Comecei a pensar nesta matéria ao ver as fotos que o amigo russo Anton Belousov postou de um interessante encontro de Fuscas e carros russos arrefecidos a ar realizado em Moscou.
Mas eu tinha uma curiosidade de muito tempo que era a de descobrir a história dos primeiros Volkswagens que acabaram em mãos de cidadãos soviéticos já durante a Segunda Guerra Mundial. Já escrevi sobre raridades encontradas em países da antiga União Soviética, resgatadas e cuidadosamente recuperadas por colecionadores, na matéria em três partes: “Fuscas Veteranos”. Mas ainda restavam detalhes históricos para ser desvendados.
Fiz uma entrevista com o Anton para elaborar a matéria sobre o evento e minha primeira pergunta foi: “Sei de veículos VW que chegaram à Rússia, então URSS (N.d.A: sigla de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ou simplesmente União Soviética), durante e logo depois da II Guerra Mundial. Mas e depois? Havia Fuscas na Rússia durante a vigência da Guerra Fria?” Pois bem, a resposta que recebi abriu espaço para uma matéria, e, com isto, o encontro em si vai ficar para uma próxima postagem.
Mergulhando na história
A Segunda Guerra Mundial (3/09/1939-2/09/1945) foi um evento terrível, com a perda de dezenas de milhões de vidas de cidadãos civis e militares e muito sofrimento imposto aos moradores das áreas deflagradas. Isto se aplicou também a essas áreas na URSS.
Dois grandes líderes guerreiros sucumbiram ao mesmo erro, Napoleão e Hitler, que foram vencidos também pelo inclemente inverno russo, que transformava as estradas que já eram difíceis no verão em trechos intransponíveis no inverno.
O Anton comentou: “A Segunda Guerra Mundial trouxe ao mundo uma crueldade sem precedentes e uma escala nacional de extermínio de pessoas, e pode, sem dúvida, ser considerada o mal mais importante da civilização do século XX.
Alguns aspectos dessa influência tornaram-se imediatamente objeto de estudo e estatística na URSS e, portanto, são bastante conhecidos, e outros, por várias razões, permaneceram na sombra. O mesmo aconteceu com automóveis e outros equipamentos capturados, que, com razão, chegaram ao nosso lado durante a guerra em uma quantidade justa.
Os troféus conquistados pelo Exército Vermelho como resultado dos combates foram uma fonte considerável de veículos de carga, de passageiros e carros especiais no período da “Grande Guerra Patriótica.”
Mais fotos de Kübelwagens e, também, motocicletas apreendidas pelos soviéticos, já guardados em um depósito (Fotos: acervo Anton Belousov):
A tecnologia dos veículos confiscados nesse caso era muito, muito diversificada. Além dos modelos produzidos na própria Alemanha, os carros também vieram de outros países europeus, que já tinham sido capturados pela Wehrmacht na época, como era o caso da França.
Na foto abaixo, um exemplo da diversidade do parque de veículos que o Exército Alemão (Wehrmacht) usou na URSS, com caminhões Citroën T-45 e Mercedes LG-3000. Dentre os veículos de passageiros um Citroën 1941, modelo Traction Avant Familiale, mais comprido, com três fileiras de bancos e uma janela a mais nas laterais traseiras (aliás um carro totalmente inadequado para estradas ruins):
Carros-troféus… Eles não foram comprados — foram capturados ou, mais frequentemente, simplesmente apanhados. Onde quer que se encontrassem, eles inevitavelmente representavam parte integrante do cenário da linha de frente
Muitos dos veículos estavam quase inteiros, mas outros estavam ou queimados, ou esmagados em pedacinhos; eles se amontoavam ao longo das margens da estrada, enferrujados nos campos e nos taludes. Nas cores cinza sujo, amarelo arenoso ou em manchas coloridas de camuflagem. Alguns deles congelaram em poses ridículas, como se jogados de uma altura ao chão pelo poder de um furacão enorme e generalizado.
Adiante o Anton esclareceu: “Durante as operações ofensivas do Exército Vermelho, a Wehrmacht e outras formações militares da Alemanha fascista perderam uma miríade de veículos automotores. O exército fascista alemão sofreu perdas tangíveis de seus carros nos primeiros meses da guerra: em julho — perto de Yelnya, em agosto, perto de Dnepropetrovsk, em novembro, na região de Rostov, e em muitos outros lugares.
