Meus leitores mais contumazes sabem o quanto eu reclamo dos motoristas que não dão passagem ou daqueles que empacam na pista da esquerda mesmo quando não estão ultrapassando, não há outros veículos na(s) pista(s) mais à direita ou apenas andam por demais pacatamente.
Que fique claro que não forço ninguém a correr — apenas pretendo que se respeite o Código de Trânsito Brasileiro e pretendo que ninguém me obrigue a fazer perigosas ultrapassagens pela direita. Como no Brasil a mão de circulação é a direita e o volante nos carros fica à esquerda, toda vez que vamos para à direita temos menos visibilidade do que quando fazemos o contrário. A explicação é simples: além da posição do motorista tem a coluna do carro, que obstrui parcialmente nossa visão. Apenas por isso é que fico possessa quando me obrigam a cometer uma infração de trânsito e, ainda por cima, a colocar a mim e a outrem (linda essa palavra, não?) em risco.
Sempre chamamos de “mão inglesa” o trânsito pela pista da esquerda. Sim, provavelmente os que mais a difundiram foram os ingleses que não apenas na ilha, mas em todas as colônias implementaram esse hábito. Até hoje Índia, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, por exemplo, utilizam a tal “mão inglesa”. Mas outros países que sequer foram colonizados pelos ingleses também tiveram essa norma. Inclusive por estas paragens, mesmo.
Como o Bob gosta de dizer com entoação de ditado chinês, mão direita/volante na esquerda, mão esquerda/volante na direita.
Minha querida Argentina é um exemplo. Lá a mão inglesa vigorou até 1945. A data de troca foi anunciada com muita antecedência e inclusive os carros durante um certo tempo começaram a ser produzidos com a direção do outro lado — o que provocou cenas estranhíssimas de veículos circulando na esquerda mas com volante à direita e vice-versa. Vejam na foto de abertura a inauguração da via expressa General Paz, em 1941.
Mas o mais legal é o motivo pelo qual circulava-se (a ênclise da semana) à esquerda e pelo qual passou-se (hoje estou impossível!) a circular pela direita. Ambos folclóricos, no mínimo. Tudo começou com o sentido de circulação das carruagens, que era meio caótico. Em maio de 1889 o então prefeito de Buenos Aires Francisco Seeber decidiu padronizar o trânsito das carruagens e adotou como referência o sentido de circulação dos trens que, assim como na maior parte do mundo, foram construídos pelos ingleses e circulavam pela esquerda. Mas havia também uma questão prática: como a maioria dos cavaleiros era destra e usava a espada com a mão direita, ela ficava guardada do lado esquerdo do corpo pronta para ser desembainhada. Assim, para não ferir quem vinha no outro sentido, escolhia-se o lado esquerdo. Se é verdade ou não eu não sei, mas adoro essa versão. Acho, digamos, galhardamente cavalheira e educada, assim como quando o homem fica do lado da rua ao andar na calçada com uma mulher para “protegê-la” dos veículos. Sim, sou romântica, ainda que tenha um lado fortemente feminista.
Na Europa era bastante comum o uso da “mão inglesa” até a Revolução Francesa —um dos fatos históricos que mais gosto de analisar pelos seus reflexos em tantas coisas. Pois é, também influenciou no trânsito. Até 1789 o lado direito de circulação era para as classes baixas enquanto a aristocracia andava pela esquerda. Seguindo os princípios de “liberdade, igualdade e fraternidade”, com ênfase na igualdade, todos passaram a ter que circular pela direita. Diz a lenda que os Estados Unidos também adotaram a circulação à direita como forma de se contrapor ao Império (Inglaterra). Esses pequenos simbolismos não são divertidos? Pois é, Nora é também cultura. Pode até ser inútil, mas é cultura.
A Suécia mudou a mão de esquerda para direita no dia 3 de setembro de 1967 (foto acima), o chamado Dagen H (Dia H, de Hoger, direita). Pelo visto, também não foi fácil, apesar de que com a conhecida organização escandinava criaram uma comissão para cuidar do assunto, com autonomia para campanhas de divulgação e adoção de medidas que fossem necessárias. Mas atualmente, segundo apurou o DataNora, 66% da população dirige circulando pela direita e 33% pela esquerda.
