Caro leitor ou leitora,
Faz pouco tempo (12/2/18) que o colunista Alexander Gromow publicou matéria a respeito do livro “Beetle – A Most Unlikely Story” (Fusca – uma história bem improvável), da qual consta a Introdução pelo autor Arthur Railton. Como já o li diversas vezes, lembrei-me do fato de o primeiro presidente-executivo da Volkswagen, Heinz Nordhoff, ter falecido no cargo, assim como Sergio Marchionne, o executivo-chefe da FCA e da Ferrari, que morreu no dia 25 do mês passado, e que há num livro um capítulo que trata de duas sucessões, a de Nordhoff e do Fusca. Resolvi, então, compartilhar esse capítulo com você por considerá-lo de importância histórica no contexto da indústria automobilística.
Permiti-me tratar o Fusca pelo seu apelido original em português: Besouro. Fusca foi nome adotado no Brasil em 1984 somente e acho melhor Besouro do que esse nome em alemão (Käfer) ou inglês (Beetle).
A foto de abertura acima registra o primeiro encontro de Heinz Nordhoff com a imprensa, apenas 12 dias após ter assumido o cargo, para anunciar a produção do 20.000º Volkswagen; ao seu lado o leal chefe de imprensa Frank Novotny, que trabalhou com Nordhoff até à morte do executivo.
Boa leitura!
Bob Sharp
OS SUCESSORES
A saúde de Heinrich “Heinz” Nordhoff, diretor-superintendente da Volkswagen — cargo hoje chamado executivo-chefe, CEO em inglês —, vinha se deteriorando há anos, embora ele se recusasse a admiti-lo para todos exceto para ele mesmo. Em 1964, no seu 65º aniversário, a idade normal de aposentadoria na Volkswagen, ele decidiu continuar trabalhando, como contou ao autor pouco depois, até que “a nova família de carros fosse lançada”.
Ele ansiava ver aquele dia. Praticamente desde seu primeiro dia em Wolfsburg, 5 de janeiro de 1948, ele vinha sendo aconselhado por pessoas bem-intencionadas a parar de produzir o Besouro em favor de um modelo mais atraente. Como se sabe, ele resistiu continuamente à pressão e, ao fazê-lo, fez um sucesso sem precedente na história.
Mas a pressão sobre ele era incessante.
Ele disse numa reunião do departamento de pós-venda da fábrica em 1957: “Quando assumi a direção desta fábrica, todos por quem eu tinha consideração afirmaram que ela não teria futuro. Bem, ela teve. Depois, todos tentaram me convencer que o nome Volkswagen era naturalmente impossível e que meu primeiro trabalho deveria ser encontrar um novo nome. Este continuou e o carro ficou conhecido por este nome. Pouco depois, todos disseram que a forma do carro deveria ser mudada o mais rapidamente possível porque ele nunca poderia fazer sucesso com linhas tão ultrapassadas. As linhas continuaram.”
“Tenho a firme convicção de que termos ficado com o que tínhamos é um dos mais importantes elementos do nosso sucesso. Mas ano após ano novas ondas de rumores surgiam: ‘Haverá um novo Volkswagen?’ Como pode alguém achar seriamente que mudaríamos esse carro, que tanto sucesso fez? Vocês podem estar certos de que não cometerei este erro. Nos concentraremos em erradicar gradual e positivamente todos os pequenos e grandes erros de projeto, inevitáveis em qualquer carro, e isto é o que estamos fazendo.”
Note-se que esse discurso foi feito em 1957.
Durante toda sua carreira na Volkswagen, Nordhoff era questionado em quase todas as entrevistas coletivas. “Quando o senhor mudará o Besouro?” A resposta era tão certa quanto a paciente polidez da resposta. Não só a imprensa fazia essa pergunta, mas o pessoal da fábrica também. O importador suíço, uma altamente sofisticada pessoa com mentalidade automobilística e um grande amigo de Nordhoff, disse-lhe no começo dos anos 1950 que ele não seria capaz de vender o Besouro na Suíça por mais que um ano a menos que o carro mudasse para algo mais moderno.