Já em dezembro de 1941, um grande lote de carros a diesel alemães capturados durante a batalha pela capital foi reparado na Fábrica de Automóveis de Moscou. Após o reparo, eles foram imediatamente enviados para a frente de batalha com as insígnias e registro do Exército Russo.”
Como russo que é, o Anton se refere aos alemães como inimigos, sendo assim ele prosseguiu em seu relato: “Segundo o Alto Comando Alemão (uma informação presumivelmente incompleta), de 22 de junho a 31 de dezembro de 1941 as tropas alemãs perderam 35.159 caminhões, 24.849 automóveis de passageiros e 2.469 tratores na Frente Oriental. Somente na batalha de Moscou, no período de meados de novembro a 31 de dezembro de 1941, o Exército Vermelho apreendeu 15.049 veículos do inimigo.
Uma grande quantidade de troféus para o Exército Vermelho foi obtida como resultado da vitória nas margens do Volga. No total, durante o cerco e liquidação do grupo inimigo de Stalingrado, tropas da Frente Don apreenderam 80.438 veículos e 571 tratores. Um correspondente do jornal Estrela Vermelha que visitou a área a oeste de Stalingrado escreveu naqueles dias: “Os alemães deixaram milhares de caminhões, carros, principalmente jogados em barrancos, porque não tinham mais tempo nem meios para destruí-los. Cerca de 70% desses caminhões ainda podem ser reparados e recolocados em uso comercial.”
Dando continuidade ao assunto o Anton comentou: “Em nosso país, após a vitória, permaneceu um grande número de veículos Volkswagen KdF Tipo 60 / KdF Tipo 82E Kommandeurwagen, e do Tipo 82 Kübelwagen; este último despertou um interesse menor entre as autoridades soviéticas (possivelmente devido a ser “conversível” e oferecer uma proteção menor no inclemente inverno da região). Sem esquecer dos Schwimmwagens Tipo 166, bem mais raros, e que foram exportados principalmente para colecionadores; tanto que muito poucos permaneceram na URSS.”
Continuando: “Gradualmente, os veículos que haviam sido incorporados ao Exército Soviético, como descrito acima, foram transferidos para a economia civil, onde perderam seu principal recurso de manutenção. Estes carros geralmente acabaram em propriedade privada, razão pela qual muitos sobreviveram até hoje, sendo que alguns ainda estão em celeiros ou deixados ao relento em florestas (e são caçados por colecionadores do estrangeiro).”
Após a guerra, a maioria dos KdF Tipo 82E foi usada na agricultura e alguns permaneceram no Exército até uma época entre os anos 50 e 60, e depois disso os veículos ou foram sucateados ou foram vendidos para particulares. A propósito, muitos motores foram removidos dos carros e enviados para serrarias, moinhos e assim por diante, onde as unidades ainda podem ser encontradas em condição operacional, tendo trabalhado, sem reparo especial, por quase 70 anos em condições desafiadoras!
Mas, passados tantos anos, os até outrora relegados Kübelwagens passaram a ser desejados por colecionadores, independente do estado em que estejam, já que, mesmo nos casos de uma recuperação ser impossível, as peças e partes de lataria podem ajudar em outras restaurações, principalmente aquelas que são feitas tentando utilizar a maior quantidade possível de “aço de época”, evitando peças de reposição feitas hoje em dia com “aço moderno”.
Abaixo um exemplo disto, os restos de um Kübelwagen que já tinha sido incorporado ao Exército Vermelho, portanto já com registro soviético, encontrado na região de Kaliningrado. Não sobrou muito, mas não deixa de ter um relevante valor histórico (Fotos: acervo Anton Belousov):
O que por muito tempo foi uma mera sucata hoje tem um grande valor, tanto que são vasculhadas florestas, fundos de rio, feitas escavações, à procura do que sobrou de Kübelwagens e KdFs, como mostram as fotos abaixo (Fotos: acervo Anton Belousov):
Dois exemplos mais (Fotos: acervo Anton Belousov):
Nem só de resgate de Kübelwagens foi feita a história. Os mais apreciados eram os KdFs que ficaram lá pela Rússia, muitos sendo resgatados e incrivelmente restaurados nos dias de hoje por “mega-artesãos”, aliás como descrevi, através de alguns exemplos, na matéria que citei no início desta. Seguem algumas imagens do resgate de alguns destes raros KdFs (Fotos: acervo Anton Belousov):
E existiu um “pobre” Fusca que sucumbiu ante um acesso de criatividade de um camarada soviético, que criou um carro no estilo “Pelo amor de Deus”, como mostram as fotos abaixo; o tal funileiro criativo colocou faróis e rabo-de-peixe de Moscovich num KdF1943 (Fotos: acervo Anton Belousov):
Carros Volkswagen chegados no Pós-Guerra
Nesta parte vamos tratar da segunda parte de minha pergunta ao Anton, a saber: “Mas, e depois? Havia Fuscas na Rússia durante a vigência da Guerra Fria?”.
