer – Der ungewöhnliche Weg eines ungewöhnlichen Automobils
Einleitung (Introdução)
É mesmo uma história improvável. Raramente, se nunca, tanto veio de algo que parecia tão pequeno.
Uma lenda foi criada, uma indústria, abalada, uma cidade, construída, uma nação derrotada, revivida. Tudo resultado de um carro que nada tinha de atraente que as pessoas chamavam de Beetle (N.d.T: besouro, um inseto), nome que nenhum especialista em marketing ousaria propor.
Para quem teve um e quem não, foi um fenômeno que não podia ser ignorado. Ou se o amava, ou se o odiava — poucos ficariam indiferentes.
Muitos dos que nunca dirigiram um Beetle achavam que era um lance de momento, resultado de forte campanha publicitária e promoção. Outros ficaram desapontados com ele. Esperando muito, acreditando demais na lenda, descobriram que ele não era nenhum tapete mágico, nenhuma máquina milagrosa.
Mas para muitos mais, milhões mais, o Beetle era mesmo algo especial. Algo que lhes dava alegria, satisfazia seus egos, renovava sua crença na produção em massa e que dizia algo deles mesmos parados na garagem.
Ao ser tão especial para tantos, ele desenvolveu uma biblioteca virtual de Beetlemania. Seu formato imediatamente reconhecido o fez parecer uma praga, mesmo que na realidade, nos seus momentos de maior sucesso apenas um em cada 25 carros nas ruas fosse um Beetle. Ele se tornou parte do nosso idioma, o antônimo de Cadillac, o sinônimo do sensato, do útil.
Nas piadas, desenhos animados, filmes e livros, era alvo de risadas, ridicularizado, glorificado e humanizado. Milhares de páginas têm sido escritas sobre sua história, sua engenharia e seu sucesso de vendas.
Com tanto já escrito sobre o Beetle, por que, então, este livro? Outros autores já contaram a complexa história deste carro adorável-detestável, mas nenhum tentou explicar sua exclusiva personalidade (se tal palavra humanizadora pode ser usada). Estas páginas tratarão do Beetle como um fenômeno social — um vira-lata feliz adorável, de classe, numa sociedade de automóveis com pedigree. É de se esperar que com esse livro leve a alguma reflexão de como e por que este carro, feito para ser nada mais que útil, prático, se tornou tão mais do que isso.
Por cerca de um quarto de século o autor estudou o fenômeno Beetle. Nos primeiros anos, quando estudava jornalismo, olhando-o de fora. Depois, vi seu sucesso e na verdade compartilhei-o, de dentro, como executivo da Volkswagen of America. Como vice-presidente de Relações Corporativas, ajudei a promulgar a lenda do Beetle e mesmo criar um pouco dela. Com os anos, devo ter gasto muito tempo como qualquer pessoa tentando entender a mensagem do Beetle que a tantos atingiu.
O Beetle teve seu maior sucesso nos Estados Unidos durante os anos gloriosos dos “Carros de Sonho”, como um escritor se referiu àqueles atraentes carros em moda dos anos 1950 e 1960. Durante os frenéticos dias de carros grandes, potentes, com traseira rabo de peixe e repleto de cromados, este anacronismo, este simples e subpotenciado besouro acabou sendo o mais memorável carro de todos.
Como isso aconteceu? Ele só existia em modelo único; não tinha estilistas; não tinha propaganda nos seus primeiros anos. Para somar à sua improbabilidade, sua fábrica nem dono tinha — ele era um órfão de guerra!
Ele tinha outras carências. Havia um quê de feiura sobre ele — sua história ligada ao nacional-socialismo bem como no seu aspecto em si. Era antigo (ao ponto de ter estribos!). Era ruidoso quando os outros carros eram silenciosos (a Rolls-Royce tinha até um anúncio que dizia que a 60 milhas por hora, 100 km/h, o único ruído era o tique-taque do relógio). Ele era não convencional, nada que encorajasse confiança num produto desconhecido tinha. Seu “fraco” motor era arrefecido a ar e, difícil de acreditar, colocado onde devia ser o porta-malas.
Nas coisas pequenas, nas amenidades, tinha pouco a oferecer. Durante muitos anos o limpador de para-brisa era tido como muito pequeno e lento demais; não tinha medidor de combustível; sua buzina era um “lamento”; seu espaço para bagagem era “insuficiente”; e seu aquecedor de cabine — bem, quanto menos se falasse dele, melhor.
Quando chegou ao mercado no final dos anos 40, já era “velho”. Projetado no começo dos anos 1930 como transporte básico para o trabalhador alemão, foi pensado para passá-lo da bicicleta para o automóvel, não de um carro enorme para um menor, como acabaria acontecendo nos EUA. Por duas vezes nos anos 1930 sua produção foi tentada, ambas por fabricantes de motocicletas. As duas iniciativas foram abortadas depois que protótipos foram construídos e testados. Com dois inícios fracassados, o projeto foi salvo de um esquecimento quase certo por um ditador fanático que viu num carro de baixo preço uma forte arma política num país onde as massas ainda estavam no estágio da bicicleta.
