Caro leitor ou leitora,
O AE tem novo colunista, Mário João Soares Pinheiro. Engenheiro mecânico, conheço-o desde os tempos da revista Oficina Mecânica, portanto já se vão 30 anos. Até recentemente era gerente do campo de provas da Bridgestone, onde se aposentou; tem 60 anos. Sempre ligado ao mundo automobilístico, convidei-o para time do AE e hoje ele começa como colunista, já tendo assinado duas matérias como colaborador este ano (primeira e segunda). Com sua experiência e conhecimento, tem muito a contar na sua coluna “Pelos retrovisores”. Ele estará aqui às sextas-feiras, às 10h00, a cada 15 dias nessa fase inicial.
Bem-vindo ao time, Mário!
Bob Sharp
Editor-chefe
A ARTE E OS ARTISTAS
Por eles contemplamos o que já vivenciamos no dia a dia. Pode ser mero saudosismo ou, ao contrário, oportunidade de aprender e ver com olhos renovados o que vem pela frente. Afinal, como disse Milton Bigucci: ‘Entre o passado, onde estão nossas recordações, e o futuro, onde estão nossas esperanças, fica o presente onde está o nosso dever.’ Apesar de nos preocuparmos demais com o futuro, ele rapidamente vira passado. Então; permita-me compartilhar aqui mais esta contribuição.” – Mário João Soares Pinheiro
Normalmente, sou pela arte e não pelo artista..Ela fica e ele, com virtudes e defeitos, não. Existem os que carregam piano, os que tocam piano e há os virtuoses. É assim em cada segmento, na literatura, na pintura, no teatro e demais expressões. No automobilismo é igual; pilotar é uma arte, mas pilotar bem na chuva é obra-prima.
Claro, é dele que estou falando, o GP de Mônaco 1984. Assisti-o ao vivo e não consegui ficar sentado no sofá. Com perdão do trocadilho, foi um divisor de águas na história da F-1 moderna.
Um show sem comparação até hoje e ainda mais memorável que o de 1972 vencido por Jean-Pierre Beltoise debaixo também de uma chuva torrencial, que também assisti.
Por que o de 1984 é melhor?
Em 1972, mesmo não sendo pole position (largou em quarto), Beltoise, de BRM, chegou à primeira curva liderando e só fez abrir vantagem e tempo em cima de tempo mesmo com a chuva aumentando. O pole foi Emerson Fittipaldi, de Lotus 72-Ford, a primeira da carreira. No de 1984 o espetáculo foram as ultrapassagens e obstáculos vencidos por quem largou lá de trás com carro inferior. As tomadas de tempo haviam sido em tempo seco.
O que se viu foi realmente uma obra de arte. Ayrton foi, é e sempre será, o vencedor moral daquele GP. Um certo francês de McLaren-TAG/Porsche ganhou (note o verbo utilizado) porque outro certo francês pressionou um certo belga diretor da prova a acabar com aquela agonia e inevitável vexame.
Entretanto, o que poucos se lembram é quem foi o terceiro colocado, e que contribuiu para o espetáculo ficar ainda mais marcante.
Ele mesmo, o promissor alemão Stefan Bellof, de 26 anos e já reconhecidamente rápido nas provas de Esporte-Protótipo pela Porsche.
Assim como Ayrton, então com 24 anos, Stefan fazia sua estreia na F-1 naquele ano e pela primeira vez em circuito de rua.
Correndo pela já decadente Tyrrell-Ford, único carro com motor aspirado no grid, Stefan penou um bocado para conseguir a última posição de largada (20º), enquanto Ayrton saía em 13ª com o mediano Toleman-Hart.
Para se ter uma ideia do trabalho de ambos, o venezuelano Jonnhy Cecotto, companheiro do Ayrton, só conseguiu o 18º lugar no grid e o inglês Martin Brundle — arquirrival de Sena na F-3 no ano anterior — não conseguiu classificação com o outro Tyrrell-Cosworth ao se acidentar na curva da Tabacaria e não poder pegar o carro-reserva, impedido que foi pelo médico-chefe Sid Watkins por não se lembrar como chegou ao boxe.
