Caro leitor ou leitora,
Compartilho uma excelente entrevista concedida por Wolfgang Porsche, acionista majoritário da Porsche SE, que controla o Grupo Volkswagen, à revista alemã Automobilwoche.
Ela é importante em virtude dos fatos deflagrados no dia 18 de setembro de 2015, quando o presidente-executivo do Grupo VW, Martin Winterkorn, admitiu publicamente manipulação dos testes de emissões de óxidos de nitrogênio dos motores Diesel do Grupo. Seguiram-se mudanças no âmbito da fabricante que são abordados nesta entrevista.
E nela há outro tema importante: a Porsche, a família Porsche e o carro Porsche.
Boa leitura!
Bob Sharp
WOLFGANG PORSCHE: A LENDA PRECISA CONTINUAR
Wolfgang Porsche, neto de Ferdinand Porsche, o projetista do Volkswagen (Fusca), e primo do ex-presidente da VW, Ferdinand Piëch, quem ele ajudou a derrubar em uma luta pelo controle da VW, recebeu em Schuettgut, a propriedade da família na Áustria, o jornalista Michael Gerster, da Automobilwoche, uma publicação irmã da Automotive News Europe, para uma rara entrevista. Wolfgang Porsche completou 75 anos no último dia 10.
No encontro, Wolfgang Porsche, filho de Ferry e Dorothea Porsche, porta-voz das influentes famílias Porsche e Piëch que controlam o Grupo Volkswagen, falou sobre a liderança passada e futura da VW, e o futuro da marca Porsche.
Nada de cercas. Nenhuma câmera de vídeo. Apenas um Porsche 911 azul na frente da porta diz algo sobre o morador desta casa de fazenda de 600 anos localizada numa encosta austríaca. A poucos passos de distância, um teleférico leva pessoas ao topo da colina. O tráfego zune na autoestrada abaixo. “Entre, está frio”, disse-me Wolfgang Porsche. O clã da Porsche é proprietário da Schuettgut, em Zell am See, desde 1941. Wolfgang Porsche a adquiriu da família em 2004. Um corredor com painéis de madeira leva a uma confortável sala de estar, passando por chifres de veado e guizos. A governanta serve café e doces caseiros. A casa é o centro da vida de Wolfgang Porsche. Ele passa tempo aqui entre reuniões do conselho de supervisão e compromissos de negócios. Aqui ocorreu a lendária reunião de crise da família em 1972. Ela culminou na retirada da família dos negócios da Porsche. Foi aqui que Ferdinand Piëch fez sua lendária declaração: “Vocês são porcos domésticos. Eu sou o javali.
O que Schuettgut significa para o senhor?
Schuettgut é minha casa. Eu na verdade nasci em Stuttgart, mas nos mudamos pouco depois que nasci. Passei parte da minha infância aqui, brincando de esconde-esconde com meus irmãos e primos nos prados e no riacho. Foi maravilhoso. Quando meu pai estava nos seus últimos dias, ele organizou tudo — exceto o que fazer com a casa. Havia propostas estranhas da família para transformar Schuettgut em uma casa de hóspedes para a família ou uma instalação similar. Eu não suportava pensar nisso. Resolvi comprá-la para que pudesse continuar a ser algo familiar. Eu também sabia o quanto meu pai adorava Schuettgut.
Quando foi a primeira vez em que o senhor teve consciência de que os Porsches são automóveis especiais?
Você não vai acreditar nisso. No começo, eu não tolerava andar de carro. Quando criança, sentado no banco traseiro, eu enjoava nas sinuosas estradas de montanha ao redor de Zell am See. Talvez tenha sido por isso que comecei a dirigir bem cedo. Quando nos mudamos de volta para Stuttgart, meu pai e minha mãe deixavam eu manobrar o nosso Porsche 356 para dentro e para fora do pátio defronte da garagem da nossa propriedade no Caminho Feuerbacher. Mesmo que eu mal conseguisse enxergar por cima do volante, gostei muito de começar a aprender a dirigir.
As pessoas sempre falam sobre a lenda Porsche. Como o senhor definiria isso?