Os carros na URSS eram sinais de pertencer à classe superior — carros estrangeiros, especialmente. Por muito tempo a indústria apostou em caminhões. Para a construção do comunismo, o país precisava de maquinaria pesada, mas não de carros sem sentido — caprichos de egoístas. A produção de carros na URSS foi desenvolvida de uma maneira residual.
Nisto o Anton disse: “No entanto, Volkswagens despretensiosos (Tipos 1, 2 e 3) caíram nas mãos de novos proprietários (funcionários das embaixadas dos estados estrangeiros, diplomatas e outras nomenclaturas) desde os tempos do término da ‘Grande Guerra Patriótica’, pois algumas pessoas destacadas foram capazes de se dar ao luxo de obtê-los.”
Algumas cenas do cotidiano russo de várias épocas mostrando a presença de veículos Volkswagen, tanto Fuscas e Kombis, quanto alguns Tipo 3:
As fotos seguintes detalham carros com placas alemãs de trânsito (placa oval branca especial para veículos alfandegados) com os quais equipes estrangeiras viajaram pela URSS; alguns destes carros acabaram ficando por lá mesmo (Fotos: acervo Anton Belousov):
Falando de “VW Fuscas”, a maioria deles foi importada por funcionários públicos graduados soviéticos, geralmente militares, que os compraram, usados, da Alemanha Oriental (na época sob domínio da URSS, isto antes da queda do Muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 e da reunificação da Alemanha que se seguiu em menos de um ano). Na Alemanha, para se descartar um carro era necessário pagar um bom dinheiro e enfrentar uma grande burocracia. Com isto os alemães preferiam vender os carros para os russos e ainda sair com algum dinheiro. Muitos chefes militares astutos ajustavam os negócios no cenário dos carros que estavam em uso na Alemanha Oriental de maneira a canalizá-los para a URSS.
Abaixo, mais algumas cenas do cotidiano russo de época mostrando veículos VW nas ruas e estradas da URSS (Fotos: acervo Anton Belousov):
A esta altura o Anton comentou: “Houve casos em que os alemães trouxeram seus carros para as unidades militares soviéticas na Alemanha Oriental e os deixaram lá de graça com seus documentos, mas tudo isso agora pertence à História. Alguns carros foram deixados na URSS por funcionários estrangeiros por causa da não eficiência de exportá-los de volta para casa e, enquanto isso, a Rússia foi sendo abastecida com carros interessantes que nós restauramos agora, dando a eles uma segunda vida.”
Agora sabemos como veículos Volkswagen acabaram sendo introduzidos no cenário automobilístico russo, sem que isto tivesses sido planejado pela Volkswagen alemã. Eu tinha a curiosidade em saber como é que acabaram sendo formados clubes de Fusca na Rússia, sendo que este carro não tinha sido comercializado por lá.
Da próxima vez vamos tratar de clubes na Rússia, em especial sobre o evento de 1º de setembro último. Assim como nesta parte deste trabalho, também na seguinte o Anton Belousov será nosso companheiro nesta descoberta. Sou-lhe grato por isto.
AG
O Anton Belousov é um pesquisador da história do Fusca na Rússia, mantém um blog com várias publicações sobre o assunto. Temos contato há algum tempo e ele segue as minhas publicações; nós nos comunicamos em inglês ou russo.
A partir de uma publicação recente dele no Facebook vi as fotos do evento de 01/09/2019, fato que deflagrou meu interesse e a elaboração desta matéria. Agradeço a ele pela colaboração e participação neste trabalho. A apresentação pessoal do Anton Belousov será feita na matéria seguinte.
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