A palavra “qualidade” em automóveis talvez seja a missão mais difícil de ser atingida na sua plenitude, já que ela abrange uma enorme gama e aspectos do automóvel.
Tem a qualidade de desempenho, tem a qualidade dos processos de manufatura, tem a
qualidade de atendimento e comunicação da marca, qualidade do produto, que por si só já é um universo.
Do ponto de vista técnico do produto, existem itens que exigem qualidade assegurada de funcionamento, mesmo que ele nunca seja usado na vida do automóvel. O airbag é o melhor exemplo.
Já o design encampa em suas disciplinas a percepção de qualidade, não somente pela
aparência, que é somente um dos sentidos (visão) mas também o toque, o odor, e o som (ruídos)…só falta o paladar.Cada um destes sentidos tem suas ramificações.
Na visão, as formas, as cores, o brilho, a eficácia da luz projetada, as curvas e linhas, os reflexos na superfície, o alinhamento entre as peças, faceamento, e muito mais.
É por ela (a visão) que a gente se apaixona pelo exterior.
No toque, além da maciez ou aspereza da superfície, está a percepção das vibrações, não só as grandes, geradas pela suspensão, mas também as pequenas geradas por algum elemento mal fixado e que podem influir de maneira negativa, a precisão de funcionamento de comandos, sensação de calor ou frio, correntes de ar, suporte ergonômico nos bancos.
Sempre relembro a história da maçaneta externa da porta, que é onde o piloto toma seu primeiro contato com o carro.
Ao abrir a porta do carro você já pode avaliar a qualidade de toque da superfície da maçaneta, se necessita um certo esforço para acioná-la, e ao mesmo tempo o ruído de acionamento e destrave, vibração da chapa da porta, que já te dá uma direção sobre se o revestimento acústico do carro é bom ou não.
Além disso, quando você abre a porta e entra no carro, você toma contato com a “atmosfera” da cabine, produzida pelos materiais de interior. Se o material for bom, o cheiro também é.
O odor, é também assunto de grande preocupação e cuidado. Peças plásticas e tecidos, quando expostos ao calor em uma cabine hermeticamente fechada liberam gases que não podem ser tóxicos e também devem ser agradáveis.
Certas marcas de automóvel tem seu próprio cheiro! Um exemplo é como a Audi lida com o cheiro dos seus interiores com acabamento em couro.
No tratamentos das peças que serão usadas na manufatura das capas de bancos, primeiro se neutralizam completamente a pele do seu próprio cheiro. Depois as peles recebem um perfume (de couro Audi) que vai resistir a vida toda do carro.
Quem já teve um Audi no uso diário nunca esquece o cheiro de couro da marca.
Agora, os ruídos e sons de um carro têm muita influência na percepção de qualidade.
Ruído de rolagem, ruído do motor e escapamento, ruídos de suspensão, ruído gerado por atritode peças plásticas ou couro, qualidade de acústica da cabine em relação ao sistema de som e a qualidade do sistema em si.
No exterior, qualidade de fluxo aerodinâmico sem turbulências localizadas e vedação da cabine são fatores importantes.
A ideia é matar todos ruídos e vibrações e lapidar o som do motor, sempre dentro dos
parâmetros e leis de cada região.
Alguns carros são tão “civilizados” no quesito silêncio, que te decepcionam. Explico.
A primeira vez que fiquei com um Audi TT como carro de serviço estava muito
empolgado para sair rodando pelas estradas secundárias ao norte de Wolfsburg. A posição mais baixa e o desempenho do carro eram sensacionais.
Porém depois de algumas semanas, ele virou um carro”normal”, como um Golf com banco mais baixo, alias meio desconfortáveis para o dia a dia.
Nenhuma vibração, motor potente mas silencioso, suspensão refinada, acabou domesticando demais o animal e embotando os sentidos, pelo menos para aqueles que procuram a emoção de dirigir.
O grupo aprendeu e hoje dirigir forte um Golf GTI no modo Sport é uma experiência que deixa marcas.
Bom, mas o que o Design tem a ver com isso?
Tudo!
Desde o início do projeto trabalhamos com engenheiros e técnicos em variadas disciplinas para viabilizar todas necessidades técnicas, seja quanto à aerodinâmica, estiramento de chapas, montagens de peças “vizinhas”, inclinações, matching, difusores, em resumo, cada milímetro da superfície é criada, e analisada, e modificada dezenas de vezes até atender a aparência perfeita e todas as exigências técnicas.
Definição e acompanhamento da implementação das texturas em peças plásticas, maciez dos materiais de revestimento, perfeito acesso e “grip” para comandos rotativos, pega do volante, “shape” dos trincos de porta e tampas, posicionamento dos “ícones” de comando, enfim, tudo que se vê, tem nossa mão.
E para garantir que tudo está em ordem, antes dos protótipos, construímos o carro virtual, que é o carro completo (aparência) em 3D.
Os carros virtuais são periodicamente apresentados a um grupo seleto de técnicos que têm como missão checar todos detalhes da construção.
Estas apresentações são feitas em grandes telas de alta resolução e dimensão (5 m x 2 m) e podem ser apreciadas em 2Dou 3 D, com ou sem óculos 3D.