A contínua demanda por mudanças incomodava bastante Nordhoff, apesar de ele ter certeza de estar no rumo certo. Ele olhava pela janela e via a maior fábrica de automóveis da Europa — que prova maior ele precisava?
Mas ele estava igualmente certo de que um dia uma mudança teria de ser feita e ele queria que fosse ele que a fizesse. Não queria passar à história como um homem contrário a mudanças. Seria o mais injusto dos julgamentos, sentia. Ele não era contra mudanças, apenas contra mudar por mudar. Ele não gostaria de ser considerado como outro Henry Ford.
Nordhoff de vez em quando era comparado a Ford devido à sua relutância em mudar as linhas do Besouro. Em setembro de 1959, a revista Der Spiegel publicou um artigo, “O Volkswagen está obsoleto?” Quando alfinetado sobre se parecer com Ford, Nordhoff, numa rara perde de paciência, disse: “Gosto crítica construtiva, mas não posso aprender nada com esse tipo de conversa. Você acha que estou dormente?” Outros o acusaram de estar “dormindo”. Durante uma forte queda de vendas de automóveis em meados dos anos 1960, ele foi criticado por Franz Josef Strauss, um articulado político de direita da Bavária. Ele acusou a política de não mudar de Nordhoff responsável pela crise de vendas. A Volkswagen, disse, era o “gigante adormecido de Wolfsburg.” A imprensa alemã levou o ataque em consideração e, pela primeira vez, Nordhoff teve de se defender.
Num forte atitude de relações públicas, ele mandou seus engenheiros mostrar ao público um elenco dos muitos modelos que foram desenvolvidos ao longo dos últimos dez anos. Todos, é claro, foram descartados por serem incapazes de ser sucessores do Besouro. Foi um coleção menos impactante do que a esperada, demonstrando trabalho e indústria mais do que inspiração. A maioria dos modelos era conceitos de estilo em plástico e, pelo menos nas fotos, não pareciam ser parte de um intenso programa de desenvolvimento. Nordhoff percebeu-o e isso o aborreceu. Era visível que sua equipe de desenvolvimento não tinha o calibre que ele gostaria que tivesse. Ele ficou determinado a mostrar aos que duvidaram que ele pudesse lançar um sucessor digno para o Besouro.
Mandou construir um moderno centro de pesquisa e desenvolvimento, o maior e mais bem equipado da Europa. Foi além, executando os planos de um campo de provas de tamanho descomunal (em Ehra-Lessien, a 20 quilômetros de Wolfsburg), também o maior daquela região do mundo. Para o projeto de um digno sucessor do Besouro ele incumbiu três grupos separados de projetos de construir três modelos em tamanho real totalmente operacionais de modo competirem entre si. Esses três grupos eram: sua própria equipe de desenvolvimento em Wolfsburg; a equipe de projetos da Porsche; e o grupo de desenvolvimento da Audi que havia acabado de se tornar parte da Volkswagen.
Com toda essa atividade em andamento, ele decidiu ficar no cargo até que o sucessor do Besouro entrasse em produção.
Tragicamente, não conseguiu. A ele foi negada a mesma satisfação que Ferdinand Porsche teve, a de ver seu trabalho. Nordhoff não chegou a ver “seus bebês” nas ruas.
Uma doença maligna que vinha agindo permanentemente em seu corpo finalmente destruiu a vida deste bom e caloroso ser humano que provou que homem da Renascença poderia ser um capitão de indústria.
Católico devoto, ele morreu em 12 de abril de 1968, Sexta-Feira Santa, aos 69 anos, apenas algumas horas depois de apreciar uma taça de champanha com sua esposa e sua filha Barbara.
Ele não viveu para ver o sucessor do Besouro, mas teve a satisfação de ver que ele estava a caminho. Ele não pôde provar o que mais queria, que ele não havia criado um “gigante adormecido” em Wolfsburg.
