A primeira visita do Sr. Warkuss ao Brasil foi para ele uma grata surpresa.Ele nunca poderia imaginar que São Paulo fosse tão grande, tão bela e tão intensa. A rotina de chegada de todo alto executivo tinha um procedimento padrão. Tínhamos sempre um representante da VW que recebia o executivo antes da alfândega e facilitava sua entrada ao país, sem filas ou questionamentos.
Depois da chegada levávamos executivo a um hotel perto do aeroporto onde ele tomava um banho e um belíssimo café da manhã. Depois atravessávamos a cidade em direção a São Bernardo do Campo.
Já na primeira visita o Warkuss ficou assombrado com duas coisas: os grafites e pichações por onde quer que se olhasse e os motoqueiros insanos trafegando pelo corredor de carros.
Nós da indústria automobilística, profundos conhecedores da segurança veicular, sabemos o perigo que ronda o vida dos motoqueiros no Brasil. Em nenhum país civilizado do mundo é permitido motos trafegando no corredor entre carros. Eu sempre toco neste tema, pois considero esta prática suicídio coletivo, e para mim é claro que o governo é o responsável por todas mortes ou, pior ainda, a incapacitação permanente a que os motoqueiros estão sujeitos.
Quando ele chegou à fábrica da Anchieta, recebido na recepção pelo Dr. Herbert Demel, fomos direto para a área de Design, onde apresentamos todo o conceito do Projeto Tupi. Ele gostou muito do que viu e nos garantiu que este era exatamente o tipo de carro que ele sempre imaginou, mas que nunca tinha conseguido levar em frente. Portanto, nos garantiu que ficaria do nosso lado na luta pelo modelo.
Por causa do Tupi, o Sr. Warkuss voltou ao Brasil muitas vezes é se tornou mais um apaixonado pelas nossa praias e principalmente pelos nossos campos de golfe, esporte que ele amava. Ele era daqueles que sabia muito bem quando trabalhar intensamente, mas também como apreciar horas de lazer.
A sua rotina era trabalhar no modelo pela parte da manhã e à tarde sempre conseguia escapulir para curtir uma boa partida de golfe ou visitar algum museu ou ponto de interesse em São Paulo.
À noite sempre nos encontrávamos em uma churrascaria da moda, e na manhã do outro dia, ele voltava ao modelo, verificando os pedidos que havia feito e direcionando os próximos passos.
Naquela época, tínhamos gerentes de alto gabarito, muito seguros de si e extremamente competentes, mas que também tinham um lado pessoal e humano muito evidente. Pessoas de outro estúdios como os da Škoda e Seat, reclamavam que ele nunca aparecia, mas no Brasil ele esteve muito presente.
Em uma das suas viagens ao Brasil ele ficou momentaneamente satisfeito com o material que tínhamos em mãos e sugeriu que era hora de levar o modelo para a Alemanha. Na realidade embarcamos o modelo de clay e o carro conceito e eu viajei à frente com todo material que explicava o conceito, para esperar e acompanhar a chegada dos modelos na Alemanha.
Como já disse, o recebimento destes modelos na Alemanha eram momentos de alto estresse, já que sempre há muitas probabilidades de que uma acidente aconteça pelo caminho.
O Sr. Warkuss agendou de última hora um ponto na reunião de produto para apresentar ao Board da Alemanha nosso conceito. Mas nesta primeira tentativa de apresentação a coisa toda desabou em poucos minutos.
Acontece que o chefe de engenharia, na época o Dr. Martin Winterkorn, (sim, ele mesmo) não aceitou de maneira nenhuma nossa apresentação. Ele ordenou, aos berros, que nosso modelo fosse retirado da salade apresentação, já que ele não tinha conhecimento do conteúdo antecipadamente, e também não aceitava que o Brasil chegasse lá, apresentando um produto que não estava nos planos da matriz. Nós, os brasileiros, ficamos muito chocados com a reação do diretor, inclusive com a agressividade do homem.
