Fiquei muito contente ao receber o causo do João Cássio Palmeiro de Lima, cujo envio foi resultado de um causo anterior. Assim, a roda vai girando e causos interessantes como este vão se acrescentando ao acervo colocado à disposição de nossos leitores e leitoras.
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A BREVE VIDA DO “ITAMARZINHO” EM NOSSA GARAGEM
Por: João Cássio Palmeiro de Lima
Alexander,
A história do Emerson Gagliardi foi, no mínimo, inspiradora para eu compartilhar o meu “causo” com o Fusca “Itamar”. Confesso que nunca contei muito essa história por vergonha de mim mesmo, mas acho que chegou a hora de compartilhá-la. Já me sinto mais apto a lidar com esse sentimento.
A história remonta a 1993: meu pai, quando soube do relançamento do Fusca, logo começou a instigar a todos que comentavam com ele que iria comprar um carro “popular”, comprar um Fusca. Não que papai seja um fuscamaníaco, mas ele gosta de Fusca.
Pois bem, os anos correram e em 1995 meu avô (já falecido) me presenteou com um Fusca, sabedor de que eu gostava do simpático carro. Meu pai, ao me ver dedicando-me com afinco à reforma do carro, acabou infectado com o “Fuscacocus contagiosus” e começou a se preparar para comprar o seu Fusca Série Ouro que, segundo ele, seria a última série a ser fabricada. É parte de uma história que remete, indiretamente, ao início dos negócios da família, quando meu avô fora contratado para erguer os primeiros 50 mil metros quadrados da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo.
Acontece que 1996 chegou e o anúncio do segundo fim da produção do Fusca se deu entre junho/julho, justamente quando vovô adoecera, vindo a falecer na noite de 10 de julho daquele ano. Nem é preciso dizer que perdemos a última safra de Fuscas e, conformados, acabamos jogando o assunto para escanteio.
Nesta época eu tinha um (estranho, assumo) hábito de ler classificados do extinto jornal Primeiramão. Comprava o jornal só para isso e na primeira semana de agosto de 1996, um anúncio me chamou a atenção:
“Fusca 1996 verde Nice. Código 2. 100 km. R$ 9.100,00. Tratar com…”
Meio incrédulo, liguei para o telefone do anúncio e do outro lado da linha um senhor atende e diz que o carro é o “Fusca Código 2” e tinha apenas 100 km rodados. O homem não abaixava um real do carro, pois este era o valor de nota fiscal e quem comprasse, ainda ganhava o endosso do seguro.
Código 2 era a tabela de opcionais que contemplava, além dos “borrachões” nos para-choques, a buzina dupla, lanternas traseiras fumês, vidros verdes, vidro traseiro térmico, vidros laterais basculantes, bolsa porta-objetos na porta, relógio, acendedor de cigarros, volante espumado, enfim, era o Fusca Ouro excluindo somente os faróis de longo alcance, a malharia do Volkswagen Pointer e o volante do Gol.
Mais intrigado ainda fomos, meu pai e eu, ver o carro, no bairro da Mooca e, de fato, o carro era exatamente como o descrito. Nem preciso dizer que meu pai fechou negócio no ato e no dia seguinte, veio dirigindo o CFF-0126, um Fusca 1996, número de série 5131.
O simpático Fusca imediatamente se tornou o xodó da família, ganhando o sugestivo nome de “Itamarzinho”. Minha mãe saía com ele às vezes, assim como meu pai e eu. Os passeios eram mais rotineiros do que passeios propriamente ditos. Andar mais era somente quando pegava o carro para ir até Alphaville e voltar, para “abrir” o motor.
O carro vivia imaculadamente limpo e encerado. Brilhava por onde passava. Na época instalei um toca-fitas JVC com controle remoto e dois alto-falantes Arlen no tampão traseiro, que o antigo proprietário havia mandado fazer (parecia uma privadinha de bebê…).