Nos anos 1900, na América, apenas Argentina e Uruguai usavam a mão inglesa (foto 4). Mas eis que em 1942 começou a ser construída a ponte que ligaria as cidades de Uruguaiana (no Brasil) a Paso de los Libres (na Argentina). Imaginem, caros leitores, a confusão que seria nos acessos à dita ponte. Países como Inglaterra, Austrália, Japão ou Nova Zelândia terem mão ao contrário, tudo bem — afinal, são ilhas e justamente por isso não há tantos inconvenientes. Já quando se está num continente como África do Sul há outros problemas. Mas nesse caso vários países vizinhos também dirigem pela esquerda… Imaginem quando se chega ao país por uma ponte, então.Pelo menos havia cabeças pensantes que desde o início perceberam que haveria um problema. Foi então que o pessoal do Automóvel Clube Argentino, responsável pela sinalização, normas e, basicamente, pelo sistema de trânsito da Argentina, analisou o funcionamento do trânsito nos Estados Unidos e nos países vizinhos e começou a campanha para mudar a mão do trânsito. Afinal, no Brasil a circulação já era pela direita.A ponte ficaria pronta em 1945, como de fato ficou, e o país aproveitou para mudar a circulação toda. Exatamente no domingo 10 de junho às 6 horas da manhã. Pontualmente às 5h55, os agentes municipais que cuidavam do trânsito, os tradicionais “zorros grises” (raposas cinzas, por causa da cor do uniforme) tocaram seus apitos e indicavam aos motoristas que mudassem de faixa ou parassem por 5 minutos onde estavam para permitir a mudança. Eu não apenas não era nascida como meus pais sequer se conheciam e ainda brincavam com bonecas e carrinhos, mas imagino o que deve ter sido.
Mais uma curiosidade, pois afinal minha formação montessoriana me faz ver sempre uma oportunidade de aprender ou de ensinar: quem assinou o decreto da mudança de mão foi o então ministro de Obras Públicas Juan Pistarini. Se alguém já ouviu falar vagamente nesse nome não estranhe: é o nome oficial do aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, ministro Pistarini.
O presidente na época era Edelmiro Farrell e além do Automóvel Clube o Touring Clube (que na Argentina sempre foi infinitamente menor do que o ACA) também colaborou. Foram distribuídos folhetos, foi feita uma supercampanha e até linhas telefônicas dedicadas foram colocadas à disposição da população para esclarecer dúvidas. Deve ter sido uma operação de guerra.
Também houve “ensaios” que adoraria ter presenciado. Um deles, no mês de maio de 1945 incluiu um dia inteiro de voltas em torno do Obelisco no sentido contrário, na avenida 9 de Julho esquina com a avenida Corrientes, que teve seu sentido alterado. Dizem que a Praça da República se encheu de gente naquele dia, apenas para olhar o espetáculo.
Paralelamente foi alterado o sentido de algumas ruas o que, é claro, aumentou a confusão. Mas por incrível que pareça foi bastante tranquilo, de tanta campanha de esclarecimento que foi feita. Foram pintadas setas na parte traseira de ônibus e caminhões e colocados adesivos nos carros de passeio para indicar para qual lado os veículos teriam de ir para ultrapassar.
Como sempre, a criatividade pegou carona na novidade e algumas agências de publicidade aproveitaram a ocasião para promover seus produtos. Minha campanha favorita é a da joalheria Escasany, que mostrava um relógio de pulso que passava da mão esquerda para a direita. O slogan? “Hoje, mudança de mão”. O analgésico Geniol, saiu-se com algo assim como “Vá pela direita e vá de Geniol” e a líder de tintas para parede dizia: “a única (de)mão que não muda é a da tinta Alba”.
O Uruguai pegou carona e fez a alteração no dia 2 de setembro de 1945 às 4 horas da manhã, mas o volume de veículos infinitamente menor fez com que fosse bem mais simples a troca. Ainda assim, nas primeiras semanas eles proibiram velocidades acima de 30 km/h dentro dos perímetros urbanos, 40 km/h nos perímetros suburbanos e 50 km/h nas estradas.
Já comentei neste espaço que dirigi em alguns países “na mão contrária”. Sem maiores problemas, exceto atenção em alguns casos:
– trocar marchas (prefiro carro automático, parece que meu braço esquerdo não serve para isso, hehehehe)
– acionar limpador de para-brisa no lugar da seta e vice-versa (que ódio!, especialmente quando queria ultrapassar alguém)
– entrar numa rotatória sem outro carro para me servir de referência
– sair de parada para entrar numa estrada vicinal ou com pouco trânsito. A tendência é ir para a pista errada.
Mas o pior mesmo foi nas Bahamas. A direção é mão inglesa, mas com carros de fabricação americana, com volante à esquerda. Não dirigi mas andei de táxi e é infartante ver o motorista colocar o carro inteiro na outra pista sem ter absolutamente nenhuma visibilidade para ultrapassar um carro.
Outra curiosidade: se na Argentina se anda pela mão direita, nas Ilhas Malvinas mantém-se a “mão inglesa”. Afinal, elas também são as Falklands. Bem, mas não vou entrar nesse assunto…
Mudando de assunto: sobre a corrida do Japão, a Ferrari está dando de presente para o Hamilton o campeonato. O inglês é excepcional e merece, mas também está recebendo mais ajuda do que poderia imaginar. E, caríssimos leitores, darei uma pausa nas minhas escrivinhações. Volto no dia 31 de outubro.
NG
Atualizada em 10/10/18 às 16h50, substituição do mapa com os países de mão direita e mão esquerda)