Sei que vocês gostam de conversas de bastidores, portanto hoje vou lhes contar o que faz um diretor de Design.
Numa empresa como o Grupo Volkswagen o cargo de diretor está abaixo do vice-presidente, no
meu caso vice-presidente de Desenvolvimento do Produto.
Nosso diretor, invariavelmente um alemão, comanda várias divisões além de Design. Engenharia, que se divide em carroceria, acabamento, elétrica, chassi, powertrain, em área de protótipos e testes, segurança veicular e muitos outras disciplinas relacionadas a tecnologia dentro e fora da própria engenharia.
O Desenvolvimento de Produto lida com fornecedores, e com a própria fábrica, não somente nos planos de linha de montagem, mas também controlando e avaliando em si, o produto no final da linha.
O vice-presidente é quem tem o “budget”, isto é, o dinheiro que distribui entre as áreas conforme
a necessidade de cada uma.
O diretor de Design acaba se envolvendo com todas outras áreas, já que é a área de design que
define a forma e o tratamento de superfície do produto como um todo.
A engenharia depende 100% das informações do Design para poder trabalhar. Mais especificamente, todos precisam de uma superfície matemática de cada uma das peças visíveis do automóvel, assim como sua definição de tratamento de superfície.
Portanto o trabalho principal é gerar e aprovar estas superfícies que abrangem desde um simples botão de comando até a superfície geral do corpo do automóvel, feita em aço. Cada milímetro de cada peça é controlado, e nada está lá por acaso.
Cada projeto tem seu cronograma, que é praticamente imutável, e por isso mesmo, deve conter o
“tempo para imprevistos”, que sempre acontecem. Além disso, sempre temos vários projetos acontecendo ao mesmo tempo, alguns muito excitantes, outros nem tanto, mas todos com hora para começar e acabar.
A escolha da forma final de um automóvel é um processo muito longo que começa com desenhos 2D, e terminam com um modelo em escala 1:1, representando a aparência final do carro de produção.
Para se chegar a forma final, temos três “milestones” com um intervalo de seis meses cada um.
Na primeira apresentação são mostrados em média três modelos com formas distintas que
competem entre si. Os três modelos devem ter as medidas básicas idênticas, porém muitos detalhes são a principio ignorados.
Por este motivo, a agenda de reuniões do Chefe Designer é um verdadeiro caos!
Temos que delegar tarefas para os gerentes e supervisores, que não são o suficiente para tanto
“pepino”,
Reunião é uma palavra muito soft para definir a reunião de técnicos altamente especializados
defendendo seus interesses e problemas.
Um detalhe muito profundo na chapa está rompendo o aço; uma peça X que agora tem que ser idêntica ao modelo alemão por motivos financeiros e não cabe no lugar onde tínhamos previsto; um teste de resistência que apresentou fadiga de materiais; um fornecedor que faliu e causou uma catástrofe em peças-chaves do carro, causando a necessidade de aprovar novas peças que não foram submetidas ao processo de aparência; uma roda que sofreu fratura no teste e necessita “adaptações” nos raios, que quando aumentados, destroem o Design; peças que saíram muito mais caras que o previsto e portando precisam ser depenadas; críticas do chefão, em alguma reunião no fim do mundo que nos obriga a mudanças drásticas de última hora; e assim por diante. Uma lista sem fim.
No passado, antes da tecnologia digital, quando não tínhamos nem computadores, nem telefones, e-mails, etc, o volume de trabalho era compatível com a capacidade humana.
O e-mail foi uma invenção do diabo, pois você solta uma mensagem para 50 “colegas” e deixa a
coisa “pegar fogo”
Meu recorde é 120 e-mails não lidos. (mesmo assim a fábrica não parou!).
Você aprende a saber o que priorizar, pela experiência e dividindo responsabilidades com seu
chefe.
Uma das minhas especialidades era tratar diretamente com a alta cúpula do Design e por
consequência, das principais áreas técnicas em Wolfsburg, Alemanha.
Morei como expatriado duas vezes num total de seis anos, com família e tal. Mas nas minhas várias seções de viagens mensais, às vezes quinzenais e até para uma única reunião, voltando para o Brasil no mesmo dia de chegada. Passei no total mais de 20 anos fora do Brasil.
