No último capítulo prometi falar sobre as grandes discussões, (limites, legislações, normas, testes, política, dinheiro…), enfim, tudo aquilo que torna a vida dos designers de automóveis mais complicada e limitada.
O interior do um automóvel é um poço de problemas a serem resolvidos, principalmente porque é nele onde o ser humano faz o corpo a corpo com a máquina.
Poucos produtos produzidos pelo homem têm uma função tão complexa e corporal.
Quando se começa a traçar os eventuais temas de interior para um novo carro, o desenho de “Package” é indispensável.
Ali você tem a primeira e mais importantes informação, que vai influenciar imensamente no resultado do automóvel como um todo: o “ponto H”.
O ponto H é um ponto imaginário que fica localizado no ser humano, ao redor da junção do eixo do fêmur com a bacia. Na realidade, o ponto H indica a altura em que o motorista vai sentar em relação ao assoalho do carro e do solo.
Num Fórmula 1 o ponto H está a menos de 3 dedos do chão, já num suve ele está a quase um metro do solo..
Quanto mais esportivo o carro, mais baixo o ponto H, aliás uma posição muito difícil no uso do dia a dia.
Na maioria dos carro de passageiros “normais” o ponto H está mais alto, numa altura mediana entre um carro esporte e um suve ou um caminhão, onde se senta com a coluna bem vertical, quase como numa mesa de trabalho.
Portanto, o ponto H vai, de cara, interferir com o “estilo do corpo” do carro, antes mesmo de ele começar a ser desenhado.
Porém o manequim não determina só o ponto H, mas sim muitas outras medidas importantes como, por exemplo, a altura do teto, o ângulo de conforto das costas, a “elipse de visão”, a posição da pedaleira, inclinação e posição do volante, alavanca de câmbio e todos outros controles do veículo.
Todos os controles têm que ser visíveis e acessíveis sem que o motorista tenha que afastar as costas do banco.
A elipse de visão determina a posição ideal do quadro de instrumentos, espelhos retrovisores, altura do vidro traseiro e dianteiro.
Outras medidas a serem consideradas, baseadas na posição do manequim, é o espaço de joelhos, tanto do motorista quanto dos passageiros, espaço de ombros, cotovelo (descansa-braços), puxadores de porta e, detalhadamente espaço, necessário para cada comando individual em relação aos dedos das mãos.
Também, baseado na posição dos manequins, é determinada a posição de cada bolsa inflável, seja no painel de instrumentos, seja nas colunas ou portas, ou os estudos do fluxo de ar dentro da cabine, vinda do sistema de climatização do carro.
Vamos deixar o manequim de lado por enquanto e vamos partir para outras encrencas.
Ao mesmo tempo em que os designers, livres e soltos, rabiscam seus temas de forma dos elementos do interior, inicia-se a “caixa de sentar” ou “interior buck” em inglês, que é esta composição do painel de instrumentos e console, bancos dianteiros e laterais de porta, que basicamente vão ditar a linguagem de design do interior.
No passado precisávamos construir este modelo, onde se pode sentar e apreciar o interior de um carro cinco anos antes de ele iniciar sua venda ao mercado.
Porém hoje, primeiro tudo é feito virtualmente e, se necessário, quando tivermos todos os elementos criados e revistos tecnicamente, pode-se construir um modelo físico para garantir a matemática, e para usá-lo para decisões de aparência nos “Design Reviews” da vida.
No painel o trabalho resume-se em criar uma cobertura para todas tralhas técnicas que estão por trás do painel: sistema de climatização, coluna de direção, sistema de infortenimento, bolsas infláveis, quadro de instrumentos, saídas de ar, porta- luvas, tubulações, fiações e central elétrica.
Existem basicamente dois tipos de painéis: os “driver oriented”, que está voltado para o motorista, ou outro que eu chamaria de “share concept”, que estão voltados para os ocupantes do carro.
Normalmente no conceito “share” o desenho é espelhado entre lado direito e esquerdo (simétrico)
Já o orientado para o motorista, a parte central do painel e integrada ao quadro de instrumentos e o desenho é assimétrico.
Com o aumento dos assistentes de condução e carros autônomos, a tendência é que o lugar do piloto, o chefe do carro, desapareça e os painéis serão de uso de todos passageiros.
As grandês brigas são provocadas sempre pelo preciosismo da engenharia, determinando posições de saídas de ar e controles que muitas vezes atrapalham ou inviabilizam os temas dos designers.
Então, começa a negociação. Estas áreas escondidas do veículo, como “por detrás” do painel de instrumentos, ou no compartimento do motor, são zonas de guerra entre os usuários, como a área de motores, elétrica, segurança e carroceria em si.
A área de carroceria, por sua vez, tem que lidar com todas estas necessidades, como passagens de chicotes, fixação de conjuntos complexos como os limpadores de para-brisa, arrefecimento do motor, captação de ar, sistema de ar-condicionado, etc.