Sempre lembrando que as tomadas de tempo para a largada foram sem chuva.
Mônaco é um circuito de dificílima ultrapassagem; todos sabem do glamour que é correr, vencer e convencer por lá, até por conta disso também.
Então, com a prova em supostas condições normais de piso seco, seria praticamente impossível os dois conseguirem as proezas que realizaram em condição tão adversa de piso e visibilidade na corrida.
Ayrton subiu 12 posições, a maioria por ultrapassagens, enquanto Stefan passou por 17 obstáculos para chegar na condição de, dizem os cálculos, também ultrapassar o francês como fez o Ayrton; talvez até mesmo disputar a vitória com Ayrton. São conjecturas.
Ayrton venceu várias vezes naquele circuito, mas nunca mais nessa condição, e Stefan, além de desclassificado (dizem, por a Tyrrell infringir o regulamento de peso) infelizmente faleceria um ano depois na Eau Rouge em Spa.
Então, como explicar a masterpiece desses dois grandes artistas?
É uma questão de razão e sensibilidade; em outras palavras, técnica e talento.
Naquela temporada, havia três fornecedores de pneus.
A Toleman, por questões contratuais, pôde usar os mesmos pneus de chuva das principais McLaren, Brabham e Renault; a Tyrrell usava outra marca.
A impressão digital que um pneu deixa no solo é fruto de vários detalhes e diz muito de sua capacidade e do comportamento dinâmico do veículo.
A área de contato (forma) e as pressões exercidas contra o piso são consequência da chamada força vertical descendente (downforce) gerada pela aerodinâmica e também calibração de molas, amortecedores, rótulas e esforços na geometria do conjunto.
Já os vazios na impressão digital são por conta dos sulcos desenhados justamente para drenar a água que encontrarem pelo caminho; quanto menos, melhor para aderência (daí os pneus slick), mas pior para vencer a barreira imposta pela película de água no piso.
Quanto maior e mais tempo assim fique a área de contato, maior a aderência e a eficiência dadas pelo coeficiente de atrito entre composto de borracha e, no caso, asfalto molhado. Quanto mais eficiente a escultura na banda de rodagem, mais drenagem e, portanto, mais contato, pois a camada de água que tenderia a levantar o pneu já passou por ele.
Assim, manter a maior área de contato possível nos quatro pontos de apoio do veículo, para qualquer que seja a condição de transferência de peso nas frenagens e acelerações, é essencial para aproveitar bem as virtudes do conjunto.
Entretanto, a combinação desses fatores por si só não justifica melhores resultados, mas sim como eles são aproveitados por quem pilota valendo-se ainda de alguns conceitos básicos, entre eles o de velocidade relativa.
Quando dois veículos seguem na mesma direção e sentido em velocidades distintas, a velocidade relativa é a diferença entre elas. É como se o mais lento estivesse parado e o outro passasse por ele nessa velocidade.
Pois foi mais ou menos isso que aconteceu.
A distância necessária para uma ultrapassagem é tanto menor quanto maior seja a velocidade relativa entre os veículos.
Durante uma prova em piso seco, as velocidades relativas são mais próximas umas das outras, e num circuito como Mônaco, onde as distâncias entre curvas são pequenas, fica muito difícil ter espaço suficiente para uma investida no competidor à frente.
Já no piso molhado, e com uma boa dose de ousadia que não faltava nos dois, é possível usar praticamente qualquer espaço disponível visto que muitos pilotos andam em velocidades bem inferiores às que poderiam praticar.
Pois é, a técnica, com ajuda da Física, a gente até explica; agora, o que nem Freud explica é de onde os dois tiraram tanto talento para fazer isso parecer tão fácil naquele dia.
Coisa de virtuoses.
MP