Ah, esse é um mosaico muito complicado. Os Porsches eram carros exclusivos, embora fossem aptos para o uso dia a dia. Essa é uma qualidade que nossos clientes apreciam, junto com outras características. Eles não querem apenas ir de A a B. Eles não adoram esses carros esportivos, eles o vivem e o respiram. Até mesmo os funcionários da Porsche se orgulham de trabalhar para essa empresa. Isso pode ter algo a ver com o fato de que, como família, temos uma certa humildade e consideração mútua dentro da empresa. Junto com os sucessos no automobilismo, tudo isso evidentemente confere à marca um carisma especial.
Como as pessoas reagem quando o senhor diz seu nome nas suas muitas viagens?
Bem normalmente, como regra. Lembro-me de um episódio engraçado. Ocorreu no Hotel Imperial em Viena, um tempo atrás. Quando eu disse meu nome à funcionária da recepção, ela retrucou: “Eu não quero saber que tipo de carro você dirige. Eu só quero saber qual é o seu nome.”
O senhor imaginou que a Porsche AG estaria tão bem depois de sua frustrada aquisição da VW em 2009?
Deixe-me explicar uma coisa. Com 52,2%, a Porsche SE detém hoje a maioria das ações ordinárias da Volkswagen AG. Desde 2012, a Porsche AG faz parte do Grupo Volkswagen e continua se desenvolvendo positivamente sob o seu guarda-chuva. A Porsche se beneficia das sinergias com outras marcas do grupo. Analisando friamente a questão, a ideia de Wendelin Wiedeking de controlar a Volkswagen era absolutamente correta, mesmo que várias coisas pudessem ter sido feitas de forma diferente. Sua opinião de que não poderia haver vacas sagradas em Wolfsburg e que tudo tinha que ser permanentemente questionado, certamente não o ajudou.
O que resta das estruturas da Volkswagen que Wiedeking condenou?
O Grupo Volkswagen e especialmente a marca Volkswagen mudaram muito nos últimos anos, basicamente. O executivo-chefe Mathias Mueller e toda a diretoria da Volkswagen avançaram na direção certa em muitas áreas. Os números do Grupo em 2017 que acabaram de ser divulgados falam por si sós. Tenho repetido bastante que, fundamentalmente, eu não tenho problema com a cogestão de funcionários nas empresas alemãs. Mas afirmo bem claramente que o conselho de administração é o principal responsável pelas decisões de uma empresa. Caso contrário, a cauda abana o cachorro. Apenas empresas financeiramente saudáveis são bons empregadores bons e são confiáveis.
A Wolfgang Porsche abre a porta para o que foi um estábulo, não muito afastado do prédio principal. Tem o aroma sutil de uma oficina de automóveis, mesmo que tudo esteja imaculadamente limpo. Três tratores Porsche vermelhos estão à direita, com um Porsche 356 Carrera 2 verde-escuro 1963, na frente. Ele usa regularmente o carro para competir no Ennstal Classic, nos alpes austríacos, um rali de regularidade para carros clássicos. O 356 é um dos carros favoritos de Wolfgang Porsche. Flâmulas e placas de clubes Porsche do mundo todo ficam numa vitrine; pôsteres do 911 estão pendurados na parede. Daria para abrir um museu com tudo isso, mas Wolfgang Porsche acha importante rodar regularmente com maioria dos veículos. Além de raridades como um Kübelwagen, a coleção inclui novos modelos como um Panamera híbrido plug-in, dois 918 Spyder e um 911 Turbo S Exclusive Series, uma edição limitada.
Como o Grupo VW pode recuperar a confiança perdida na crise do diesel?
Nossos clientes são a parte mais importante, e é por isso que temos que fazer tudo o que pudermos para recuperar a confiança deles. Estou insistindo também em mais humildade. Apenas tamanho não tem valor intrínseco.
No ano passado Matthias Mueller ganhou mais de 10 milhões de euros. Isso é ser humilde?
O debate sobre os salários dos executivos é muito alemão. Você dificilmente vê isso em outros países. Se você é bem-sucedido aqui, as pessoas olham com desconfiança para você. Nós reformulamos os salários no conselho de supervisão. Estamos agora orientados para o futuro e não para o passado. Mudamos o sistema de compensação baseado no de outras indústrias e agora estamos na faixa intermediária de ganho dos membros do conselho.