Os adesivos nos vidros… Ah! Cada um tinha uma história! No vidro traseiro havia três, sendo dois nas pontas e um no meio. Do lado esquerdo, um belo desenho de um motorista estilizado feito e distribuído pela Sony. Na outra ponta, outro adesivo ganho da Nikon, e o espaço central ficou vago, aguardando o grande dia quando ingressei na faculdade: aí o “Itamarzinho” andava com um pomposo “FGV”, além do dístico da escola no vidro lateral.
Ligava-o quase que diariamente. O curioso é que bem onde ficava a saída do escapamento, havia uma lajota porosa, uma única, diferente das demais que calçam a garagem da casa dos meus pais e que por conta da água misturada com resíduos de enxofre contido na gasolina, acabou descamando certinho, deixando a marca de onde o escapamento assoprava e despejava o seu vapor de água ácida.
Quando ia ao curso pré-vestibular Anglo da Rua Sergipe, nos idos de 1997, o sucesso era garantido, desde aqueles que gostavam de carro até para aqueles que queriam tirar alguma onda e achavam graça de eu ir de Fusca.
Numa das aulas, um professor de Física chamado Celso “Pipoca”, ao falar de eletricidade, citou a questão dínamo versus alternador e falou de…Fusca! Foi a conta para a classe inteira berrar “Aê, Cássiôôô…”. Depois da aula, o professor me chamou em um canto e pediu que gostaria de ver o Fusca, que ele gostava, mas acabara vendendo o que possuía (acho que era um 1986) por alguma razão. E naquele dia eu estava com o “Itamarzinho” e ele logo se apaixonou pelo carro, oferecendo os mesmos R$ 9.100,00 pagos pelo carro, oferta devidamente negada.
Na semana seguinte, o mesmo professor me chama novamente e fala “você não quis vender o seu carro para mim, mas eu achei outro igual” e me mostrou um Fusca Ouro, cor prata Lunar e apenas 25 km, que ele havia comprado de um concessionário, carro em estoque e parado há um ano!
Outra história dessa época foi quando dei carona a uns colegas. Sempre fui um motorista calmo (muitas vezes lento, assumo) e neste dia parei em um semáforo e precisava sair na frente de uns carros e um ônibus para fazer o retorno uns 100 metros à frente. Foi quando um dos meus passageiros declarou: “Se essa ‘jaca’ andasse poderíamos retornar ali…”. Foi a senha para que eu, ao abrir o semáforo, arrancasse na frente de todos e cruzasse, com segurança, todas as faixas e chegasse rapidamente ao retorno da via.
Também era nessa época que arrumei uma paquera (ou melhor, uma candidata a paquera) que tinha um interesse especial em aprender a dirigir e eu, interessado mais na moça do que em transmitir conhecimento de direção e trânsito, virei seu instrutor nas horas vagas. Mas, acredite, embora o Fusca seja um excelente veículo-escola, eu o poupei dos trancos, marchas mal engatadas, motor morrendo, pé pesado de embreagem…e por aí afora. Joguei esse fardo para o Chevette cujas cruzetas estalavam a cada troca de marcha malfeita…
Outra passagem interessante aconteceu em algum dia de 1999 em uma oficina de ar-condicionado. Uma pessoa estava aguardando o reparo do condicionador de ar de seu carro e conversa vai, conversa vem, o assunto foi Fusca!
O homem tinha um Série Ouro, 1986 e de antemão mostrou certa incredulidade quando falei do nosso Fusca 1996. Sei lá, acho que achou que se tratava de um Fusca qualquer. Foi quando minha mãe chegou com o “Itamarzinho” e buzinou na frente da oficina para me chamar. A atenção logo foi para o carro. Ato contínuo o mesmo homem que minutos antes dava a entender que só o seu Série Ouro “prestava” se vira para mim e diz:
— Olha, eu tenho um consórcio contemplado e quitado de um Gol Mi completo. Te dou em troca do seu Fusca. Outra oferta delicadamente recusada por mim.
