Ele trepida, é ruidoso, não tem desempenho lá muito grande, deixa odor desagradável no ar e emite muita fumaça, mas existiu, ao menos como protótipo.
Foi uma tentativa da fábrica em produzir um motor mais econômico para o Fusca, o Tipo 508.
Estamos em 1951, a Alemanha ainda muito baqueada pela Segunda Guerra Mundial. A Guerra da Coreia provocava uma aguda falta de gasolina que refletia na Alemanha, e o diesel era um combustível abundante e barato.
Olhando este cenário, Heinrich Nordhoff, chefe supremo da Volkswagenwerk GmbH, decidiu fazer uma experiência. Para isso contratou a Dr. Ing. h.c. F. Porsche KG, ou simplesmente Porsche KG, para converter o motor VW boxer arrefecido a ar do Fusca para ciclo Diesel, mantendo a aspiração natural. O projeto recebeu a identificação Tipo 508 e foi uma aposta interessante. O objetivo era desenvolver duas unidades para serem testadas num Fusca e numa Kombi. Vamos ver no que isto foi dar.
Foi tomada por base a carcaça tripartida, desenvolvimento recente da Porsche — a do VW era em duas partes, uma contendo o suporte do dínamo — de um motor Porsche 1300 (1.286 cm³). E em 1952, o estágio final do desenvolvimento deste motor de ciclo Diesel, construído em Stuttgart/Zuffenhausen, atingiu condições de pré-série.
Vamos falar do Robert Binder, funcionário da Porsche KG, ele voltará à berlinda mais para o fim desta matéria. Sua primeira tarefa ao ingressar na Porsche KG, em 1951, foi projetar este motor Diesel para o Fusca, por encomenda da Volkswagen, embora ele não fosse especialista nesta tecnologia.
Empresas como a Bosch sempre estavam dispostas ajudar a pequena equipe de três ou quatro homens que trabalhavam no quartel de madeira da Porsche KG, em Gmünd na Áustria, sob o comando do “Papa” Karl Rabe, remanescente da brilhante equipe de engenheiros de Ferdinand Porsche que desenvolveram o Fusca. De qualquer forma, resolver o inesperado era rotina para os jovens da Porsche KG.
Um parêntese. Após os bombardeios aliados em Stuttgart no final de 1944, Ferdinand Porsche mudou sua empresa para a Áustria, para uma antiga serraria na cidade de Gmünd, na região da Caríntia. Até o final da guerra, o escritório de engenharia da Porsche KG trabalhou em projetos militares. A partir de 1946, passou a ser o local de produção de tratores leves, guinchos e turbinas hidráulicas. Em 1948, Ferry Porsche materializou a sua visão do carro esportivo perfeito — o Porsche 356. O primeiro dois-lugares da empresa recebeu o número de chassi 356-001. Foi neste cenário que o motor Diesel para o Fusca foi desenvolvido.
Naquela época Robert Binder também participou de um outro projeto em Gmünd. Tratou-se de um motor Diesel de dois cilindros a quatro tempos, arrefecido a ar, usado posteriormente em tratores Porsche. Mas este motor foi concebido para caber em um Fusca, se necessário. Este motor evoluiu e acabou sendo base para o motor do trator Allgaier Porsche P312, que foi motivo de uma matéria em 3 partes nesta coluna.
Entrementes, Heinrich Nordhoff viajou aos Estados Unidos e voltou convencido de que os americanos jamais iriam dirigir automóveis que trepidavam em marcha-lenta, emitiam muita fumaça, exalavam odor desagradável e que tinham uma potência que era difícil de perceber. Com isto o projeto do Tipo 508 tornou-se outro daqueles muitos projetos da Porsche KG para a Volkswagen que acabaram arquivados.
Antes disso, no entanto, eles haviam colocado um destes motores Diesel num Fusca e outro numa Kombi, veículos que o jovem funcionário da engenharia da Porsche AG na época, Helmuth Bott, que também vai aparecer de novo mais para o fim desta matéria, usava para as tarefas corriqueiras do setor de engenharia. Estes dois veículos de teste percorreram cerca de 25.000 quilômetros cada no uso diário. O uso deles era a maior diversão para seus motoristas ao parar para abastecer ao lado de bombas de diesel e ver o queixo dos frentistas cair.
O consumo de combustível da versão Diesel do Fusca era muito bom. Bott registrava cerca de 12,8 a 17,0 km/l, enquanto um Fusca contemporâneo fazia entre 12,3 a 14,5 km/l. Como esses motores de teste deslocaram 1.290 cm³ (74,5 x 74 mm), a Porsche KG conseguiu extrair 23 cv inicialmente e 25 cv a 3.100 rpm até o final do projeto, com um máximo de 3.300 rpm, a despeito do maior peso de apenas 20 a 25 kg. Tal potência dificilmente era muito animadora, embora fosse a mesma do Fusca 1100 (1.131 cm³).