Com a evolução das telas táteis, existe uma forte tendência dos comandos como botões de acionamento, botões rotativos e alavancas, assim como os complexos instrumentos análogos, velocímetros, conta-giros, relógios, desapareçam, sendo todos englobados por sistemas digitais disparados a partir de uma tela de alta definição e qualidade.
Essa simplificação digital acaba mudando a “linguagem de Design” do interior para temas mais calmos, com menos elementos visíveis, porém com uma abertura para o mundo, bem à frente do volante de direção.
Aliás, este sempre foi um receio da segurança veicular. Como todos sabemos, um segundo de distração pode ser fatal e as telas no começo de sua existência não podiam ser ligadas durante a condução do veiculo. Depois, com o próprio navegador, esta regra fundamental caiu por terra.
Hoje os automóveis da moda apresentam grandes telas, aliás várias, exemplo do novo Porsche Taycan com quatro telas, uma delas, a do motorista, a primeira com uma forma que não é retangular.
Ainda bem que junto com todas estas telas os carros mais caros venham com assistência à condução, que corrige eventuais descuidos do motorista viajando.
Junto com os navegadores, as grandes telas prometem um “novo mundo”, trazendo até você qualquer informação necessária, além de entretenimento e suporte técnico à sua viagem.
Agora, sempre fico lembrando de como evoluímos no que se refere ao cuidado com tudo que se trata de “sensorial” dentro do carro.
Seja no toque, na visão, no cheiro, houve durante os meus anos de trabalho uma enorme melhoria em tudo que se trata de como tornar o interior do automóvel um lugar perfeito para o ser humano.
Uma das encrencas envolvendo instrumentos combinados é que, antes das telas se tornarem tão populares, é que normalmente os instrumentos sempre floram protegidos por uma superfície transparente (acrílico) que por ser tão lisa, adquire a propriedade de reflexão, e o resultado é que, de dia, pode refletir áreas iluminadas e claras, que podem prejudicar a visibilidade em certas situações de luz.
À noite a coisa piora, pois estas “películsa” cismam em refletir, não só luzes-espias e idwogramas iluminados ao redor da área do volante e porta, mas às vezes também iluminação externa.
Normalmente esta pequena superfície acabou despendendo mais horas de trabalho do que o corpo todo do painel.
Por isto, às vezes me espanto como todo este preciosismo se perdeu, pois as grandes telas planas e reluzentes refletem todo seu ambiente sem a menor cerimônia.
No painel também não podemos esquecer o “porta-luvas”, uma ideia interessante para o usuário, mas terrível para os designers.
Você está tentando criar uma superfície bacana, com belas curvas e detalhes, aí vem o “porta-luvas”, um corte radical e racional sobre a superfície emocional e fluida.
Neste pedaço de painel também temos muitas encrencas como, por exemplo, os gaps do porta-luvas que devem ser o mais discretos e perfeitos possível, já que estão bem na cara do passageiro dianteiro e qualquer problema de paralelismo e faceamento pode causar a famosa “irritação” no cliente.
Bancos automobilísticos são também conjuntos extremamente complexos, mas para nós do design cabe fazer com que eles também sejam ergonômicos (conforto, retenção, firmeza, variações de posição), bonitos e práticos.
Além de sua complexidade estrutural, principalmente relacionada com a segurança dos passageiros, a capa dos bancos também são peças — na realidade conjunto de peças — que exigem muito tempo para serem confeccionadas, desde a criação dos temas de forma, definição dos “patches” (recortes), que depois de costurados formarão a capa, que vai cobrir as espumas dos bancos.
Quem define o desenho das capas de banco são os tapeceiros de design, que podem ser comparados a alfaiates de alta categoria., com a capacidade de definir a capa.
Outros tapeceiros, de linha de montagem das capas, só seguem o procedimento de costura, que devem ser exatamente iguais para cada banco.
Cortes e até mesmo algumas costuras já são feitas por robôs, que garantem a repetitividade das peças.
Os bancos são importantíssimos na segurança dos passageiros.
Bom posicionamento através da forma ergonômica, densidade correta das espumas para melhor suporte da coluna e quadris, retenção ao assoalho, regulagem de posições e ângulos de conforto, e fixação correta e sólida ao cinto de segurança, são fatores que influenciam no conforto e na segurança.
Volantes de direção estão a cada dia mais complexos e aglutinando mais e mais funções, o que acaba tornando-o também um item importante na segurança do veículo.
Fica claro que juntar controles no volante, onde você pode acioná-los sem tirar à mão do volante, faz todo sentido.
Este é mais um item que acabamos herdando dos carros de corrida. Além de esterçar as rodas do carro, o volante encampa uma bolsa inflável, o acionador da buzina (a mais tosca das funções), controle de som, telefone, controlador automático de velocidade de cruzeiro, e muitas outras funções, dependendo do carro.
Por ser uma peça móvel para melhor se adaptar ao motorista, é sempre um desafio criar o acabamento entre volante e painel.
Cada marca tem sua filosofia própria de como deve ser a forma do aro do volante.
