Depois da aprovação do Dr. Demel, tínhamos conseguido atingir a meta inicial, que era
receber uma autorização do nosso presidente para estudar uma proposta de um carro voltado para as necessidades urbanas do Brasil. Tínhamos muita coisa pela frente, mas somente de pensar que nosso presidente e vice-presidente de engenharia apoiavam a nossa ideia, já nos sentíamos plenos.
Porém agora tínhamos que provar que aquilo que estávamos afirmando era verdade e que éramos capaz de desenvolver um novo conceito até o fim. Por um lado tínhamos o Hirtreiter, que era um engenheiro experiente, atualizado e desbravador, um ótimo guerreiro para estar do seu lado.
O mesmo com o Dr. Demel, um gênio, não só na Engenharia de motores, mas também na política. O carisma do Demel era desconcertante. Ele falava baixo e pausado, e tinha palavras diretas e fortes. Além disso tinha um “tipo” completamente original e não tinha medo de nada.
Era o tipo do homem que, mesmo presidente de uma das maiores companhias do Brasil, não hesitava um segundo para tirar o paletó, que aliás vivia pendurado no ombro, e deitar debaixo de um carro. Eu o vi fazer isso várias vezes, e o Hirtreiter o seguia imediatamente. Então nós, vendo aquela cena inacreditável, deitávamos também ao lado deles, e ficávamos lá, debaixo do carro, com as camisas brancas raspando no chão da oficina, batendo papo relaxadamente sobre assuntos técnicos, como um bando de moleques discutindo a próxima “arte”.
Nossos parceiros que chefiavam a Engenharia avançada e outras áreas como o Protótipo, foram envolvidos e acionados.
Para desenvolver um carro você tem equipes de técnicos especializados nas várias disciplinas que compõem o veículo. Elas são: Carroceria, Powertrain, Chassi, Elétrica e Acabamento.
Cada uma delas cuida de muitos assuntos, por exemplo:
• Carroceria é responsável pela construção, rigidez da carroceria, aerodinâmica, segurança, documentação através dos desenhos de engenharia, listas de peças, acompanhamento e composição do preço de cada peça e muito mais
• Powertrain: motor em si, câmbio, e o aglomerado de todos periféricos, desempenho, testes de dinamômetro, sistemas elétricos relativos as peças do powertrain, desenvolvimento de novos produtos, etc.
• Chassi: suspensão, rodas e pneus, performance dinâmica, etc.
• Elétrica: faróis e lanternas, luzes diversas, sistemas eletrônicos como airbags, junto com a área de segurança, chicotes, rádios e “entertainment center”, todos os comandos elétricos, instrumentos combinados, sistema de ar-condicionado, e muito mais
• Acabamento: painéis de instrumentos, revestimentos de portas, colunas, bancos, teto, porta-malas, carpetes, tecidos, texturas, frisos decorativos, letreiros, etc.
Enfim, um mundo de assuntos, já que o automóvel é o mais complicado produto que podemos adquirir.
Pois foi do lado técnico que veio a proposta de desenvolver um “carro-conceito”, que tem a função de demonstrar o conceito da maneira funcional, principalmente da parte de ergonomia e construção. Nele poderíamos sentar e dirigir o carro que naquele momento era somente uma ideia no papel.
Para realizar o carro-conceito, o protótipo precisaria de uma superfície de Design, já observando todas necessidades técnicas tais como o acesso ao interior, a posição de dirigir, a montagem dos elementos técnicos, o polêmico banco traseiro móvel, o assoalho plano, o para-brisa enorme e superdimensionado, altura e acesso do porta-malas, o funcionamento das portas, primeiras análises funcionais de peças móveis e elementos ligados à segurança, com cálculos de absorção de energia, montagem dos vários elementos técnicos e estéticos, dinâmica do carro, etc.
Como não tínhamos um budget, teoricamente não poderíamos trabalhar no projeto. Cada centavo gasto na companhia é controlado pela área de finanças. Porém, naquele fantástico trio de novos chefes que chegaram juntos da Audi havia também o novo chefe de finanças, o Sr. Vahland, que no futuro seria o executivo-chefe da Škoda e mais tarde, da Volkswagen China.
O Dr. Demel pediu para ele abrir uma ordem de serviço para desenvolvimento e jogar algum dinheiro na conta, para que pudéssemos computar horas de trabalho do projeto. Quem sabe, se o milagre se concretizasse, com certeza poderíamos recuperar este dinheiro no futuro.