E quando um passante atentava para o estranho ruído do motor logo perguntava se um dos cilindros havia quebrado; logo vinham os conselhos para ir para a oficina mais próxima —o pessoal da Porsche KG se divertia com tudo isso.
Com um carro nada especial em desempenho, os engenheiros da Porsche KG não acharam explicação sobre o roubo deste Fusca, o único a diesel do mundo, levado de um estacionamento do centro da cidade. Apesar do longo tempo de aquecimento da vela incandescente para dar a partida em temperaturas muito baixas, e da curiosa necessidade de diesel como combustível, o ladrão levou-o até a Suíça antes de abandonar o estranho Fusca.
É igualmente curioso que a história do Tipo 508 nunca tenha se tornado pública. Ao que tudo indica as revistas de automóveis e a espionagem industrial eram tão rudimentares como os escritórios de projeto daquela época. Esta história só apareceu na imprensa depois do que é relatado a seguir.
O renascimento de quem ainda não tinha nascido direito
Mas o destino do desconhecido projeto natimorto, o Tipo 508, teve uma reviravolta em 1981, ano do cinquentenário de fundação da Porsche AG.
Para entender melhor, a razão social da empresa, que inicialmente era Porsche KG (KG – Kommanditgesellschaft – Sociedade por Comandita), mudou para Porsche AG (AG – Aktiengesellschaft – Sociedade Anônima) em 1972.
Vamos reencontrar o Helmuth Bott, mas em 1981, quando ele era o Chefe do Desenvolvimento da Porsche AG e estava procurando no vasto arquivo de projetos do passado algo que servisse para comemorar a data. Ele estava focado, em especial, em projetos que não fossem de competição, pois a ideia era mostrar as múltiplas facetas da empresa.
Curiosamente, a escolha recaiu sobre o motor Diesel para o Fusca, projeto realizado originalmente entre 1951 e 1953, o Tipo 508. Então Bott chamou Robert Binder, que ainda estava na empresa e era o chefe do departamento de projeto de motores na moderna Weissach, e definiu uma dotação de 50.000 marcos alemães da época para recriar o Fusca Diesel. Como vimos, a primeira tarefa de Binder, em 1951, foi exatamente projetar o motor Diesel para a Volkswagen.
Para repetir a tarefa em 1981 foram necessários mais homens e um computador e acabou sendo um projeto bastante complicado. Nenhum relatório de testes tinha sobrevivido e havia bem poucos desenhos. Binder lançou mão amplamente de suas memórias e se apoiou nas habilidades mecânicas de seus homens de desenvolvimento. Os dois motores originais já tinham sido sucateados há muito tempo. Mas, pelo menos, a Bosch encontrou uma bomba de injeção adequada em seu próprio museu e Mahle fundiu alguns pistões com cabeça para chegar à taxa de compressão de 22:1.
A Porsche AG descobriu uma antiga carcaça tripartida numa concessionária, muito conveniente uma vez que a parte inferior como usada no 356 havia sido desenvolvida para o Fusca Diesel também. Isso possibilitou mancais mais robustos. Por outro lado, eles precisavam de cabeçotes com pré-câmara e novas juntas, mas o arrefecimento do Volkswagen provou ser suficiente até para as temperaturas do Diesel.
A Porsche AG colocou seu motor “reencarnado” em um Fusca de sua coleção de idade compatível; restaurando desta maneira o antigo automóvel que agora estava pronto para a comemoração do Jubileu de 50 anos da Porsche AG.
Um repórter que teve a oportunidade de dirigir o Fusca Diesel reencarnado em Nürburgring, durante um evento, comentou que fumaça e barulho eram muito evidentes, se não insuportáveis. Com tudo isto se podia dizer que poucos teriam sido tentados a gastar dinheiro com um rádio com todo aquele barulho arrefecido a ar nas costas. O desempenho estava longe de ser algo do outro mundo. As velocidades em 1ª, 2ª e 3ª eram de 24, 48 e 72 km/h, respectivamente, com uma velocidade máxima de 100 km/h, números que repetiam os do motor 1.131-cm³ a gasolina. A Porsche AG indicava o tempo de 60 segundos para o carro atingir 100 km/h, o que parecia ser bastante realista.
Algumas fotos do Fusca Diesel Reencarnado
Em 9 de setembro de 2008, para comemorar o 150º aniversário de Rudolf Diesel, nascido no dia 18 de março de 1989, a revista AutoBild foi até o Museu da Porsche AG, e pediu para dar uma volta no Fusca Diesel que havia reencarnado em 1981. Desta incursão resultaram fotos do carro abaixo, que foram usadas numa um tanto bizarra homenagem a Rudolf Diesel, pois há milhares de outras aplicações muito bem sucedidas que poderiam ser escolhidas para esta finalidade.