Foi nessa época que o destino começou a selar a morte do “Itamarzinho”. O antigo proprietário, visando baratear o seguro, instalou um segredo no carro, do tipo corta-ignição. Para desativar e dar a partida tinha que pisar no freio, apertar um discretíssimo botãozinho localizado atrás do miolo de ignição e dar a partida. A abertura da porta reativava o sistema.
O problema é que como todo segredo do tipo corta-ignição, ele começou a dar problema e mesmo fazendo o procedimento de desarme, o “Itamarzinho” se recusava a pegar, requerendo abrir a frente e desligar “na marra” o segredo.
Temendo estar sujeito a uma falha desse tipo num local inapropriado, acabei por remover o segredo e em seu lugar, usava sempre uma trava de volante, daquelas que passam de um lado ao outro.
Foi quando precisamente no dia 7 de setembro de 1999, uma terça feira, tirei o “Itamarzinho” da garagem e lavei-o inteirinho. Não satisfeito, encerei-o por completo, deixando-o pronto para sair. Papai disse “Não saia com o ‘Itamarzinho’. Vou sair e volto logo. Quando chegar você vai com meu carro”.
Nesta época — necessário mencionar — estava engrenando o namoro com uma moça que residia no Brooklin Velho e a paciência para aguardar a hora de ir buscá-la não era das maiores. Imagina então chegar a hora de ir e o pai não ter voltado para eu poder sair…
Desobedecendo “ordens superiores”, peguei o Fusca e sai do Alto de Pinheiros e me dirigi ao Brooklin precisamente na Rua Bartolomeu Feio. Parei o carro, pus a trava no volante e a mãe da minha então namorada me chamou para dentro, para tomar um Guaraná (nunca esqueci! Cada vez que bebo Guaraná lembro disso) enquanto esperava a Cá se aprontar.
Foi o tempo de acabar a bebida e ela descer e enquanto íamos para o carro, a Cá me dá um puxão no braço e grita: “Tem gente no seu carro!”. Quando ia gritar vi que havia um comparsa dentro de um Passat branco com o braço esquerdo fora do carro e um revólver na mão.
O único flash que tenho, além desse, da cena foi ver o meliante jogando o volante do “Itamarzinho” para trás e colocando uma ferramenta no estriado da coluna da direção (suponho que fosse uma chave grifo, pelo tamanho), dar a partida e sair cantando pneu.
E assim terminou a vida do” Itamarzinho”, um Fusca 1996, número de Série 5131 e apenas 3.500 km no hodômetro. O carro nunca foi achado e desapareceu como fumaça. Provavelmente teve suas peças e carroceria reaproveitados em outros Fuscas e o chassi repousando no fundo da represa do Guarapiranga.
Até hoje, quando vou à casa de meus pais, olho aquela lajota diferente, descamada, no piso da garagem, vem toda a saudade do “Itamarzinho” e a raiva que sinto de mim mesmo pela grande asneira que fiz e culminou com o fim de um grande companheiro, que não fosse isso estaria conosco até hoje.
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A bem da verdade o Fusca “Itamar” usado com imagem de abertura desta matéria não é um grupo 2, e isto se pode ver pela falta dos vidros verdes e das lanternas traseiras fumês, mas a cor é esta mesma; a imagem do “Itamarzinho” é apenas ilustrativa.
Agradeço ao amigo João Cássio Palmeiro de Lima por ter enviado espontaneamente este relato que certamente irá despertar muitos sentimentos, dentre eles raiva e pena…
AG
A cor do “Itamarzinho” aparece melhor na foto de abertura da matéria, já nas outras fotos, tiradas à noite, ocorreu uma aberração puxando mais para o azul, coisas das máquinas fotográficas; algumas cores são críticas no que se refere à sua reprodução por fotografia.
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