Aprendi a falar muito bem o inglês e me virava com o alemão, até em reuniões onde eu entendia
somente 15% do que estava sendo discutido.
Mas acima da linguagem convencional, existe a linguagem corporal e os desenhos, artísticos e técnicos, que têm linguagem uma universal.
Também, sua postura numa terra que não é sua é muito importante.
Eu sempre me posicionei como “aprendiz”, o que não deixa de ser verdade numa potência como
a Volkswagen.
Mas ser gentil, simpático e conhecedor do assunto não é suficiente para “ganhar os alemães”.
Você tem ao mesmo tempo que ser duro, e lutar pelos seus interesses, sem demonstrar medo.
Foi assim que eu sempre ganhei a confiança dos meus chefes alemães.
Já com os brasileiros a postura tem que ser outra, já que na sua grande maioria o brasileiro leva a discussão para o lado pessoal, o que não existe na Alemanha.
No projeto Fox eu encarei o todo-poderoso chefe de engenharia da VWAG para defender a posição do Brasil e acabei levando a melhor, graças às evidências do mercado brasileiro, e claro a ajuda de técnicos de lá, que na grande maioria gostam dos brasileiros.
Portanto,, como sempre sua postura profissional deve se basear na sua capacidade e conhecimento técnico, no ideal da marca e na conduta cristalina, dentro e fora da VW.
Lidar com a parte financeira é também um grande desafio, já que existem muitas jogadas que
são usadas para obter o dinheiro necessário para atualizar o estúdio e tocar os programas em
andamentos.
Normalmente, os mais espertos jogam 25% a mais, pois sabem que sempre vai haver cortes
vindos da área de Finanças e do próprio presidente da companhia.
A grande verdade é que sempre tivemos grandes apertos devido à instabilidade do mercado, o
que acaba gerando pânico nas áreas financeiras, pois como o Grupo Volkswagen pertence a
acionistas que são muito duros quando se trata de dinheiro.
Se você planeja um volume de venda e depois vem uma crise de mercado, o que é comum no
Brasil, a companhia cai em desgraça, dá prejuízo, o que acaba sempre com cabeças rolando.
A primeira viajem internacional foi para dar suporte ao “clinic test” do Voyage Fox, que seria exportado mais tarde com grande sucesso. Quando voltei para o Brasil, maravilhado com a experiência nos “States” não pensava em outra coisa a não ser voltar a fazer outra viagem como aquela.
Pois após algumas semanas a coisa começou, e comecei a viajar para a Alemanha para desenvolver um derivado de um estudo do que seria o Polo, em Wolfsburg e a coisa nunca mais parou.
Graças ao desenvolvimento de peças específicas os fornecedores me renderam muitas viagens
para Espanha, França, Itália, por períodos que duravam, de algumas horas, dias ou até meses e anos.
China, México, República Checa e Inglaterra também entram na lista das visitas técnicas. Deserto na África do Sul e nevascas na Finlândia eram viagens relativas a testes de inverno e verão.
A Suíça virou uma visita constante graças ao Salão de Genebra que acompanhei nos “press days” durante décadas (além dos bienais Salões de Frankfurt e Paris), fora as visitas a amigos, ou também como passagem ou destino nas várias viagens de Turim para o salão, e do salão para Wolfsburg que fiz duas vezes com uma T5 com toda a família.
Para voar, vinha há muito tempo preferido a rota, São Paulo- Zurique-Hannover feita pela Swissair, pelo aeroporto menor, mais aconchegante (Zurique), menos correrias, melhor atendimento de terra e em termos de qualidade de equipamento comparável aos da Lufthansa. As duas são a cabeça da “Star Alliance”, que é o grupo que as controla.
Durante mais de 20 anos usei o First Class Lounge da Swissair ou Lufthansa. Meu status no grupo Star Alliance se tornou tão alto que eu tinha direito a limusine me esperando ao lado do avião para me levar ao Lounge, sempre com incríveis limusines Mercedes ou BMWs. Para se conseguir isto basta voar muito.
Depois que voltei da Alemanha para atuar no estúdio brasileiro ganhei um “troféu” da Lufthansa
que comemorava a minha milhagem do ano. Dizia: “Este ano o Sr. voou até a Lua e retornou à Terra em termos de milhas.”