O repórter Dirk Branke andou com o carro, e não perdeu a oportunidade para criticá-lo em grande estilo. Mas não era para ser uma homenagem ao Diesel? Ele começou a sua matéria desta maneira:
Animalescamente barulhento. Extremamente sujo. O Fusca preto chacoalha todo, dá a partida com um barulho estridente, espalha material particulado, cospe e sopra volumosas nuvens de fumaça malcheirosa pelo escapamento. Este comportamento rude não se encaixa de maneira alguma ao lindo Fusca preto. Dele esperávamos o tradicional e conhecido ruído do Fusca, não este barulho todo. Senhores de mais idade, com roupas casuais, se distanciam apressadamente. Apenas um momento atrás, eles passaram com o olhar de experts, mas depois eles deram de ombro como nós. Eles recomendaram, mesmo sem serem solicitados para isto, que o carro fosse levado para a oficina mais próxima. Pois eles conheciam o Fusca muito bem, mas eles nunca ouviram algo parecido antes. Eles nem teriam como conhecer, pois, este carro nunca chegou a existir. Isto à exceção deste exemplar: este Fusca é movimentado por um motor Diesel, naturalmente um boxer arrefecido a ar.
Vamos às fotos de Christian Bittmann que serão apresentadas com a tradução das legendas originais do Dirk Branke:
Nota do autor: na foto seguinte, observe que a lâmpada de indicação da vela incandescente do motor Diesel (flecha vermelha, que acrescentei). Na verdade, o apelido dela é “saleiro” devido à capa cromada com furinhos. Quando essa luz acende indica que a vela incandescente está no ponto máximo e já se pode dar a partida.
Nota do autor: observe na foto seguinte que até a placa do Fusca com motor Tipo 508 original que aparece na foto de entrada desta matéria foi “clonada” nesta reedição. Observe também a nuvem de fumaça que aparece atrás do Fusca.
Nota do autor: lá vou eu contrariar a legenda do Christian Bittmann. Como o carro foi convertido para Diesel, a função do botão de arranque original, indicado pela flecha vermelha, foi cancelada e substituída pelo grande botão de puxar, que certamente é o acionamento manual para engrenar o Bendix na cremalheira do volante do motor, pois parece que este motor Diesel está sem motor de partida com chave magnética. Portanto “não está tudo funcionando”, ao menos o botão de arranque dos tempos que este Fusca tinha um motor a gasolina com arranque automático foi desativado.
Nota do autor: mas, ou este Christian Bittmann não conhece muito de Fusca, ou estava desatento ao redigir a legenda da próxima foto, que estaria certa se o fosse um teto solar de aço que é aberto por uma manivela. O certo é que se trata-se de um teto solar de lona que se abre girando em um quarto de volta o acionamento da trava para abrir e outro quarto de volta para travar na posição desejada. Aliás, que falta de assunto! A matéria era para comemorar sesquicentenário de nascimento de Rudolf Diesel e o camarada fica a falar do teto solar, bananinhas, etc… Mas vamos aproveitar as fotos.
Nota do autor: eu acredito que na legenda seguinte, no que se refere a teste com motor Diesel de dois cilindros, o nosso amigo Christian Bittmann acabou fazendo outra confusão. Na verdade, a Porsche KG tinha um motor Dieselde dois cilindros em linha, arrefecido a ar para tratores “e que caberia num Fusca”, mas esta experiência jamais foi feita.
A matéria da AutoBild foi arrematada com algumas palavras específicas sobre o Rudolf Diesel, como reproduzo abaixo:
Rudolf Diesel nasceu em Paris, filho de pais alemães. Enquanto ainda era estudante na Universidade Técnica de Munique, ele tratou da eficiência de motores a vapor — que, com um rendimento de cerca de dez por cento, era muito ruim. Rudolf Diesel queria fazer melhor, e registrou em 1892 uma patente; cujo título era: “Processo de trabalho e versão para motores de combustão interna.”
Em 1897 surgiu o primeiro motor Diesel totalmente funcional fabricado pela Maschinenfabrik Augsburg – Fábrica de Máquinas de Augsburg (mais tarde MAN), com 18 cv de potência que alcançou a eficiência de 26,2 por cento.
Assim começou uma história de sucesso. Em 1923 ele dirigiu o primeiro caminhão movido a diesel, e em 1936 o primeiro automóvel de passageiros do mundo, o Mercedes-Benz 260 D. O motor Diesel ainda é a máquina térmica com a melhor eficiência, e é possível atingir uma eficiência de mais de 40 por cento.
