Esta história é um relato real da minha vida de Designer de automóveis, que no final dos anos 80
estava na cidade de Turim, norte da Itália, nos estúdios da Carrozzeria Ghia SpA, que já nesta época era um estúdio avançado europeu de Design para a marca Ford.
Eu e um grupo de técnicos brasileiros, entre modeladores, engenheiros e planejadores, estávamos desenvolvendo um Volkswagen sobre uma plataforma de um Ford, projeto no mínimo exótico e que de uma certa forma serviu como exemplo de como duas mentalidades e culturas completamente diferentes podem desenvolver um projeto complexo como um automóvel.
Só para você ter uma ideia do nível de dificuldade, as medidas nos desenhos do projeto Ford eram em polegadas, e da nossa engenharia Volkswagen, claro, em centímetros.
Porém, nós da turma dos que tem que FAZER coisas, como modelos, ferramentas, apresentações, desenhos, transporte, logística, e convivência diária com as pressões, tínhamos que nos entender de uma maneira ou de outra para que, dentro de um determinado período um modelo fosse admirado e aprovado, consolidando assim a joint venture de duas entre as maiores companhias de automóveis do planeta.
Eu morava num pequeno apartamento num bairro perto do estúdio onde aos sábados tinha uma feira-livre onde se podia comprar vinho sem rótulo, pedras de parmesão e mariscos deliciosos e carnudos.
Eu estava ali a princípio completamente ilegal, já que o pessoal da Ford não queria nenhuma pessoa, seja da VW, seja do Brasil, por perto. Eles queria tocar nosso carro sozinhos, mas meu chefe Winkler não deu moleza, e depois de movimentar céus e terra, conseguiu que eu permanecesse no estúdio junto com um reforço de engenharia e modeladores do Brasil. Como dá para notar, ainda nao existiam computadores, fax, e telefone era só com autorização do presidente da Ghia, Sr. Sapino.
Neste dia tínhamos marcado para acompanhar o teste de túnel de vento do modelo pré-aprovado do Logus. O modelo já tinha saído de Turim três dias antes, com destino a Colônia, na Alemanha, onde fica o túnel de vento da Ford Europa.
O procedimento de transporte na Europa, já era naquela época bastante especializado, e modelos em clay tinham um protocolo de transporte. O caminhão tem que ter temperatura controlada e suspensão a ar, para evitar trincas no modelo.
O modelo é primeiro colocado em um pallet (estrado de madeira) próprio para carga e descarga e a viagem de aproximadamente 1.000 quilômetros é feita em duas etapas, o que para caminhões com cabine-leito em ótimas estradas é uma moleza.
A coisa engrossa na época das nevascas, quando uma mínima distração pode se transformar num desastre de grandes proporções.Estávamos em três pessoas: o Sr. Winkler, meu chefe, um alemão, o Mike, um modelador americano perto da aposentadoria, e eu o Designer responsável pelo modelo.
Marcamos para nos encontrarmos no aeroporto de Caselle, ao norte da Turim e aos pés dos Alpes Suíços. Na hora marcada, todos se apresentaram, pontualmente como sempre, e embarcamos num Fokker F-28 num belíssimo dia de sol em direção ao norte. A travessia dos Alpes é um belo espetáculo visual e depois de uma hora estávamos aterrissando em Colônia..
Pouco depois das 10 da manhã já estávamos a caminho, de carro, pelas Autobahnen ao redor de Colônia, para o complexo que agregava o prédio do túnel de vento, dentro da área de pesquisa e desenvolvimento da Ford Europa.
Quando acontece um evento onde um “estranho” invade um espaço secreto, todas as precauções são tomadas para que os “estranhos” não vejam nenhum segredo e os da casa também se mantenham discretos sobre projetos “estranhos”.
O equipamento de túnel de vento da Ford era bastante moderno para a época, mas menor do que o da VW em Wolfsburg.
Porém, a qualidade do serviço foi exemplar, como não poderia deixar de ser, já que estamos falando de alta tecnologia e equipamentos e técnicos sofisticados e superespecializados.
Quando chegamos ao interior do enorme túnel, o carro já estava posicionado sobre a balança do túnel que mede o comportamento do modelo graças a pressão aerodinâmica de velocidades de até 150 km/h. Todas peças anexas aos modelos como espelhos, grade, calotas e outros penduricalhos, são além de fixadas mecanicamente, por segurança são também presas com um fita colante especial e bem poderosa. Se um espelho voar a 140 km/h pode causar danos ao equipamento do túnel.
Existe sempre um limite para se buscar uma melhora aerodinâmica, dependendo da aplicação do carro. Carros de alto desempenho recebem um cuidado especial, chegando ao cúmulo com os bólidos de corrida, onde a aerodinâmica é crucial para o desempenho e os Designers tem muito pouco que falar.
Já para carros de massa, que vão circular em países onde a velocidade máxima é no máximo120 km/h a aerodinâmica não é um item assim tão importante que chegue a destruir o design original.
Na realidade todo procedimento tem mais a ver com adquirir os números do túnel para pelo menos conhecer o nível de qualidade da penetração aerodinâmica do modelo.
A rotina consiste em fixar e medir o modelo, principalmente a área frontal que em Wolfsburg era
conseguida através da medida da sombra (vista frontal) do veículo que é projetada por um fortíssimo spot direcional que fica a algum prédios de distância. Hoje tudo é feito através da superfície matemática.