O Dr. Winterkorn vinha crescendo dentro da companhia com muita velocidade e importância. Era um homem muito duro e inflexível, e responsável pelo Polo, naquela época sua menina dos olhos, e só de olhar nosso modelo, ficava claro que ele iria competir com o Polo.
O Sr. Warkuss, um guerreiro muito experiente, nos acalmou, e pediu para os modeladores posicionarem o modelo em uma das pontes de trabalho na ala de modelação. Tínhamos que montar uma nova estratégia para reapresentação do Tupi, porque naquelemomento, o que tínhamos previsto fui tudo por água abaixo. Estava bem claro para nós que o Winterkorn, que na realidade pela estrutura da VWAG, era o chefe do Warkuss, nunca aceitaria nossa ideia.
Mas o Sr. Warkuss não era um homem de se acovardar pela pressão política. Ele realmente acreditava que nosso projeto era bom e genuíno, portanto usaria toda sua influência e poria a própria cabeça a risco por ele.
Para falar a verdade, embora o conceito como um todo fosse muito bom, o modelo ainda não estava Ok do ponto de vista estético. Ele (o modelo) era um estranho dentro do que se estava trabalhando na época, não tinha uma identidade VW, e devido ao pouco tempo de trabalho não era nenhuma obra de arte. Ele seria facilmente dizimado na próxima apresentação se não criássemos algo que fizesse sentido dentro da “paleta VW”.
Estávamos próximos da época de fim de ano, e com a anuência do Sr. Warkuss, toda equipe voltou para o Brasil.
O Dr. Demel e o Hirtreiter também voltaram ao Brasil muito preocupados, pois na realidade, o Winterkorn poderia usar este acontecimento para prejudicá-los, mas era fim de ano e estávamos exaustos e um pouco desnorteados. Então, resolvemos que voltaríamos ao ataque após as férias.
No início de fevereiro voltei à Alemanha com nossos modeladores e qual não foi a surpresa quando vi ao lado do nosso modelo, um segundo modelo, já em estado avançado. Comuniquei meus superiores que já estavam na Alemanha, também em férias.
O segundo modelo era baseado no Golf Plus, que estava na mesma ala da Volke, e à primeira vista era muito bom. Dois dos melhores designers de exterior foram designados pelo Sr. Warkuss para esculpir nosso conceito.
A princípio, fiquei meio chateado, pois não tínhamos sido avisado do modelo, mas depois de uma noite de descanso e pensando sobre o assunto, entendi qual era a jogada.
O Sr. Warkuss, na sua esperteza, arquitetou um plano genial para que o conceito fosse aprovado. Nosso modelo seria o “laranja”, isto é, seria o modelo fadado a perder em uma competição.
Neste momento eu entendi que as vezes para você atingir um objetivo maior, que era aprovar uma nova família de carros para o Brasil, seria necessário sacrificar nosso egoísmo, aceitar um jogo onde nós teríamos que fingir decepção pela perda da competição, e colocar o Winterkorn em uma situação em que ele não pudesse mais dizer não ao conceito.
Em uma reunião noturna com o Demel e Hirtreiter, expliquei o que estava acontecendo e eles, também a princípio, ficaram bravos por não terem sido avisados, por ter um concorrente. “Isto é inaceitável!”, etc.
Então, com calma, expliquei que esta poderia ser a única maneira de ganhar o projeto. Criar uma situação de competição como arma para ganharmos o projeto para o Brasil, e eles, muito inteligentes que eram, concordaram com a estratégia.
Nas semanas seguintes eu acompanhei de perto os dois designers alemães, fazendo com que eles incluíssem as soluções de construção para que o modelo continuasse dentro dos limites de investimento e necessidades específicas para nossa região.
O designer-líder que estava tocando a proposta alemã era o Andreas Mind, hoje chefe exterior designer da Audi, um cara muito boa gente, excelente designer e um ser humano espetacular.
Ele imediatamente se integrou ao nosso projeto e trouxe muitas soluções inteligentes e atraentes ao modelo, assim como também nos ajudou com nosso modelo, abrindo portas e facilitando para que os dois modelos estivessem no mesmo nível de qualidade para a apresentação.