Mesmo assim, mesmo o todo-poderoso ditador estava impedido de ver seu desejo de colocar essa máquina, que parecia estar sob um mau signo, em produção. Apenas poucos meses após uma terceira leva de protótipos ser construída e testada, o projeto parou, colocado de lado, quando o mundo começou sua mais destrutiva guerra.
Anos mais tarde, guerra terminada, a fábrica inacabada virtualmente em ruínas, o furioso ditador tendo cometido suicídio, o projetista preso em outro país, sua equipe espalhada pela Alemanha e ansiosa para esquecer o passado, a sucessão de improbabilidades continuou. O Volkswagen, projetado para uma década antes, para uma geração anterior, foi prática e acidentalmente ressuscitado pela Forças Armadas Britânicas, cujo objetivo era destruir tudo o que o Beetle representava.
Uma história mais improvável seria difícil imaginar.
Como foi que esta Fênix por acidente se tornou o automóvel mais onipresente do mundo, com 20 milhões produzidos, ultrapassando a marca de 15 milhões do lendário Ford modelo T?
Esse é o quebra-cabeça que tentaremos resolver.
Seu sucesso foi muito maior do que seus números de produção. Nenhum outro carro na História teve tanto impacto social. Tornou-se parte do nosso folclore. Tinha sua própria mitologia. Livros foram escritos sobre ele, revistas devotaram edições e mais edições a ele, filmes o tornaram uma estrela antropomórfica com atores desempenhando papéis coadjuvantes. Foi alvo de centenas de piadas e se tornou o símbolo de David contra Golias dos cartunistas, do rebelde contra o sistema. Era, como o autor o descreveu no final dos anos 1950, “mais do que um carro, uma religião.”
Parecia não se poder ficar longe destas pequenas e incômodas máquinas. Elas se enfiavam e saíam da frente no tráfego. Entravam rápido nas vagas de estacionamento que se queria ocupar. Ultrapassam-nos velozmente na neve, a grelha metálica do arrefecimento a ar na traseira parecendo rir da nossa incapacidade de fazer o mesmo. Estavam em toda parte, pois eram facilmente reconhecidos. Ficou 33 anos em produção sem praticamente nenhuma mudança externa, se destacaram no mix do trânsito pela sua uniformidade.
E então, justamente quando nos conformamos com o Beetle, como com a morte e os impostos, alguma coisa para sempre, a fábrica anunciou que não o produziria mais.
O que matou o Beetle? Muitos tentaram tirá-lo do mercado. Durante anos os concorrentes lançaram novos modelos que “brecariam o Beetle”. Fracassaram todos. Defensores da segurança, liderados pelo arquicrítico Ralph Nader, inebriado pela sua vitória sobre a General Motors, chicoteou pesado com acusações irresponsáveis o “projeto perigoso” do Beetle. Até o governo dos Estados Unidos, com suas normas de poluição e de segurança feitas sob medida para o automóvel “normal”, pareceu estar acenando a morte para todo carro fora do convencional de formato fixo e inviolável, de motor traseiro arrefecido a ar.
Mesmo assim o Beetle, graças o seu capacitado time de engenharia, sobreviveu muitos anos, para grande surpresa de Detroit. Mas nada é para sempre, e quando o fim do Beetle foi anunciado, muitos dos que o ridicularizaram durante anos passaram a elogiá-lo em homenagens. Até os âncoras de televisão, os sabe-tudo de eventos do momento, deixaram sua marca na história ao falarem no seu passamento.
Centenas de colunas e editoriais de adeus tentaram explicar a atração que esta máquina única exercia sobre o público. A gama de explicações era tão variada quanto os Beetles eram idênticos.
Um foi místico: “O Beetle levou a um senso de caráter único para uma máquina que não tinha a intimidação de poder dos carros americanos e substituiu algo típico do contentamento andrógino.”
Outro foi menos confuso: “ele nos ensinou que maior nem sempre é melhor, que menos pode ser mais. E provou, como sua velha empregada em casa sempre lhe disse, que beleza é apenas pele.”
Talvez cada um de nós tenha sua própria explicação de por que o Beetle se tornou o que ele é. Este livro descreverá os muitos elementos de seu projeto, sua história e seu caráter, que eram parte de sua atratividade. É uma complexa teia que combina elementos de ódio e afeto, violência e destruição, depressão e prosperidade, guerra e paz.
Tecidas, essas linhas fazem a história do Beetle uma das mais das mais emocionantes histórias de sucesso do nosso tempo.
Este é um livro que que ocupa um lugar de destaque em minha biblioteca de livros tanto sobre veículos como sobre assuntos ligados à Volkswagen. Tenho que fazer uma nova contagem, pois a última estava por volta dos 60 exemplares. Recentemente recebi um presentão de um grande amigo: um lote de livros que serão integrados a meu acervo. Não é fácil escolher os melhores, mas certamente há uma gradação de qualidade entre eles, entre há livros de ponta, como este e os do Dr. Bernd Wiersch, do Chris Barber, do Robin Fry, e assim por diante. E também existem outros que deixam a desejar, mas estes eu deixo para os caros leitores e leitoras definir.
Certamente teremos assunto para falar de outros livros.
AG
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