Mas ele usufruiu muito pouco do triunfo de seu motor Diesel, pois na noite de 29 de setembro de 1913, Rudolf Diesel embarcou num ferry-boat em Antuérpia, na Bélgica, com destino a Harwich, no Reino Unido. O engenheiro alemão, entretanto, jamais chegou à Inglaterra. Sua queda no mar teria sido suicídio, assassinato ou apenas um trágico acidente? Esta pergunta permanece sem resposta.
Mas o motor Boxer Diesel a ar de quatro cilindros era tão ruim mesmo?
Acredito que não houve condições, nem interesse, de desenvolver o projeto do motor Diesel para o Fusca de uma maneira mais apurada, mas não podemos generalizar.
Tanto isto é verdade que já na década de 1930 a empresa alemã Krupp tinha desenvolvido um potente motor boxer Diesel arrefecido a ar. Este motor acionava um caminhão 6×4 para uso militar, que fez um grande sucesso:
Inicialmente, o caminhão L 2 H 43 Protze tinha um motor Krupp M304 de 4 cilindros horizontais e opostos, que entregava 55 cv a 2.500 rpm. Apartir de 1936 surgiu o caminhão L 2 H 143 com o novo motor Krupp M305 de 60 cv. O motor destacou-se pelo baixo consumo de combustível, fazia 4,2 km/l na estrada. Em comparação, seu “rival” Opel Blitz fazia 6,’ km/l. O caminhão Krupp tinha uma transmissão ZF-Aphon de quatro marchas, cardã e diferencial autobloqueante nos dois eixos traseiros. O chassi tinha uma distância ao solo de 225 mm.
Tradução das legendas:
Verbindungsschlauch zwischen Membranblock und Klappenstutzen – Mangueira de conexão entre o bloco de membrana e o bico da aleta
Abstellhebel – Alavanca de parada
Beschleunigerhebel – Alavanca do acelerador
Bosch Einspritzpumpe – Bomba injetora Bosch
Treibstoffleitung zu Düsen – Linha de combustível para os bicos
Spannband zur Lichtmaschine – Cintas de fixação do dínamo
Entlüfter – Respiro
Öleinfüllstutzen und Entlüfter – Bocal de enchimento de óleo e respiro
Ansaugrohr – Coletor de admissão
Glühkerze – Vela incandescente
Luftfilter – Filtro de ar
Öldruckleitung – Linha de pressão de óleo
Lichtmaschine – Dínamo
Anlasser – Motor de partida
Riemen zur Lichtmaschine – Correia do dínamo
Vorkammer mit Einspritzdüse – Pré-câmara com injetor
Ventilhebelgehäuse – Carcaça da alavanca da válvula
Zylinderkopf – Cabeçote
Ölmeßstab – Vareta de medição do nível do óleo
Ölüberdruckventil – Válvula de alívio de pressão de óleo
Ölwanne – Cárter do óleo
Auspuffkrümmer – Curva do escapamento
Zylinderhaube – Cilindro
Schutzdeckel – Tampa de proteção
A história das aplicações de motores boxer em meios de transporte, caminhões e ônibus, é imensa, e aqui eu só quero dar dois exemplos, especificamente com motores boxer Diesel arrefecidos a ar.
Vamos ao exemplo, que é o automóvel Tatra. Em 1949 esta empresa equipou três veículos do tipo T600 — também conhecidos como Tatraplan (em homenagem ao plano bianual do então regime socialista da Checoslováquia) com motores boxer Diesel arrefecidos a ar, sendo que os testes resultaram amplamente positivos. Esta motorização só não entrou em linha por problemas econômicos e administrativos.
O projeto extremamente robusto do motor do T600 levou a um experimento interessante — baseado no motor a gasolina, foi desenvolvido um motor a diesel. Este Diesel tinha uma curva de potência tão plana que quase não necessitava de trocas de marcha durante a condução.
Acho que não podemos esquecer que, dentre as alternativas cogitadas durante o desenvolvimento do Fusca, o motor Diesel também foi uma opção, que acabou sendo descartada devido a seu custo nitidamente maior.
AG
Creditos & Notas
(1) – Porsche Historic Archive
(2) – Site The Golden Bug
(3) – Divulgação Porsche AG
(4) – Christian Bittmann
(5) – Site http://lavellig.forumativo.com
(6) – Site Tatraportal
Agradeço ao André Antônio Dantas pela dica do assunto, que eu aproveitei para, mais uma vez, ir a fundo para escrever esta matéria.
Um agradecimento especial a Tobias Mauler, do Arquivo Histórico da Porsche AG, que em tempo recorde enviou a foto que usei como foto de abertura e o desenho do motor Tipo 508, recebidos na manhã desta segunda-feira ( 14/05/2018), um pouco antes da publicação desta matéria.