Nome do projeto: Projeto Tupi!
O problema sobrou para nós, do Design, pois teríamos que realizar a toque de caixa uma forma para o carro. Isso não acontece da noite para o dia. Um modelo de clay pode ficar até dois anos até receber uma aprovação final, mas nós não tínhamos tanto tempo, pelo menos não para o carro-conceito.
Então decidimos fazer um carro neutro, quase sem desenho, e que isso ficasse bem claro no modelo.
A forma final do carro viria mais tarde, depois que nós aprovássemos o carro-conceito na Alemanha. Este era o grande fantasma que nos rondava, dia e noite, pois na reestruturação da VWAG daquela época não havia uma autorização formal para que outras regiões, que não a Alemanha, desenvolvessem seu próprio design. Para eles, um Volkswagen de verdade só poderia ser desenhado por eles.
Mas nós éramos muito teimosos, e não concordávamos com esta visão. Para nós, um Volkswagen pode ter várias interpretações conforme a necessidade de cada país, de cada região no mundo. Para nós sempre ficou claro que o povo alemão tinha outras
demandas que não as do povo brasileiro.
Para desenvolver o modelo a primeira coisa que precisávamos era de um desenho do “Package” do carro.
O desenho do Package, que é feito na escala 1:1, posiciona na vista lateral todos os elementos importantes do veículo. Primeiro vem o assoalho e rodas, com a distância entre eixos. Depois o balanço dianteiro, que é a distância do centro da roda dianteira até a superfície mais avançada do para-choque dianteiro, distância esta que tem que ser suficiente para acomodar o motor, radiador, travessa dianteira do para-choque e a pele do para-choque em si.
No caso, o motor dianteiro, com tração dianteira, já tinha um “pacote” pronto, derivado do Gol.
Depois, o balanço traseiro, que queríamos o mais curto possível, um desafio e tanto, já que nós do Design não aceitávamos o balanço traseiro do Gol, que para nosso modelo era muito grande.
A maior problemática deste item é conseguir posicionar o tanque de combustível, suspensão traseira e espaço para o estepe, além da travessa traseira e para-choque traseiro em si.
Depois o maior desafio de todos: posicionar os manequins dianteiros e traseiros. Queríamos o Ponto H bem mais alto do que do Gol, o que significa sentar mais alto em relação ao assoalho, justamente para ganhar espaço na cabine e criar uma posição de trabalho mais confortável e dominadora.
No banco traseiro tínhamos a movimentação para frente e para trás, que limitaria o tamanho do compartimento de bagagens mínimo e máximo e a altura final da cabeça dos ocupantes traseiros, o que limitaria nosso desenho da coluna C (traseira).
Com o manequim posicionado, começa a definição dos ângulos de visão em relação ao interior e exterior.
O ponto mais importante neste item é definir onde cairá a base do para-brisa, que em
alemão se chama, windlaufpunkt, ou “área onde o vento corre” ao pé da letra. Este item é muito importante porque depende deste ponto o limite de visão externa, início do painel de instrumentos, tamanho do capô dianteiro, e principalmente o espaço de acesso ao compartimento do motor.
Definido este ponto, vem a inclinação máxima do para-brisa versus a superfície do teto. O fim deste depende da posição da cabeça do manequim traseiro. Exatamente após a cabeça inicia uma forte travessa traseira, parte muito importante para a estrutura do carro mas que faz o design sofrer. E, por fim, o perfil da tampa e para-choque traseiros.
Na tampa, tem-se que verificar geometria de abertura da tampa para, por exemplo, não bater na cabeça de pessoas mais altas, limite da retrovisão, que define até onde pode-se descer com a base do vidro traseiro, além da altura de acesso do porta-malas para melhor condição ergonômica para carregar e descarregar a bagagem.
Posicionado o manequim, também já temos as limitações de abertura dos vidros laterais e posição ideal para a coluna B (central), que vai ditar o espaço de abertura das portas. Então fixamos este desenho numa “parede” e posicionamos por cima uma película plástica (poliéster) chamada “Mylar”.
É sobre esta película que desenvolvemos o “Tape Drawing” ou seja, um desenho feito com fitas pretas de várias espessuras com a qual “desenhamos” o carro em vista lateral.