A estratégia geral estava montada. O conceito brasileiro, agora devidamente agendado, com todos os anexos de custo, produção, marketing e estratégia de produto, foi registrado e oficialmente reconhecido para a apresentação. Tínhamos dois modelos, um brasileiro e outro alemão, sendo que o alemão estava dentro da nova linguagem de design da época e o nosso, embora interessante, estava visivelmente desconectado da linha de design que vinha sendo desenvolvido na VWAG.
A armadilha estava pronta para ser acionada, mas mesmo assim havia o perigo iminente do Winterkorn, junto com seu bando de engenheiros, bloquear tudo, seja por motivos técnicos ou estéticos.
Mas, meu chefe Warkuss não era nenhum principiante. Macaco velho, ele tinha preparado o golpe de misericórdia a quem quisesse se opor à nossa ideia.
Quando ele tinha algum caso mais complicado ele sempre recorria ao Grande Chefe Dr. Ferdinand Piëch e apresentava e fechava questão sobre o ponto em uma reunião somente entre eles.
Quando chegou a hora do nosso ponto de apresentação, já com todos participantes dentro daala de apresentação, a porta lateral se abre, e entram o Warkuss e o Dr. Piëch. Em segundos, a sala ficou completamente em silêncio. O Winterkorn, ainda tentou se aproximarpara talvez tentar alguma reação, mas o olhar do Dr. Piëch foi suficiente para que ele desistissede uma aproximação.
Deu uma volta com o Warkuss, primeiro em volta do modelo brasileiro, e depois do modelo alemão. Depois parou a uma certa distância dos dois e declarou, com uma voz bem baixa, mas suficientepara ser ouvida por todos no salão, já que o silêncio era total: “O Modelo B é o melhor, e o conceito é muito bom, não só para o Brasil. Quero este carro também para a o mercado europeu. Por favor, preparem um estudo para a importação do modelo do Brasil para a Europa.” Olhou para o Warkuss e depois para o Winterkorn, como que perguntando se estava tudo bem-entendido, virou as costas e saiu pela mesma porta que tinha entrado.
Depois disso, só me lembro de alguns flashes, da nossa equipe retirando os modelos do salão e de pessoas nos cumprimentando pelo sucesso da apresentação.
À noite, no hotel dos chefões, tivemos um grande jantar, regado pela melhor cerveja e comida típica alemã. O trio Demel, Hirtreiter e Fahland estava muito feliz, e com razão, pois aquela batalha vencida representava muito para a carreira deles.
Voltei para meu hotel sozinho e meio anestesiado. No meu quarto, já comecei a pensar como poderíamos criar derivativos para o Tupi.
Era difícil acreditar que o desenho no guardanapo chegara até aquele ponto. O Tupi, seria o primeiro carro brasileiro o ser exportado para a Alemanha, dar volume e sentido à fábrica de Curitiba, e ser o primeiro carro compacto “Highroof” da história da VW.
Foi talvez o dia mais importante de minha carreira, mas um novo dia estava a caminho e, com ele, muito trabalho pela frente. A aprovação de um projeto desta dimensão implica em muitos detalhes, e ainda tínhamos muitos meses de trabalho até a definição completa do novo carro.
O Dr. Winterkorn teve que engolir aquela derrota, mas ele acabou se tornando mais tarde o homem mais importante do grupo, o número 1, responsável por todo Grupo Volkswagen.
Ele nunca se esqueceu de mim, o brasileiro teimoso, que teve a coragem de lutar contra ele a favor de uma ideia original. É claro que eu, mesmo na posição de diretor de Design da VWB, era insignificante perto do poder que ele deteve no grupo, mas de uma maneira muito velada ele sempre me respeitou, e em algumas reuniões mais à frente me chamou de Luiz e pediu minha opinião sobre alguns assuntos.
De minha parte, só restou uma grande admiração ao engenheiro e líder que levou o Grupo VW ao que é hoje, o maior grupo construtor de automóveis do mundo!
LV