Assim, o “chefe” pode pedir para ver detalhes de acabamento de milímetros, ampliados nos 5 metros de tela de alta resolução. O resultado é que nada passa despercebido, e tudo é questionado.
Para cada apresentação existe uma preparação enorme, e todos os documentos de engenharia devem estar à mão para eventual defesa de dúvidas.
No passado fazíamos tudo à mão, usando apenas algumas chapelonas e listas de pontos que eram aplicadas manualmente na superfície, principalmente na simetrização do modelo.
É por isso que a maioria dos carro até fins dos anos 80 tinha o lado esquerdo sempre diferente do lado direito.
No Brasil, muitos confundem o sentido da palavra, já que associam qualidade com luxo.
Todos modelos da marca tem o mesmo índice de qualidade, não importa que se trate do modelo de entrada ou no modelo mais luxuoso da linha.
Para mim, qualidade, no sentido mais amplo de entendimento é um conceito, um estilo de vida. Tomei meu primeiro contato com o conceito de qualidade quando cursei o Senai, como aprendiz de modelador técnico.
Lá, eu tomei contato com a técnica, com processos industriais, com desenhos ortogonais que usávamos para construir o modelos, na época de madeira.
Para começar, comecei a sentir na pele uma das palavras que estão associadas à qualidade: disciplina.
Não há qualidade sem disciplina.
Começar pontualmente às 7 horas da manhã, obedecer à risca a agenda diária, aprender a organizar o local de trabalho, fazer bom uso e manutenção das ferramentas de trabalho foram alguns dos elementos de que eu só tinha ouvido falar, mas com que deparei no curso.
Tanto na escola técnica quanto na companhia (GM) aprendi sobre postura de trabalho, respeito pelos colegas e ambiente de trabalho.
Com ao Desenho Ortogonal, aprendi que não havia espaço para erros, já que o desenho seria a base para a construção dos modelos.
Na construção do modelo, que era feitos na oficina da escola, não havia espaço para desvios. Tudo tinha que estar absolutamente correto antes de liberar os modelos prontos, sendo que todos modelos terminados passavam nas mãos de nosso mestre para conferir medidas, ângulos, acabamento, etc.
Mesmo assim, muitos anos passaram antes de eu realmente entrar na discussão sobre o que é qualidade.
Os modelos feitos feitos no Brasil nos anos 70, 80 e início dos 90, antes da era digital, ainda ficavam muito a desejar, já que trabalhávamos com ferramentas análogas e todo trabalho era feito à mão, que por si só, não garante a qualidade total.
Nas primeiras vezes em que fui trabalhar na Alemanha a diferença de qualidade dos nosso modelos versus os modelos alemães eram gritantes.
Eles tinham mais experiência, mais organização, um time muito maior, equipamentos ferramentas de ponta. Além disso, o conceito de qualidade dos colegas alemães era muito superior ao nosso!
Mas, por que esta diferença?
No princípio eu perdia a paciência quando os colegas alemães apontavam pontos de melhoria sem fim em nossos modelos, décimos de milímetro que nunca seriam percebidos pelos clientes brasileiros, portanto, em minha opinião, insignificantes.
As correções era sofridas, pois muitas das pequenas modificações acabavam dando um trabalho enorme pois a mudança de 1 mm na superfície pode alterar muito as peças vizinhas.
Após o serviço, saía para caminhadas e nos fins de semana rodei praticamente toda Alemanha e países vizinhos e, como artista e Designer, não pude deixar de comparar “visualmente” as diferenças entre a Alemanha e o Brasil.
Calçadas perfeitamente construídas e alinhadas, jardins impecáveis, prédios públicos de altíssima qualidade e feitos para durar uma eternidade, estradas belíssimas, com curvas compensadas, sinalização perfeita e em certo trechos, velocidade ilimitada.
Limpeza em tudo que é público, respeito pelas normas e leis, alinhamento, precisão, e equilíbrio.
De volta ao Brasil, minhas estadas na Europa muito contribuíram para que eu então deparasse com a FALTA DE QUALIDADE que nos rodeia.
Só para comparar com o escrito acima, calçadas sujas e quebradas, abandono de áreas que setornam grande depósitos de lixo, favelas, prédios públicos podres e com péssimo atendimento, História destruída, pichações sem fim, desrespeito pela lei e regras, estradas esburacadas, sem pavimentação ou com asfalto em péssimas condições, sinalização precária, desalinhamento geral, nada de precisão, nada de equilíbrio…
Pois é, foi difícil para mim ter que, por fim, admitir que nós não temos bons exemplos de qualidade na nossa vida cotidiano, fora da companhia.
Trabalhar, desenhando automóveis numa fabricante internacional, acabou desenvolvendo em mim esta noção de qualidade, que acabou se incorporando na minha vida cotidiana.
Limpeza, disciplina, e precisão passaram a fazer parte da minha visão das coisas.
Não posso dizer que isso caiu fácil em mim.
Na realidade acabei sofrendo muito porque para onde eu olhasse sempre estava à procura destes requisitos básicos da qualidade: alinhamento, balanço e equilíbrio.
Esteja onde eu estiver, sempre estou a procura de problemas de qualidade, e este exercício acabou se tornando uma rotina, como um Jogo dos 7 Erros que nunca termina.
LV