O teste para conseguir o coeficiente de resistência aerodinâmica consiste em ligar o potente motor que gira a monumental hélice que projeta o ar por um canal que passa pela “ala central” onde o modelo está fixado, elevar a velocidade do fluxo de ar até 120 km/h, tirar um relatório de medição de vários pontos e iniciar a desaceleração até a imobilização da hélice.
Hoje o túnel de vendo da VW foi completamente modernizado e é uma das maravilhas da Matriz.
É feita então uma análise nos números gerados pelos computadores, com ênfase a distribuição do peso sobre os eixos dianteiros e traseiros em alta velocidade. Se o eixo traseiro tiver números muito menores que o dianteiro, significa que o carro pode se tornar perigoso em curvas de alta, saindo de traseira.
O Logus era um notchback, um sedã 3-volumes com traseira baixa. Neste caso, a “lâmina de ar” se desprende do teto e não tem mais contacto com a carroceria, gerando redemoinhos que acabam freando o carro.
A solução é adotar um defletor traseiro para subir o canto da tampa traseira, ou subir toda superfície da tampa, o que normalmente destrói as conexões das linhas que vêm da frente do carro.
No nosso modelo não tivemos números ruins, e estávamos na média dos modelos desta categoria. Pelo que me lembre, deixamos o raio do canto da tampa traseira menor (estava muito grande, suave) em toda sua extensão, e medimos o modelo novamente. Outra passada a velocidade de 120 Km/h e outra medição. Por incrível que pareça, os números melhoraram.
Agora era só convencer os engenheiros a aceitarem o raio menor e seguir em frente com o projeto, e com bons números aerodinâmicos que sempre naquela época tinha um valor tecnológico importante a favor do novo carro.
Trocamos os pneus para outros de largura menor e instalamos um tipo de defletor abaixo do para-choque dianteiro, para restringir a entrada de ar por debaixo do carro. Rodamos o túnel novamente e obtivemos números ainda melhores.
Com números satisfatórios demos por encerrado nossa missão é nos preparamos para voltar a Colônia no início na noite.
Assim como entramos, saímos sem o menor vestígio de outros modelos ou protótipos e nenhuma foto da ação. Sinal de um ótimo sistema de segurança.
Já era fim do dia e resolvemos dar um pulo até o centro da cidade, famosa pelo seu “Domme”, uma catedral em estilo gótico decretada patrimônio da humanidade.
Meus parceiros, o Winkler (alemão, do norte) e o Mike (americano de Detroit) iniciaram uma
pequena competição, primeiro sobre conhecimento da arte do Design automobilístico, passando
por conhecimentos gerais e descambando para um quase batalha aberta.
Aos pés da catedral, magnífica, esculpida à mão, com torres altíssimas, um dos dois, não me lembro qual, chutou: “Vamos subir na torre mais alta, claro que a pé!?”
Foi uma das subidas de torre mais hilárias da minha vida, já que depois da milionésima volta na escada em espiral, já tontos, disparamos a dar gargalhadas, o que consumia ainda mais rapidamente nossas energias e nos fazia parecer três moleques arteiros.
A chegada ao cume foi triunfal, e ficamos um bom tempo, não admirando a vista da cidade (isto é coisa para pessoas normais…), mas sim a admirável construção totalmente em pedra cortada à mão.
Então, já com a respiração quase voltando ao normal, um dos dois declarou: “Então, agora está na hora de beber algumas cervejas”, e em Colônia a mais famosa é a Kölsch, servida em copos estreitos e doses relativamente pequenas, porém com teor alcoólico alto.
Descemos com outra crise de risadas os 700.000.000 de degraus da catedral e “estacionamos” na primeira cervejaria tradicional à vista e ai então a principal competição do dia começou.
Na realidade, eu perdi a conta bem cedo de quantas Kolschs cada um estava bebendo, mas eu só sei que estava bastante inferiorizado com a disputa entre EUA x Alemanha travada pelos meus colegas gringos. Imagino também que eles tivessem um incentivo histórico para aquela batalha, o que não era meu caso.
Naquela época a maiorias dos bares e restaurantes em Colônia fechavam cedo, ao redor de 22 horas.
Porém, o Winkler, “macaco velho”, conhecia lugares “underground” onde se podia beber Kolschs a noite inteira. Lá pela uma da manhã eu desisti e voltei para o hotel, mas a disputa entre eles continuou noite a dentro.
Na manhã seguinte, no aeroporto não houve muitos comentários sobre quem bebeu mais Kölschs, e os dois dormiram como bebês durante a travessia dos magníficos Alpes Suíços.
Mas este já era outro dia.
O Sr. Winkler foi um grande mentor para mim e para todo o grupo de engenharia da época, o que era muito complicado já que tínhamos as duas engenharias mescladas no prédio da engenharia de produto, Ala 17 em São Bernardo do Campo.
Trouxe muito conhecimento da matriz e conseguiu uma plataforma quase nova para o Gol “Bolinha” (geração 2) graças aos seus argumentos sobre ergonomia e à parceria e relativo bom entendimento com os parceiros da Matriz.
Acabou se envolvendo em uma intriga política e teve que voltar para a Alemanha. Foi neste episódio que me tornei o gerente de Design da Volkswagen do Brasil, numa promoção exótica, pois passei de um simples mensalista a gerente de departamento numa só tacada.
LV
Fotos: arquivo pessoal do autor