O senhor está defendendo o Mueller. Por que ele teve que sair mais cedo?
Matthias Mueller assumiu como executivo-chefe em um momento muito difícil para a Volkswagen. Com a estratégia “Together 2025” do Grupo ele avançou com sucesso na orientação estratégica da empresa. Os bons resultados financeiros de 2017 são a prova de que ele adotou as medidas corretas. Ele merece nosso agradecimento por isso.
O que o Herbert Diess tem a fazer de melhor à frente da empresa?
Não é uma questão de melhor ou pior, mas sim de um ritmo mais rápido e de um maior uso de sinergias. O Sr. Diess apresentou uma reestruturação total do Grupo VW para fazer isso. Agora ele deve concretizá-lo.
O senhor entende o frustração dos donos de carros a diesel que agora precisam se preocupar com as restrições de usá-los?
Claro. É por isso que fizemos tudo o que podemos para impedir as restrições em grande escala. Existem opções mais inteligentes para melhorar o ar em nossas cidades do interior. Políticos e fabricantes devem se unir. Às vezes me pergunto se as pessoas têm noção de quantos empregos alemães dependem da indústria automobilística.
O senhor ainda está em contato com Martin Winterkorn?
Falamo-nos por telefone de vez em quando. Escrevo para ele no seu aniversário e no Natal. Acho isso importante. Nunca vou entender como meu primo Piëch pôde demitir alguém como Winterkorn, alguém que o serviu lealmente por 35 anos, sem conversar cordialmente com ele.
O senhor está aludindo à famosa frase, “Quero distância de Winterkorn”?
Ferdinand Piëch colocou em risco seus trabalhos de vida indiscutivelmente significativos quando disse isso. Ele estava descontrolado. Tenho certeza de haveria outras maneiras de resolver suas divergências de opinião com o Sr. Winterkorn.
Vocês têm se falado desde a saída de Piëch de todos os seus cargos e da venda de suas ações na empresa?
Não, temos tido muito pouco contato. Mas o convidei para minha festa de aniversário de 75 anos.
Uma pequena capela branca fica a poucos metros de Schuettgut. Porsche vai até lá, abre a porta e aperta os olhos para o sol, que se revela entre as nuvens por um breve momento. Um buquê fresco de flores, seis velas e uma placa memorial debaixo de uma cruz. “O grande engenheiro e inventor Ferdinand Porsche descansa aqui.” Seus outros membros da família também estão enterrados aqui. Eles são sua esposa, Aloisia; sua filha Louise; e a filha dela, também chamada Louise; junto com seu filho Ferry e sua esposa, Dorothea; e seu filho Ferdinand Alexander. “Esta capela é o núcleo da nossa tradição”, disse Porsche. É uma das razões pelas quais ele adquiriu a propriedade de seus parentes em 2004. A família está no centro, e o mundo do empreendedor Wolfgang Porsche gira em torno dela. Pensar em turistas ou convidados de seminário pisoteando os campos em Schuettgut é inconcebível para ele.
A quarta geração da família está agora passando para o conselho de supervisão da Porsche SE. Quão importante é isso para o senhor?
Eu posso imaginar que desaparecendo os ressentimentos entre os ramos da família os acordos fiquem mais fáceis de alcançar. Somos de fato uma família grande, mas certamente não é apropriado que todos estejam nos vários comitês do conselho de supervisão. Além disso, muitos estão totalmente estabelecidos em suas carreiras. Fico feliz por termos encontrado três candidatos adequados: Josef Ahorner, Stefan Piëch e Peter Daniell Porsche. Pudemos também trazer para a empresa reconhecidos especialistas das áreas jurídica e financeira.
A Porsche tem tido um vasto crescimento nos últimos anos. Preocupa-lhe a perda da identidade da empresa?