Todos os “hard points” têm que ser respeitados, além do espaço extra que temos que considerar em cada ponto. Por exemplo, acima da cabeça temos que considerar um bom espaço, pois sendo o automóvel um “ser” que se movimenta, a cabeça do ser humano também pode, e não queremos que ninguém bata sua cabeça caso você passe por uma lombada em alta velocidade. Além disso, temos que considerar a espessura do revestimento do teto, travessas estruturais do teto e este propriamente dito.
O desenho é feito em fita sobre este material plástico porque se quisermos mudar uma curva basta arrancar a fita é aplicar outra melhorando, acelerando mais ou menos a curva, etc.
É claro que hoje em dia tudo é feito diretamente no computador, e você não precisa mais fazer ginástica para desenvolver um Tape Drawing. Você pode fazer isso confortavelmente sentado e escutando música pelo fone de ouvido, mas naquela época o tape Drawing era uma atividade que requeria uma certa forma física.
Na Alemanha tínhamos “paredes” que subiam e desciam, comandadas por motores elétricos. Mas no Brasil não havia essas “finesses” e tínhamos que nos abaixar para desenhar as partesinferiores do carro, o que não era nada confortável.
Em compensação, sofríamos menos de problemas de postura, o que acontece com frequência para quem trabalha uma vida inteira sentado em frente à um computador.
O Tape Drawing finalizado deve simular visualmente um carro, no tamanho real, que é
posicionado na sala de apresentações para que o Board da companhia imagine, baseado no desenho, como será o carro físico.
Nos dias de hoje, com o Photoshop (PS) conseguimos imagens muito refinadas, que ficam muito próximo do que seria o carro real, com sombras e brilho quase reais.
Mais ainda, com os modeladores virtuais, podemos já ver antecipadamente a superfície do carro em qualquer ponto de vista. Baseado neste desenho os modeladores vão começar a esculpir o modelo, e o designer designado como responsável orienta o modelador para executar as superfícies e detalhes conforme ele imagina.
Nesta fase, o designer também trabalha com tapes, mas desta vez, esticando-os sobre a
superfície do clay, limitando e definindo as linhas e curvaturas da superfície do clay. A ideia é chegar com o modelo o mais próximo possível do Tape Drawing. E foi assim que desenvolvemos um primeiro “chute” do que poderia ser o Tupi.
Claro que o modelo não ficou nada parecido com o carro que finalmente saiu da produção, mas já serviu de base para a construção do carro-conceito, além de ele mesmo já ser um esboço de uma das propostas de aparência do que poderia ser o carro final.
O pessoal do Protótipo queria fazer uma surpresa para o Hirtreiter, e o carro-conceito foi feito também às escondidas. Protótipos conseguiu construir e modificar as peças na surdina. Diz a lenda que ele já tinha conhecimento que estávamos fazendo o carro-conceito, e aparecia sem aviso no Protótipo, dando passeios como quem não quer nada.
Quando o carro foi finalmente mostrado a ele, há quem tenha visto escorrer uma lágrima dos olhos do alemão. Aliás, mesmo com toda frieza e dureza aparente dos alemães, ele acabou se apaixonando pelo Brasil e respeitando muito os brasileiros.
Ele pôde sentir na pele o que significa a nossa gentileza e a flexibilidade. Embora estejamos nos dias de hoje muito decepcionados com tudo que esta acontecendo no Brasil do ponto de vista político e na área de segurança, o povo brasileiro é gentil e alegre, aberto a novas culturas e adora receber, e o Brasil é um país maravilhoso, talvez o país mais rico de todo o mundo, muito belo e enorme. Vários países num só. Tenho certeza que todos estrangeiros que aqui trabalharam nunca mais vão esquecer do que aqui viveram.
O primeiro pacote completo de predesenvolvimento finalmente ficou pronto em algumas semanas. A apresentação para o Board brasileiro foi boa, mas, claro, foram solicitadas muitas modificações, como sempre acontece nas reuniões importantes do Design.
Tinha chegado a hora de convidar nosso único aliado alemão, o Sr. Warkuss, o todo-poderoso Designer-chefe do Grupo Volkswagen.
Ele seria a ponte que nos levaria para onde o pote de ouro estava.
LV
Nota do editor: Este texto é a parte 2 de 3 desta história do Projeto Tupi. Por um erro de postagem o texto que estava anteriormente sob o mesmo título é o da Parte 3, final, que será publicado no sábado que vem (30).