Qual o “perfil do aro”, e como melhorar a pega em situações de suor nas mãos e uso de luvas, são somente alguns das diretrizes a serem seguidas nesta peça, que estar em vias de se tornar peça de museu com os famigerados carros autônomos.
Revestimentos das olunas A, B, e C, embora pareçam “peças fáceis” de se definir, na verdade são bem complexas.
A coluna A (dianteira) sempre foi alvo de experimentos, principalmente depois dos cálculos matemáticos que demonstram qual a seção ideal em termos de resistência,que sempre é bem maior do que gostaríamos.
O maior problema com ela é que ela deve ser mais fina possível do ponto de vista da elipse de visão do motorista, portanto sobra para nós, do Design, fazer ela ficar bonita, mesmo com todas estas limitações.
A coluna B (central) esconde sob ela o retrator e parte do cinto de seguranças e em alguns carro ainda tem bolsa inflável dentro desta peça.
Harmonizar o desenho da coluna B com o desenho dos revestimentos das portas é quase impossível e ela sempre acaba sendo um elemento estranho entre as duas portas.
A coluna C (traseira), além do cinto de segurança, esconde outros elementos como a válvula de saída de ar da cabine e tem que harmonizar com o revestimento do porta-malas e os bancos traseiros.
As maneira que as colunas “chegam” junto ao teto do carro, também geram muitas discussões, e a cada modelo vem uma exigência, dependendo da filosofia do chefe de engenharia.
Ela pode assentar sobre um rebaixo no teto para ficar embutida ou simplesmente sobre o teto, sob interferência, assim ela estará sempre completamente em contato com o teto, sem aberturas indesejáveis.
Um dos maiores dramas do interior é como fixar todas esta peças, sem que haja fixação visível e especialmente ruídos, seja de peças soltas ou peças que “se atritam entre si” causando ruídos indesejáveis.
Revestimentos das portas também tem suas discussões típicas.
Qual será o conceito do puxador de portas, vertical ou horizontal, e onde posicionar os acionadores dos vidros elétricos e comandos dos espelhos?
Ainda tem a parte dos alto-falantes, com suas telas e posicionamentos estratégicos.
Carros modernos sofreram grandes avanços em termos de acústica e as portas são alvos importantes, já que carregam os alto-falantes principais.
Aliás, a carroceria completa recebe também ajustes para vibrar em sintonia com outros ruídos gerados principalmente pela rolagem no solo e ruído do motor.
A ideia é que a carroceria tenha uma ressonância que anule as outras vibrações.
Mas o que resolve mesmo em termos de acústica são as mantas que são montadas abaixo do carpete. Estas sim, abafam vibrações e suprimem ruído, proporcionando conforto.
Porém, como tudo, a espessura dita o preço.
Nos carros populares as mantas são “magrinhas”, mas nós modelos “top” elas engordam visivelmente e é justamente por isso que eles são tão silenciosos e macios.
Depois vem os carpetes, peças únicas que recobrem todo o assoalho.
A espessura e tipo de trama dos carpetes também influencia muito a parte acústica do carro, e para os passageiros, um “feeling” de conforto.
O “matching”, o casamento entre as peças, é definitivamente o maior problema para o interior.
São centenas de peças de procedência diversas que devem conviver, juntas, com uma tolerância de milésimos de milímetros.
Aí quando você pensa que tudo está resolvido, não está.
Até agora estivemos falando de “shape”, ou seja da forma das peças e das maneiras como elas lidam com as peças vizinhas.
Mas cada peça do interior recebe também um acabamento de superfície.
Pode ser textura, no caso, gravada nas ferramentas de injeção, pintados, cromadas, ou ultimamente texturas gravadas, ou impressas na superfície.
Também temos aplicação de tecido, ou couro, em vários locais, como nos bancos e nos apliques dos revestimentos de porta e, no caso do couro, também recobrem de maneira perfeita volantes, alavancas, bancos e até painéis de instrumentos por completo.
Bom, aqui vai somente uma pincelada e exemplos de grandes discussões entre a técnica e o Design, que no fim acabam se fundindo na nova engenharia automobilística.
Especialmente no interior de um automóvel, estas disciplinas podem demonstrar plenamente o desenvolvimento de cada marca, a capacidade de evolução e a procura das soluções ideais.
Enfim, quando eu iniciei como designer, ao fim de um projeto eu sempre pensava: “pronto, agora já sabemos como fazer. No próximo será mais fácil.”
Ledo engano.
Cada projeto tem um mundo próprio, seja pelo conteúdos, seja pelas novidades tecnológicas, ou porque um chefe mudou e com ele vem uma nova filosofia, um novo procedimento ou um novo sistema.
Também pela evolução das linhas de montagem e um exército de fornecedores oferecendo novas soluções e produtos, a vida dentro de uma área de desenvolvimento de uma multinacional é uma aventura fascinante.
Estamos sempre aprendendo, seja pela técnica, seja pela política, a construir carros, cada vez mais inteligentes e seguros.
LV