Temos que ter certeza de que a lenda Porsche seja mantida. Alguns anos atrás, a Porsche tinha 15 mil funcionários e agora são 30 mil. Todos devem continuar a ser verdadeiras pessoas Porsche, mas isso será cada vez mais difícil. A empresa precisa do Grupo VW para cooperação em desenvolvimento e produção. Mas deve manter certa independência também. A Porsche já vende mais de 250.000 carros por ano. É essencial manter a exclusividade.
A Porsche está construindo o Mission E, seu primeiro carro esporte elétrico. Esta decisão é correta?
Meu avô construiu um carro elétrico em 1899, o Lohner-Porsche, então o Missão E simboliza a ousadia que é uma tradição da Porsche. Muitos disseram que uma expansão das instalações de Stuttgart não valeria a pena. Ela certamente não foi a opção mais barata. Mas era importante que nosso carro elétrico saísse de Stuttgart. Os funcionários estão trabalhando nele sem a parte correspondente ao seu aumento salarial por esse trabalho e colocando-a em um fundo para o futuro. Isso para mim mostra que o espírito Porsche permanece na empresa.
O automobilismo sempre teve um papel importante na história da Porsche. A Fórmula E é suficiente para o futuro?
A fórmula E é certamente uma boa maneira de promover a mobilidade elétrica. E a concorrência com a Audi não faz mal. Mas eu voltarei a Le Mans este ano, mesmo que a Porsche não concorra mais na superior classe LMP1. Acho que uma área importante é a corrida dos clientes, que pretendemos fortalecer. A Porsche também está competindo com um número recorde de carros nos campeonatos GT. O campo não será deixado livre para Ferraris e outros concorrentes.
A indústria automobilística está sentindo as dores das mudanças rápidas. Existe algo que esteja lhe impondo dificuldades?
Minha dificuldade é menor com a mudança tecnológica e maior com o excesso de regulamentação burocrática. Nós já tivemos cinco advogados no departamento jurídico da Porsche; agora são mais de 30. Especialistas de fora da empresa também são necessários para muitas decisões. O mesmo se aplica às leis trabalhistas. É um absurdo um funcionário estar trabalhando num tópico interessante e apaixonante e querer concluí-lo, mas ter que ir para casa porque ele já usou suas horas previstas. Se quisermos manter nossa prosperidade a longo prazo, precisamos,em especial, da iniciativa e do comprometimento de nossos funcionários. Devemos estimular essas qualidades, não impedi-las.
O senhor é o porta-voz da família e uma força unificadora da Porsche. Quem deve assumir seu papel em algum momento?
Acredito que devo ajudar a monitorar a transformação que está em andamento. Vamos ver quanto tempo posso perseverar do ponto de vista da saúde. Se você me perguntasse sobre um candidato para ser meu sucessor, eu diria Ferdinand Oliver Porsche neste momento. Durante vários anos ele foi membro do conselho de supervisão da VW e da Audi, bem como da Porsche AG e da Porsche SE. Ele conhece muito bem essas empresas. Eu confiaria nele completamente neste papel. Mas nossa família ainda não decidiu sobre uma proposta de sucessão.
No final da entrevista, Porsche faz um convite para visitar o Castelo Prielau, nas proximidades. Como as ferrovias de montanha no Schmittenhöhe, os barcos no Lago Zell e um pequeno aeroporto, é uma das propriedades da família na região de Pinzgau. No castelo há acomodação para 22 pessoas; o dramaturgo de Viena, Hugo von Hofmannsthal, viveu lá. Cada quarto foi renovado com muito cuidado, e todo o castelo está disponível para aluguel, diz o gerente do hotel. Famílias industriais conhecidas passaram suas férias aqui. Wolfgang Porsche adquiriu a rústica propriedade , incluindo uma igreja, em 1981, e morou aqui por vários anos. Ele gosta de jantar no restaurante onde Andreas Mayer, estudante do chef Eckart Witzigmann, dirige a cozinha. Por tudo isso, Wolfgang Porsche irradia uma modéstia calorosa que dificilmente poderia estar em maior contraste com a riqueza da família. Mas ninguém deve confundir isso com fraqueza. Quando ele viu que quatro lâmpadas de uma luminária de teto estavam queimadas, sua atitude foi rápida e clara: “Substitua-as imediatamente”.
BS