O carro que ele havia construído tão bem durante tantos anos ainda tinha um longo futuro à frente. Parecia não haver fim para a vida deste carro, que obteve o sucesso ao quebrar as regras.
Sem Nordhoff, a Volkswagenwerk passou por um período de dificuldades devido a fatores além do controle de qualquer executivo, Nordhoff inclusive. Várias mudanças foram impostas pelo novo diretor-geral, Kurt Lotz, nomeado pelo governo, o acionista controlador com 40% das ações divididas entre os governos federal e o do estado da Baixa Saxônia. A fabricante de automóveis NSU (a mesma para quem Ferdinand Porsche construíra protótipos 36 anos antes) estava à beira da falência e foi absorvida pela Volkswagenwerk. Havia rumores de fusões com outras empresas. Era um período difícil e de incertezas com a alardeada especulação de que a companhia havia perdido sua “mão de ouro” com a morte de Nordhoff.
Em meio a tantas incertezas o Besouro continuou a levar a carga enquanto o trabalho nos novos modelos prosseguia, embora em ritmo menor devido à troca de direção. Em outubro de 1969 foram vendidos 41.811 Besouros nos Estados Unidos, um recorde histórico.
Apesar das vendas de Besouro, pela primeira vez na sua história a fábrica começou a sofrer perdas financeiras . Ela passava pela maior renovação de máquinas e ferramentas da história da indústria automobilística. A nova família de carros era totalmente nova, sem nenhuma peça herdada da linha antiga. Nunca um troca tão grande fora feita sem parar a produção um único dia sequer. Foi, com muitas atividades da Volkswagen, uma realização miraculosa, porém custosa.
Em meio a todas essas mudanças, o Besouro continuava sendo produzido. Então, às 13h45 de 17 de fevereiro de 1972, aconteceu o que a maioria dos historiadores da indústria nunca esperavam: o 15.007.034º Besouro deixava a linha de montagem em Wolfsburg, quebrando recorde mundial estabelecido pelo Ford modelo T em 1927. O Besouro agora era o campeão mundial.
No momento em que o Besouro recordista deixava a linha, membros das duas famílias cujas vidas foram entrelaçadas pela história estavam presentes: a Sra. Heinz Nordhoff, Ferry Porsche, e sua irmã Louise Piëch. Com eles estava Rudolf Leiding, agora chefe supremo da Volkswagenwerk, um homem que havia começado como trabalhador de linha de montagem logo após a guerra. Ele havia vivido a história junto com as outras três.
O Besouro, parecido com um dos 15 milhões anteriores, foi fotografado da mesma maneira que o 1.000º Volkswagen em março de 1946. Mas desta vez o mundo o conhecia, não apenas meia-dúzia de trabalhadores e oficiais britânicos.
Um dos jornalistas presentes ao evento fez uma pergunta sobre o velho assunto: quando o Besouro deixará de ser fabricado? Haverá o 30-milionésimo? Leiding sorriu para o jornalista. “Se você tivesse perguntado se haveria o 20-milionésimo, eu com toda certeza responderia que sim, mas 30-milionésimo? Temos que esperar para ver.”
O Besouro recordista estava agora nos Estados Unidos, o país que o acolheu em seu coração. Foi doado ao Smithsonian Institute em Washington, D.C., onde estará no Hall dos Transportes junto com outras máquinas famosas na procura do Homem pela forma perfeita de transporte.
A produção do Besouro prosseguiu ao ritmo de um milhão de unidades por ano até 1974, quando quase todas as linhas de produção foram convertidas para produzir o sucessor do Besouro, o Golf. O carro não compartilhava nenhuma característica com o Besouro. Tinha motor dianteiro transversal, tração dianteira, arrefecimento a água e linhas retas firmes e definidas.
Nordhoff queria que sua nova família fosse justamente isso — totalmente nova. E era.
BS