Foram mais te 768.800 km voados em um ano, o que daria uma média de dois voos intercontinentais por mês!
As decisões de Design são tomadas em harmonia com a linguagem na matriz e as principais
apresentações são feitas lá, em Wolfsburg..Nós, os brasileiros, fomos o primeiro país a ter a audácia de desenvolver Volkswagens fora da Alemanha, já que para alguns, um Volkswagen só poderia ser concebido na Alemanha.
Nas minhas primeiras viagens a Wolfsburg vivenciei uma cidade que estava a 20 quilômetros do
muro que dividia a Alemanha. Cheguei a visitar Berlim duas vezes ainda quando era uma cidade
murada dentro da Alemanha Oriental. Anos mais tarde eu iria morar em um apartamento que
ficava a alguns passos do ex-Muro de Berlim.
Depois vieram o mexicanos, espanhóis (pela Seat) e principalmente a China, que hoje é a grande
pilastra de sustentação da indústria automobilística mundial.
Esta imagem mundial da marca era o tema principal do Walter de Silva, meu grande Designer-chefe do Grupo VW, quando lidávamos com o incrível desafio de definir o Design de 12 das mais nobres marcas de automóveis do universo.
Ele, o Walter, me convidava para as reuniões do Grupo, mesmo sendo eu um terrorista latino que
roubava modelos da marca exclusivos para o Brasil e assim fazendo passava por cima do chefe
da marca, o Klaus Bischoff.
No fim, a política acaba sendo a principal arma para conseguir os projetos para o Brasil,
mantendo assim uma (mesmo que pequena) elite de técnicos capazes de criar, projetar, testar, e
produzir automóveis dentro dos padrões de uma marca como a VW.
Outra característica obrigatória para um Diretor é a habilidade de falar em público..Mesmo eu sendo um cara fechado, a característica típica de um Designer é ser um artista plástico, pela necessidade acabei me dando bem em falar em público.
O Designer tem que vender seu peixe, primeiro ao supervisor do estúdio e aos seus
companheiros (competidores), depois para o Designer-chefe e seu “staff”.
O Designer-chefe tem que vender o peixe (no caso da estrutura do Grupo Volkswagen), para o
vice-presidente e seus gerentes executivos, além de grupos de outras áreas como Finanças,
Qualidade, Marketing, e Produção.
Nas reuniões para o presidente, seu chefe tem que vender o peixe de uma maneira global e você
tem que vender sua proposta, normalmente demanda um enorme volume de dinheiro e trabalho.
Portanto a “audiência é grande.
Para estas reuniões centenas de funcionários de todas as áreas têm que preparar uma verdadeira enciclopédia de documentos, e nós da área de Design é que temos que preparar todos o modelos, seja de exterior ou interior, assim como as propostas de cores e tratamento de superfície de centenas de peça.
Já quando se tem que apresentar os modelos e propostas na “Matriz”, a coisa engrossa e muito.
Milhões são gasto na logística de modelos e protótipos assim como equipes de técnicos
especializados nas suas disciplinas por longos e constantes períodos.
Vender o peixe em inglês é absolutamente mandatório, as vezes até em alemão onde você fica
parecendo retardado e entendendo somente 20% to que está rolando.
Aprendi as duas línguas “on the job”.
Já o espanhol, aprendi com minha avó, e é uma espécie de “língua mater”.
Graças a esta facilidade de criação e apresentação de ideias, sempre baseadas em desenhos,
diagramas, fotos, amostras e modelos, temos uma linguagem universal.
As pessoas adoram as explicações de Design, especialmente nas apresentações de imprensa ,
nos salões de automóveis, e mesmo dentro da companhia, o Design é uma área secreta que
fascina as pessoas envolvidas com o automóvel.
O grande segredo para se dar bem em toda apresentação é demonstrar o conhecimento
absoluto sobre a matéria em discussão, que faz você transparecer segurança e parecer genuíno.
A parte ruim, a longo prazo, é que você acaba se jogando nos “projetos” e acaba se dedicando
100% ao trabalho, sem desvios ou distrações. A quantidade de problemas acaba preenchendo
todo o seu tempo, e muita coisa importante fica para trás.
LV